3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Ver hoje Um Segundo Rosto/Seconds, o filme que John Frankenheimer fez em 1966, é um choque absoluto. E certamente deve ter sido um choque também para quem viu nos anos 60 – ou em qualquer outra época.
Seconds é chocante.
Naquele ano de 1966, Frankenheimer era considerado uma grande revelação, uma grande esperança. E aquela era a época em que tudo, absolutamente tudo, estava mudando no mundo – era o tempo do olho do furacão da revolução comportamental. O cinema americano também sofria os efeitos do terremoto universal, e surgiam autores que demonstravam nítida influência do cinema europeu – que, por sua vez, estava sendo feito por novos autores que não escondiam sua admiração pelo cinema americano pré-anos 60. Arthur Penn e John Cassavetes faziam filmes inimagináveis até então nos Estados Unidos, enquanto o cinema da França e da Inglaterra era subvertido por jovens cineastas – Truffaut, Godard, Malle, Tony Richardson. Na Itália do pós-neo-realismo, os geniais Fellini, Antonioni e Visconti rompiam barreiras, e, na Suécia, Bergman filosofava sobre o sentido da vida. Seconds, talvez mais do que qualquer outro filme americano antes dele, fazia exatamente isso: questionava o sentido da vida.
É especialmente difícil falar deste filme, porque contar, relatar, reproduzir qualquer coisa dele seria, para quem ainda não o viu, entrega, estraga, spoiler. É um tanto como em relação a The Truman Show: como falar sobre The Truman Show sem entregar-estragar-spoilar?
Um filme que faz lembrar Bergman e Forman
Seconds me fez lembrar de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, e de Um Estranho no Ninho, de Milos Forman.
O filme de Bergman porque é talvez o mais simbólico das obras do mestre dos mestres, o que mais diretamente vai fundo na metafísica, na questão do sentido da vida, a conversa, o jogo com a própria morte.
O filme do checo genial porque, na minha opinião, ele, assim como Seconds, vai muito fundo no questionamento de todo o Establishment, as coisas mais fundamentais do modo de vida, a forma como a sociedade é estruturada. São dois filmes aberta, absolutamente anticonformistas.
E Seconds faz lembrar também, sob outra ótica, um bando de outros filmes: Além da Eternidade/Always, de Spielberg, de 1989, e portanto Dois no Céu/A Guy Named Joe, de Victor Fleming, de 1943, em que os aviadores mortos se transformam em anjos que vêm ajudar os vivos a viver melhor, e toda a série de filmes sobre pessoas que morreram fora de hora e vão ao céu se queixar, O Céu Pode Esperar/Heaven Can Wait, de Warren Beatty e Buck Henry, de 1978, por sua vez baseado em Que Espere o Céu/Here Comes Mrs. Jordan, de Alexander Hall, de 1941. E também os filmes de Frank Capra, o anjo Clarence que vem salvar o pobre George Bailey de A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life.
Faz lembrar também o díptico de Wim Wenders sobre os anjos que voam sobre a Berlim dos anos 80 e 90, os anos do fim da divisão de Berlim em dois setores opostos, Asas do Desejo e Tão Longe, Tão Perto.
Uma parábola que não tem anjos, e sim executivos
Seconds faz lembrar tudo isso – com a diferença básica, fundamental, de que, ao contrário dos filmes citados nos dois parágrafos acima, ele não tem anjos.
Americano, feito em 1966, por um diretor rebelde, Seconds é um filme tão anticapitalista que, em vez de céu e anjos e santos, tem uma corporação, executivos, empregados. Não ouvi a expressão cash flow, nem a expressão cost/benefits, mas há diversas outras expressões tipicamente empresariais, capitalistas, na empresa que oferece a segunda chance.
Seconds é uma parábola, uma fábula. Fala com imagens simbólicas, com a lógica do sonho, ou do pesadelo. Mas é um filme tão forte, tão loucamente vigoroso, que se permite algumas falas que são compreensíveis por todos, mesmo pela imensa maioria que não ouvir falar de um questionamento tão sério.
Diz a viúva de Arthur Hamilton:
– “Ele lutou muito pelo que ensinaram a ele a querer, e, quando conseguiu, ficou mais e mais confuso. Os silêncios ficaram mais longos. Nunca falamos sobre isso. Vivemos nossa vida educadamente. Sabe? Arthur tinha morrido há muito, muito tempo, antes de eles o encontrarem naquele quarto de hotel.”
E depois diz Tony Wilson:
– “Eu tinha que descobrir onde errei. Os anos que desperdicei tentando ter todas as coisas que me disseram que seriam importantes, e que eu deveria querer. Coisas! (Com grande ênfase na palavra.) Não pessoas, ou significados. Só coisas!”
Como o publicitário bem sucedido, rico, de Movidos pelo Ódio/The Arrangement, de Elia Kazan, de 1969, o personagem central de O Segundo Rosto compreende que desperdiçou a vida ao viver voltado para o dinheiro, a acumulação de bens materiais.
É uma maravilha. É uma paulada na cara – e uma paulada na base, no cerne de toda a estrutura da sociedade capitalista.
Uma grande interpretação do galã que não ficou famoso pelo talento
Uma das muitas coisas estranhas de se ver Seconds é Rock Hudson (1925 – 1985). Não sei quem Rock Hudson é, ou mais provavalmene não é, para as pessoas da geração da minha filha Fernanda, ou para quem veio depois dela.
Para a minha geração, para quem nasceu entre o fim da Segunda Guerra e o advento do rock’n’roll, Rock Hudson era o machão bonitão, altão, fodão, que interpretou um monte de personagens vencedores, altivos, fortes. É fascinante vê-lo na pele desse Tony Wilson, perdido, atônito, fraco, bêbado desmontando no chão. Tanto quanto foi chocante a revelação, em meados dos anos 80, no início da praga da aids, de que o grandão machão era homossexual.
Embora tenha feito diversos filmes importantes (e mais um punhado de comedinhas românticas que hoje podem parecer insossas, bobinhas), Rock Hudson era em geral considerado um canastrão, um sujeito de bela estampa e pouco talento.
Sua atuação em O Segundo Rosto desmente isso. É uma grande, uma extraordinária interpretação.
Algumas informações e opiniões dos outros
Vou agora atrás de informações e de outras opiniões.
Começo por um livro que nega o que acabei de dizer sobre Rock Hudson ser considerado um canastrão. Diz o livro Actors and Actresses: “Rock Hudson era um ator que nunca encontrou direito seu nicho em Hollywood. Basicamente um ator competente, e um ótimo ator quando bem dirigido, Hudson trabalhou numa grande quantidade de filmes ruins.” Estranhamente, o livro não comenta a atuação do ator em O Segundo Rosto.
Já a obra Baseline diz que, “com aparência extremamente boa mas sem experiência como ator, Rock Hudson foi uma criação de estúdio”; segundo o autor, ele “mostrou seus primeiros sinais de real habilidade em Giant” (Assim Caminha a Humanidade, de George Stevens, de 1956).
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4 para O Segundo Rosto: “Fascinante do começo ao fim, com boas atuações, um trabalho de câmara magnífico de James Wong Howe”.
A fotografia, de fato magnífica, teve indicação ao Oscar – foi a única indicação do filme.
Rock Hudson, o diretor John Frankenheimer e o diretor de fotografia James Wong Howe estavam, os três, no auge de suas carreiras, diz o livro The Paramount Story. Howe, aos 66 anos de idade, era o diretor de fotografia mais famoso de Hollywood – sua carreira havia começado em 1923! O ator tinha estado durante oito anos seguidos, entre 1957 e 1964, entre os cinco astros de maior bilheteria do cinema americano. “Paradoxalmente, ele caiu abaixo dos dez primeiros exatamente quando teve sua melhor atuação neste fascinante drama”, diz o livro.
E Frankenheimer vinha de uma série de sucessos: O Homem de Alcatraz, Sob o Domínio do Mal, os dois de 1962, Sete Dias em Maio, 1964, e O Trem, de 1964.
Pauline Kael não gostou do filme, que qualifica de “macabro”. Diz que há algumas boas idéias perdidas no meio de muita coisa desagradável; diz que Rock Hudson está dull – entorpecido, desanimado, enfadonho –, que Frankenheimer se exibe demais (“até apresenta um bacanal”) e que o diretor de fotografia James Wong Howe “faz pirotecnias com sua câmara como se estivesse querendo vendê-la num supermercado”.
Cada cabeça, uma sentença. Jean Tulard diz: “Essa trama de ficção científica é muito original. O começo é despedaçado e o suspense final, alucinante. É o pacto de Fausto revisto e adaptado ao nosso mundo moderno. Pouco conhecido, este filme merece ser redescoberto.”
Concordo com o francês, discordo da americana.
Aliás, a seqüência do bacanal, citada por Pauline Kael, é de fato chocante – como de resto todo o filme. Em 1966, o cinema americano estava apenas começando a se libertar das regras rígidas de autocensura do Código Hays. Havia apenas sete anos que Otto Preminger havia chocado as platéias e boa parte da crítica por usar a palavra “calcinha” diversas vezes, durante o julgamento que é o centro da ação de Anatomia de um Crime. E eis que aqui a mulherada toda tira a calcinha e entra peladona num gigantesco barril para espremer uvas com os pés e se roçar umas nas outras e nos homens.
É uma seqüência muito doidona, muito própria daquela época, a explosão do movimento hippie. Frankenheimer se antecipou três anos a Woodstock.
Um Segundo Rosto/Seconds
De John Frankenheimer, EUA, 1966
Com Rock Hudson (Tony Wilson),
e Salome Jens (Norma Marcus), John Randolph (Arthur Hamilton), Will Geer (o patrão), Wesley Addy (John), Frances Reid (Emily Hamilton),
Roteiro Lewis John Carlino
Baseado em livro de David Ely
Fotografia James Wong Howe
Música Jerry Goldsmith
Produção Gibraltar Productions, Paramount
P&B, 106 min
***
Título em Portugal: Uma Segunda Vida. Titulo na França: L’Opération Diabolique.
Assisti esse filme na tv, já faz muitos anos e tenho procurado em locadoras sem sucesso.
como posso conseguir uma cópia?
Resumindo o que achei do filme: uma boa ideia, quase sempre mal desenvolvida ao longo da narrativa. O melhor ainda são os primeiros 35/40 minutos de filme, ainda sem a personagem “transformada”. Um pouco dececionante, pois o filme é do mesmo realizador,(John Frankenheimer) do fantástico “the manchurian candidate”, realizado 4 anos antes. Só posso dar 6/10.