Anotação em 2011: Você está nos seus anos maduros, o casamento é bom, os filhos estão bem, a vida é confortável – e eis que surge uma grande paixão. E aí, fazer o quê? A estrada tranquila de repente se bifurca – que direção tomar? Mandar tudo para o espaço e tentar a grande felicidade que não parecia mais possível? Ou abrir mão da paixão em nome da companheira fiel, dos filhos?
Essas são as questões que o grande Douglas Sirk, o mestre do melodrama, coloca em Chamas que Não se Apagam/There’s Always Tomorrow, seu filme de 1956, uma época em que Hollywood fazia filmes sérios voltados para o público adulto. Ou, no mínimo, fazia mais filmes sérios voltados para o público adulto do que passou a fazer a partir dos anos 70, 80.
Clifford Groves, o personagem interpretado por Fred MacMurray, tem quase tudo o que uma pessoa pode querer na vida. Sua mulher, Marion (Joan Bennett, na foto abaixo), é adorável, bonita, elegante, simpática, dona de casa perfeita – eram os anos 50, e uma mulher ser dona de casa perfeita ainda era, para a imensa maioria, o máximo que se poderia esperar. Os três filhos são basicamente boas pessoas. Sua empresa, uma fábrica de brinquedos que começou bem pequena e cresceu, não é um gigante, mas proporciona uma vida tranquila e confortável para a família. Os Groves moram numa boa casa, num bom bairro de uma agradável cidade californiana, não muito distante de Los Angeles.
A rigor, a vida é até tranqüila demais. Não há dramas, mas também não há grandes prazeres. Às vezes não há nem mesmo os pequenos. No dia em que a ação começa, Marion faz aniversário e Clifford faz planos. Marion tinha demonstrado interesse em ver uma peça musical num dos grandes teatros de Los Angeles. Clifford passa no teatro depois do trabalho, tem a sorte de conseguir duas cadeiras na primeira fila – tinha havido uma desistência. Compra flores para a mulher, chega em casa com flores e a proposta de uma noite no teatro.
Mas Marion não pode ir: a caçula, Frankie (Judy Nugent), de uns oito, nove anos, tem uma apresentação de balé na escola, e a mãe não pode abrir mão de levá-la. Clifford oferece as duas entradas conseguidas num golpe de grande sorte para o filho mais velho, Vinnie (William Reynolds), garoto de uns 18 anos, mas ele tem outros programas com a namorada, Ann (Pat Crowley). A filha do meio, Ellen (Gigi Perreau), de uns 13 anos, vai dormir na casa de uma amiga. Até para a velha senhora que trabalha para a família Clifford oferece os ingressos, mas ela também não pode ir.
E assim ele fica sozinho na casa grande, esquentando ele mesmo o jantar que come sozinho.
E aí toca a campainha. O destino bate à sua porta.
O rosto da visitante está na penumbra; ela dá meio passo à frente, e vemos a gloriosa Barbara Stanwyck
Clifford vai abrir a porta usando um avental e segurando na mão o bule de café. Não reconhece de imediato a mulher que está a um passo do umbral da porta – numa bela sacada do diretor de fotografia, Russell Metty, o rosto de Barbara Stanwyck está na penumbra. Ela dá meio passo à frente e então Clifford e o espectador a vêem.
Barbara Stanwyck está deslumbrante em sua versão madura, 49 anos de idade, 30 de magnífica carreira até então.
Clifford demora um pouco a identificar a visitante; sabe que a conhece, mas não se lembra bem.
Ele a conhecera como Norma Miller. Vinte e poucos anos antes, ela havia trabalhado na fábrica de brinquedos de Clifford, desenhando roupas para as bonecas; exatos 20 anos antes, tinha se mudado da Califórnia para o outro extremo do país, Nova York. Fez uma carreira invejável no mundo da moda; estava na Califórnia em viagem de negócios. Chama-se agora Norman Vale, após um casamento já acabado. Tinha telefonado diversas vezes, mas o telefone estava sempre ocupado – em uma casa com três filhos, o telefone fica sempre ocupado –, e então ela decidira fazer uma visita mesmo sem avisar antes.
Conversam um pouquinho, pessoas que se revêem após longo espaço de tempo.
Ainda há tempo de ir ao espetáculo musical – Norma gostaria de ir?
Na hora do tremor de terra, Norma tem certezas, Clifford só tem dúvidas
O filme, repito, é de 1956. Doze anos antes, em 1944, outro personagem de Fred MacMurray havia se apaixonado fatalmente por outro personagem de Barbara Stanwyck – e o advérbio é pesado mas exato. A Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck em Pacto de Sangue/Double Indemnity, um dos mais perfeitos filmes noir da História, é fatal até a raiz dos cabelos falsamente louros, até o menor dos aros da tornozeleira que exibe quando pela primeira vez é vista pelo pobre vendedor de seguros Walter Neff.
Doze anos mais jovens, os personagens dos dois atores eram mais dispostos ao risco. Phyllis era ambiciosa, ardente, queria o dinheiro do marido sem ter que agüentar o marido. Neff a princípio não queria topar a empreitada criminosa, mas a tentação era forte demais, e ele achou que, com seus conhecimentos sobre os riscos – exatamente os riscos –, poderiam cometer o crime perfeito.
Doze anos mais velhos, os personagens de Barbara e MacMurray estão muito, muito diferentes. Phyllis, nos anos 40, era a femme fatale disposta a tudo para ter a fortuna sem suar por ela. Norma, nos anos 50, tinha batalhado duro, a vida inteira, para ter uma vida confortável. À frente de muitas outras heroínas semelhantes que o cinema mostraria daí em diante, Norma optou pela carreira, pela profissão, mesmo que isso significasse falta de afeto, solidão. Tem os dois pés fincados na terra. Na hora em que chega o tremor de terra da paixão, tem certezas.
Clifford jamais tinha parado para pensar sobre a vida, os desejos, as possibilidades. Cumpriu o roteiro reservado aos homens de bem: trabalhou duro, trabalhou, trabalhou, trabalhou, foi perfeito provedor. Na hora em que chega o tremor de terra, só tem dúvidas.
Clifford-Fred MacMurray expõe em palavras claras, claríssimas, suas incertezas, sua insatisfação, num diálogo com a mulher, Marion:
– “Estou cansado de as crianças dominarem tudo. Cansei de ser acuado num canto. Cansei de não ser valorizado. Pareço um dos meus brinquedos. Clifford Groves, o robô que anda e fala! Dão corda em mim de manhã e ando e falo e trabalho. Dão corta de novo e volto e janto e durmo. Dão corda no dia seguinte e trabalho para pagar as contas.”
Marion não percebe que seu marido está questionando tudo na vida que levam, e diz: – “Eu sei que as crianças dão despesas…”
– “Não estou falando de despesas!” – a irritação de Clifford aumenta. – “Estou falando da vida, da nossa vida. Estou cansado da rotina, dos dias iguais.”
Um filme que traz grande quantidade de lembranças
Chamas que Não se Apagam pode parecer, às vezes, a defesa de um certo conformismo. É uma forma pela qual ele pode ser visto. Mas pode também estar mostrando uma realidade, a realidade daqueles anos 50, tempos conformistas, conservadores, caretas – sem que esteja, de forma alguma, fazendo a defesa desses valores.
É tudo muito subjetivo. Não me lembrava de ter visto o filme, quando peguei agora para vê-lo no DVD lançado pela Versátil, aparentemente em acordo com a Universal – a empresa brasileira voltada para um nicho adulto e bem informado está lançando filmes que a major americana entende que não são rentáveis para ela.
Fui checar nas minhas anotações e, sim, tínhamos visto Chamas que Não se Apagam em 2000 durante um ciclo de filmes de Douglas Sirk exibidos pelo então Telecine Classic. Na época, anotei sobre a ficha técnica, não escrevi nada sobre o filme.
Ao revê-lo agora, fiquei impressionado com a quantidade de lembranças que traz. Faz lembrar, é claro, o poema de Robert Frost, que tentei citar lá em cima, na abertura, o poema que ousaria dizer que está para Frost como a pedra no meio do caminho está para Drummond:
“Two roads diverged in a yellow wood, / And sorry I could not travel both (…) Two roads diverged in a wood, and I — / I took the one less traveled by, / And that has made all the difference”.
Faz lembrar As Pontes de Madison – um estranho que chega à vida pacata, sossegada, da dona de casa da cidadezinha acanhada do interiorzão bravo, e a terra treme, e a estrada se bifurca e ela tem que escolher por qual caminho seguir.
A campainha que toca na casa de Clifford faz lembrar que o carteiro sempre toca duas vezes, ou, na tradução brasileira, o destino bate à sua porta – o filme de 1946 baseado em história de James M. Cain, o mesmo autor do livro que deu origem a Pacto de Sangue.
O drama de Clifford faz lembrar o personagem de Kirk Douglas num dos filmes mais pessoais, talvez o mais pessoal, e mais subapreciados de Elia Kazan, Movidos pelo Ódio/The Arrangement – um publicitário bem sucedido, que parecia ter, como Clifford, tudo o que é necessário na vida, tudo isto e o céu também, mas não tinha felicidade.
Faz lembrar a primeira frase – brilhante – do livro O Ônus da Prova, de Scott Turow: “Foram casados por 31 anos, e na primavera seguinte, cheio de decisão e com alguma esperança, ele tornaria a casar-se.”
Faz lembrar também, é claro, todas as vezes em que na vida da gente a terra tremeu e a estrada se bifurcou e foi preciso escolher um caminho. É uma das experiências mais duras que pode haver na vida.
Em vez da felicidade, cacos de vidro
Por uma imensa coincidência – ou não –, depois que comecei esta anotação, em que usei a expressão “tentar a felicidade que não parecia mais possível”, vi uma frase de Douglas Sirk: “Você sempre tenta tocar a felicidade, mas só encontra cacos de vidro do outro lado”.
“Rachaduras em vidas aparentemente bem sucedidas”
Não encontro muitas opiniões sobre o filme no perfeito Cinemania. Lá, a única opinião é de Leonard Maltin, que dá 2.5 estrelas em 4 e usa um par de palavras que, se um dia já conheci, não conheço mais: “MacMurray está numa rut (rotina), no trabalho e em casa, o que o torna particularmente suscetível à velha chama Stanwyck, que retorna à sua vida. Melodrama sudsy (algo como ensaboado) mas com boas atuações, filmada antes em 1934”.
Vou atrás de alguma informação sobre o filme de 1934. O título original foi o mesmo, o diretor é um tal de Edward Sloman; os papéis centrais foram feitos por Frank Morgan e Binnie Barnes.
Com seus alguns mil anos a mais de cultura, mestre Jean Tulard fala sobre o filme em seu Guide des Films. Na França, There’s Always Tomorrow virou Demain est un Autre Jour, o que é parecido, mas de jeito algum é a mesma coisa. Diz ele: “Deixado de lado um final convencional – que não é um happy end –, eis aqui um esplêndido melodrama burguês, com um texto de grande finesse, que faz sutilmente aparecerem as rachaduras dessas vidas aparentemente bem sucedidas. Toda feita de emoção contida, Barbara Stanwyck está soberba, e forma com Fred MacMurray, bastante mais ‘quadrado’, um casal inesquecível.”
Meu Deus do céu e também da terra, que imenso abismo entre o texto do americano e o do francês!
(Detalhinho: vejo agora que na Bélgica o título em francês foi outro, foi a tradução literal do original: Il y a Toujours un Lendemain.)
Como jamais vou ter aqueles tantos mil anos a mais de cultura que os europeus têm, eu concluiria dizendo que, na minha opinião, Chamas que Não se Apagam não chega a ser um filme maior. Mas é assim umas 200 vezes melhor do que quase tudo que o cinemão comercial americano tem feito nas últimas décadas, quando passou a mirar o público jovem, e se infantilizou, se imbecilizou.
Chamas que Não se Apagam/There’s Always Tomorrow
De Douglas Sirk, EUA, 1956
Com Barbara Stanwyck (Norma Miller Vale), Fred MacMurray (Clifford Groves), Joan Bennett (Marion Groves), William Reynolds (Vinnie Groves), Pat Crowley (Ann), Gigi Perreau (Ellen Groves), Judy Nugent (Frankie Groves)
Roteiro Bernard C. Schonfeld
Baseado em história de Ursula Parrott
Fotografia Russell Metty
Música Herman Stein e Heinz Roemheld
Direção musical Joseph Gershenson
Produção Ross Hunter, Universal International. DVD Versátil, Universal.
84 min, P&B
R, ***
Título na França: Demain est un autre jour. Título na Bélgica: Il y a Toujours um Landemain
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