Inferno nº 17 / Stalag 17

3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2010 (postada em janeiro de 2011): Inferno nº 17 é muito possivelmente um dos filmes mais amargos que já foram feitos.

Na maior parte das duas horas de duração do filme, alguns de seus tristes personagens – americanos prisioneiros em um campo nazista durante a Segunda Guerra, mal alimentados e mal agasalhados, no inverno rigoroso da Alemanha – estão fazendo palhaçadas, piadas. São as palhaçadas e piadas mais amargas que se pode imaginar.

Só poderia mesmo ter sido dirigido por Billy Wilder, o diretor que fez a comédia mais dramática, mais amarga, mais triste que há, Se Meu Apartamento Falasse.

– “Não sei quanto a você, mas eu sempre fico mal quando vejo aqueles filmes de guerra…”

Ouvimos esta frase na primeira seqüência do filme, logo após os rápidos créditos iniciais – Inferno nº 17 é de 1953, e naquela época os créditos iniciais eram bem curtos.

É um plano geral de um campo de prisioneiros, à noite – os diversos galpões, com fachos de luz passando de um lado para outro, guardas armados fazendo a ronda. E uma voz em off diz essa frase.

É muita coragem abrir um filme sobre guerra com essa frase. Eis o texto da abertura, dito pela voz em off:

“Não sei quanto a você, mas eu sempre fico mal quando vejo aqueles filmes de guerra… Todos sobre fuzileiros navais e patrulhas de submarinos e mergulhadores e guerrilhas nas Filipinas. O que me pega é que nunca fizeram um filme sobre POWs – sobre prisioneiros de guerra. Meu nome é Clarence Harvey Cook. Me chamam de Cookie. Meu avião foi abatido em Magdeborg, Alemanha, em 1943; é por isso que gaguejo um pouco, especialmente quando fico excitado. Passei dois anos e meio no Stalag 17. Stalag é a expressão alemã para campo de prisioneiros, e o número 17 era perto do Danúbio. Havia cerca de 40 mil prisioneiros lá, se você contasse os russos, os poloneses e os checos. No nosso pedaço havia 630 de nós, todos americanos da aviação: operadores de rádio, artilheiros e engenheiros. Todos sargentos. Se você junta 630 sargentos, minha mãe, é um problema. Veja por exemplo a história do espião que tínhamos no nosso galpão…”

No galpão onde dormiam Cookie, o narrador da história, e mais algumas dezenas de prisioneiros, há, então, como ele informa já na abertura da narrativa, um espião.

         Um negociante sem escrúpulos, sujeito que todos detestam

E há um sujeito que todo mundo detesta, um tal de Shefton. Não se sabe exatamente como, Shefton desenvolveu um talento especial para negociar dentro do campo. Graças a diversos estratagemas, consegue comprar bebida, charutos, alguma comida de verdade, diferente da sopa rala que os alemães servem aos prisioneiros. A moeda de troca são cigarros. Shefton virou uma espécie de milionário ali dentro. Todos acabam fazendo negócios com a figura – mas todos o detestam, desprezam.

Shefton, o negociante sem escrúpulos, é interpretado por William Holden, na época um dos grandes astros de Hollywood, no auge da fama, da beleza e do charme.

Cada galpão tem um chefe e um encarregado da segurança. O chefe daquele ali chama-se Hoffy (Richard Erdman), e o segurança, Price (Peter Graves).

Na noite em que a ação começa, os presos daquele galpão estão organizando a fuga de dois deles. Serão os precursores, os primeiros a usar um túnel escavado por todos ao longo de sabe-se lá quanto tempo.

Assim que os dois precursores desaparecem no túnel, Shefton lança uma aposta: eles não vão sequer chegar até a floresta em volta do campo de prisioneiros.

Todo mundo fica enojado com a absoluta falta de escrúpulos de Shefton – mas todos aceitam o desafio, e apostam cigarros e mais cigarros.

Quando os dois homens saem do túnel, pouco adiante da cerca de arame farpado, são recebidos por um grupo de soldados nazistas que evidentemente sabiam da exata localização do fim do túnel. São executados na hora.

Do galpão, os prisioneiros ouvem os tiros. A desconfiança vem imediatamente: os alemães sabiam, portanto deve haver ali dentro um traidor, um espião, um alcagüete, um dedo-duro.

Ora, Shefton consegue regalias, compra bebidas, charutos, comida – logo, Shefton deve ser o espião.

Isso é posto quando temos não mais que dez, no máximo 15 minutos de filme.

         Piadas amargas, duras, de chorar. De chocar

O que virá a seguir é uma belíssima trama. O roteiro é de Billy Wilder e Edwin Blum, com base em uma peça teatral escrita por Donald Bevan e Edmund Trczinski, dois ex-soldados que foram presos em um campo de prisioneiros que os alemães chamavam exatamente de Stalag 17.

Para realçar a absurda situação de absoluta miséria moral de um campo de prisioneiros, os autores criaram dois personagens, Animal e Harry (interpretados por Robert Strauss   e Harvey Lembeck), que, para conseguir sobreviver àquelas provações, fazem piada o tempo todo. E piada amarga é uma especialidade de Billy Wilder – ele está em seu território, nada de braçada ali.

Não são piadas para se rir. De forma alguma. São piadas duras, amargas. De chorar. De chocar.

A primeira piada surge naquela noite em que dois prisioneiros  tentam fugir e são fuzilados pelos alemães. Animal está dormindo em seu beliche; Harry tenta acordá-lo na hora em que vão preparar a fuga dos dois escolhidos, mas Animal tem um sono, desculpem, animal. Harry resolve o problema rapidamente: diz ao ouvido do amigo: “Betty Grable”. Animal levanta-se imediatamente.

Betty Grable – diversos filmes sobre a Segunda Guerra mostram isso – era a pin-up mais adorada pela soldadesca americana. Estrela de musicais e comédias, com pernas fantásticas, muito mais belas que seu rosto louro um tanto sem graça, estava em fotos que 11 de cada 10 soldados americanos levavam em sua bagagem para o front.

Animal é absolutamente tarado por Betty Grable. Haverá diversas piadas sobre sua tara com a atriz de pernas maravilhosas.

Lá pela metade do filme, chegam ao galpão dois novos prisioneiros, que vão ocupar os lugares deixados vazios pelos dois fugitivos – um tenente, Dunbar (Don Taylor), e um sargento, Bagradian. Esse Bagradian (Jay Lawrence) também é um piadista. Sua especialidade é imitar atores famosos do cinema americano daquela época. Logo depois de chegar ao galpão, faz uma imitação de Clark Gable – ao que Animal reclama: “Imite Grable, não Gable!”

Mais tarde, imitará James Cagney. Cary Grant, outro grande galã dos anos 40, também é citado.

         Wilder dirige Preminger, seu conterrâneo e contemporâneo

Inferno nº 17 teve três indicações ao Oscar – direção para Billy Wilder, ator coadjuvente para Robert Strauss (e ele realmente está ótimo como o tragicômico Animal) e ator para William Holden. Holden levou a estatueta. E, de fato, sua atuação como o sujeito cínico, desiludido, negociante sem escrúpulos que todos detestam é admirável.

Mas quem rouba a cena é Otto Preminger, fazendo o papel de Oberst Von Scherbach, o coronel nazista que dirige o campo de prisioneiros, um aristocrata que gostaria de estar no front de batalha, e não ali naquele lugar imundo cheio de estrangeiros presos. Preminger aparece pouco em cena – sua participação não dura talvez mais que uns 15 dos 120 minutos do filme –, mas, quando aparece, tudo em volta como que some.

Preminger e Wilder nasceram em Viena, o primeiro em 1905, o segundo um ano depois. São dois dos diversos grandes diretores europeus que foram parar em Hollywood fugindo do nazismo.

Acho fascinantes os casos dos grandes diretores que de vez em quando atuam como atores, como Preminger neste filme do conterrâneo e contemporâneo. Wilder, que eu saiba, nunca trabalhou como ator. Na verdade – fui verificar – trabalhou, sim, uma vez, em 1929, ainda na Alemanha, num filme chamado Der Teufelsreporter. Pouco tempo antes de dirigir Preminger em Inferno nº 17, Wilder havia dirigido outro grande nome do cinema, outro europeu de língua alemã, Erich Von Stroheim, em Crepúsculo dos Deuses/Sunset Boulevard, de 1950, também com William Holden como protagonista. Von Stroheim, é bom lembrar, havia dirigido Gloria Swanson, que em Crepúsculo dos Deuses interpretada uma velha estrela decadente, em 1929, em, Minha Rainha/Queen Kelly.

O mesmo Stroheim havia feito um dos papéis principais no filme que é tido – com toda razão – como uma das obras definitivas sobre guerras, A Grande Ilusão, que Jean Renoir fez em 1937, dois anos anos do início da Segunda Guerra Mundial; a ação se passa na Primeira, a que diziam que tinha vindo para acabar com todas as guerras. E Stroheim fazia exatamente o comandante de uma prisão de oficiais inimigos.

Em 1963, Preminger (na foto abaixo) dirigiria um grande diretor que gostava de trabalhar como ator de vez em quando, e era um ator magnífico: John Huston faz um papel importante em O Cardeal.

         Os dois vienenses cínicos devem ter se divertido nas filmagens

Devem ter se divertido durante as filmagens deste filme muito mais amargo que jiló, os vienenses Wilder e Preminger. Devem ter rido da desgraça alheia, cínicos que são.

O livro 501 Must-See Movies observa que William Holden tem um de seus desempenhos mais versáteis como Sefton, e que Preminger foi uma escolha brilhante para fazer o sádico comandante do campo de prisioneiros, uma piada interna sobre a conhecida fama de que ele era um diretor mandão, marcial, exigente, muitas vezes brutal.

Pauline Kael, a grande dama da crítica americana, fala da interpretação de William Holden e de Preminger, na sua resenha do filme. Embora o texto de Dame Pauline deixe o meu parecendo com uma compozyção infantiu – ou talvez por isso mesmo –, não resisto à tentação de transcrever o que ela diz.

“Nesta turbulenta comédia sobre americanos num campo de prisioneiros de guerra, na Segunda Guerra Mundial, a atuação provocante de William Holden como um vigarista astuto e cínico (…) rendeu-lhe popularidade e também o Oscar de melhor ator. Antes ele era um ator sensível porém mais suave, e mesmo a desesperada gama de recursos que demonstrara em Crepúsculo dos Deuses não preparara o público para o lado abrasivo e a energia máscula e claramente americana revelada neste papel, mais parecido com os que lançaram Bogart a um novo nível de estrelato no início dos anos 40. (…) Billy Wilder dirigiu e deu uma força na adaptação, e é uma aposta certa que deu uma longa olhada em A Grande Ilusão – Otto Preminger faz um número como o Kommandant Erich Von Stroheim.”

         Wilder faz o contrário do que Hitchcock aconselhava

O livro Billy Wilder – e o resto é loucura, de Hellmuth Karasek, que contém caudaloso depoimento do próprio cineasta, conta que a peça teatral havia sido grande sucesso na Broadway, mas nenhum estúdio queria filmá-la – a impressão que se tinha era de que um filme só com homens não faria sucesso algum na bilheteria. Por insistência de Wilder, a Paramount comprou os direitos, pela bagatela de US$ 50 mil.

Nos seus longos depoimentos a François Truffaut, que resultaram no cartapácio Hitchock Truffaut, e também nas entrevistas que deu a Peter Bogdanovich, autor de The Cinema of Hitchcock (por coincidência, ou não, Truffaut e Bogdanovich são cineastas que também gostavam de trabalhar como atores), o mestre inglês disse e repetiu o seguinte: se for para fazer um filme a partir de uma peça de teatro, o negócio é pegar a peça e filmar, sem mexer muito, ou sem mexer em coisa alguma.

Bogdanovich, num filmete feito para o lançamento em DVD de Disque M Para Matar, imita o jeitão e a voz de Hitchcock e dá a receita que ouviu dele: “Se você tem uma peça de sucesso, simplesmente filme. Não mexa. Não tente torná-la cinematográfica. O que você adquire ao comprar uma peça é a construção. É a construção que a tornou um sucesso. Se você mudar isso, porá a perder exatamente aquilo que comprou. Simplesmente filme a peça.”

Billy Wilder, que dirigiu um dos filmes mais hitchcockianos que há, Testemunha de Acusação, fez o contrário do que Hitch ensina, conforme mostra o livro do professor e pesquisador Karasek. Segundo ele, do herói da peça da Broadway, o sargento Sefton, não restou muita coisa do filme. O livro reproduz o depoimento de Wilder:

“Trabalhamos tanto modificando a peça de teatro de Donald Bevan e Edmund Trzcinski, que Trzcinski já não reconhecia Sefton, o fulgurante herói da Broadway, na figura interpretada por Holden, com seus florescentes negócios no câmbio negro, que incluíam até uma central de apostas para corridas de ratos. Furioso, Trzcinski me armou uma cena e, depois que o filme se tornou um sucesso e foi elogiado justamente por seu efeito patriótico, recusou-se a partir de então a trocar uma palavra que fosse comigo.”

         A Paramount sugere que o diretor mexa no filme – e perde o diretor      

O fascinante livro de Karasek avaliza, de alguma forma, a afirmação presunçosa que fiz, de que Wilder e Preminger devem ter se divertido durante as filmagens. Wilder leva meia página brincando que fez uma exaustiva pesquisa a respeito de Otto Preminger – ele próprio um judeu – e chegou à conclusão irrefutável de que ele é, na verdade, o nazista foragido Martin Borman. A piada de Wilder é uma total delícia:

“Para todo aquele que for alerta e estiver de prontidão, logo ficará claro que ele (Preminger) só fez o filme Exodus para espionar Israel; Tempestade Sobre Washington/Advise & Consent, para se infiltrar no Senado americano, no Congresso e na Casa Branca, e A Primeira Vitória/In Harm’s Way para descobrir os segredos cuidadosamente guardados sobre nossos porta-aviões movidos a energia nuclear.”

Mais adiante, Wilder conta uma história que absolutamente não tem graça alguma – é, assim como Inferno nº 17, de uma profunda amargura. De olho no crescente e rico mercado alemão, um executivo da Paramount queria exibir Inferno nº 17 lá, mas, para isso, sugeriu ao diretor que mexesse na história, apagando um personagem nazista, para que o filme fosse mais palatável ao público alemão. “Respondi a ele”, conta Wilder, “que os nazistas haviam matado minha mãe, minha avó e meu padrasto em Auschwitz, e que não trairia meu filme diante da perspectiva de ganhar uns reles dólares na Alemanha. Aliás, nunca mais trabalharia para a Paramount se Weltner (Georg Weltner, o executivo responsável pela distribuição dos filmes do estúdio fora dos Estados Unidos) não se desculpasse pela sugestão que me fez. Nunca me pediram desculpas. De minha parte, jamais voltei a fazer um filme para a Paramount. De repente, um trabalho conjunto de 20 anos chegava ao fim.”

Inferno nº 17/Stalag 17

De Billy Wilder, EUA, 1953

Com William Holden (Sefton), Don Taylor (tenente Dunbar), Otto Preminger (Oberst Von Scherbach), Robert Strauss (“Animal” Stosh), Harvey Lembeck (Harry), Richard Erdman (Hoffy)

Roteiro Billy Wilder e Edwin Blum

Baseado na peça de Donald Bevan e Edmund Trczinski

Fotografia Ernest Laszlo

Música Franz Waxman

Montagem Doane Harrison e George Tomasini

Produção Paramount Pictures.

P&B, 120 min.

***1/2

13 Comentários para “Inferno nº 17 / Stalag 17”

  1. O difícil é achar esses filmes pra comprar, mesmo em são paulo…..

    Lendo seu texto, lembrei do discurso do cineasta espanhol Fernando Trueba, ao receber o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1993: “Gostaria de acreditar em Deus, para poder agradecer, mas eu só acredito em Billy Wilder, portanto obrigado Mr. Wilder”.

    Dá uma idéia da importância que teve esse diretor excepcional.

    Abraço

  2. Obrigado pelo comentário, Rafael. Não sabia desse discurso – interessantíssimo – do Fernando Trueba. Sem dúvida dá idéia da importância de Wilder.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Encontrei esta pérola da industria cinematográfica na Livraria Cultura. Como aficcionado por filmes da 2a guerra, não deixei por menos, comprei o DVD e assisti. Muito bom, uma comédia tragicômica de primeira, onde o suspense ronda até os instantes finais. Recomendo !

  4. Filme ácido com toques de tragicômico Uma pérola de Billy Wilder, um de meus diretores preferidos. Ótima atuação do elenco, principalmente Wiliam Holden, Robert Strauss e o grande diretor Otto Preminger.

  5. Caro Antõnio Carlos,
    Impecável a sua apreciação sobre o filme. Perfeita.
    Um abraço.
    Sérgio

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