3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1996: Esta continuação de Asas do Desejo, seis anos depois, é belíssimo, extraordinariamente belo, no visual e no suco. Mas é pesado, lento, as relações dos personagens não são fáceis, são enroladas, as referências são muito circulares, e na verdade é preciso rever o filme, acho, para entender e gostar mais da trama – que é a mais confusa e tortuosa dos poucos do Wim Wenders que eu vi até agora.
O suco é maravilhoso – embora haja muitos diálogos pesados, densos, profundos, que só uma revisão e outra e outra vão permitir que se desfrute de tudo o que há. Ele é igualmente o filme mais palavroso de Wenders que eu conheça.
De qualquer forma, o suco é maravilhoso, explícito. Wenders é talvez – me ocorreu agora – o anti-John Huston, no sentido de que ele é talvez o cineasta mais coerente, entre os grandes, enquanto Huston sempre fez de tudo, passou por todos os gêneros. Sua mensagem é sempre a mesma, e neste filme ela é repisada até não mais poder.
Em algum momento da história recente (e nesse ponto ele lembra Spielberg, para quem a humanidade perdeu a inocência com a Segunda Guerra, mais especificamente com as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki), o homem se desligou dos valores que mais importam, e passou a dar atenção a valores de segunda categoria. O homem perdeu a noção do espiritual, do bem. Apegou-se a imagens, ao físico, ao existente tocável, a uma concretitude que nivela por baixo. E a essa perda de valores o cineasta associa justamente o seu elemento de trabalho, a sua razão de ser, as imagens. As imagens se banalizaram, ficaram repetitivas, sem valor maior.
O personagem central, Cassiel, usa um filme, um rolo de celulóide de um filme pornô, como pavio para botar fogo no que significa o mal, o errado. É a metáfora mais brutal que Wenders já usou contra o cinema-banalização.
O preto-e-branco é a visão dos anjos contra o colorido da visão dos homens – e, cacilda, essa é outra metáfora brutal, gritante. Wenders associa de forma violenta o preto-e-branco dos pioneiros, dos grandes autores dos 60 primeiros anos do cinema, ao que é mais importante, mais profundo. A cor é igual à TV, o preto-e-branco é igual ao cinema.
Mas entre o preto-e-branco e o colorido há muito cinza. Não há divisão simples entre o bem e o mal. Cassiel não sabe o que fazer quando vira homem; suas noções de anjo não se aplicam à realidade, à vida. É fácil se perder no mundo – mesmo tendo um passado de anjo. O possível ex-anjo que parece anjo do mal (Willem Defoe, perfeito no papel, depois de ter sido o Jesus mais humano do cinema sob a batuta de Scorsese em A Última Tentação de Cristo) age como um destruidor mas na verdade o que pretende e acaba conseguindo é provar que o lugar de Cassiel não é entre os homens, e sim como anjo; Cassiel é melhor, mas muitíssimo melhor como anjo do que como homem.
O anjo do bem, da compreensão, Rafaella, que é o personagem de Nastassja Kinski, não é forte o suficiente para interferir em nada, nem entre os homens, nem entre os anjos; é uma espectadora. Mais poderoso e forte que os anjos e os ex-anjos é o personagem de ficção, o detetive Columbo dos seriados de TV, interpretado pelo ator Peter Falk, que sabe que é e será sempre reconhecido como Columbo.
Os sinais politicos são sempre interessantes. A nova Europa está presente nos diálogos, que pulam do alemão para o inglês, para o francês e para o italiano sem aparente lógica. Os personagens se perdem nas referências ao que é Oeste e o que é Leste em Berlim, a cidade que – entre o ano da produção de um filme e o do outro – deixou de ser dividida em duas metades, uma comunista e outra capitalista, e passou a ser uma só. Cassiel aproxima-se no começo do filme do homem que mais do que todos derrubou os muros, nada menos do que Mikhail Gorbachev em pessoa, interpretando-se a si próprio. Depois do primeiro pileque como homem, Cassiel vai se olhar nas águas do rio e o que vê é um jornal com a notícia da morte de Willy Brant, o maior político alemão desde o fim da guerra, o único grande estadista alemão deste século até agora que defendeu o bem.
Há um sinal pessoal que tem que ser registrado. Solveig Dommartin, no papel de Marion, que em Asas do Desejo, quando mulher de Wenders na vida real, era o símbolo da beleza, razão pela qual valia a pena um anjo vir para a terra, agora é apenas uma coadjuvante com pouca expressão. Que loucura, isso. Como ele consegue passar uma coisa personalíssima dele para o seu filme.
Anotação pessoal minha: uma coincidência interessante. Wenders fez um filme com título em interjeição, com ponto de exclamação no fim, como tão pouca gente fez. Como o velho e bom Lelouch ao rever o reencontro do homem e da mulher 20 anos depois, 20 anos já!
Tão Longe, Tão Perto/In weiter Ferne, so nah!
De Wim Wenders, Alemanha, 1993.
Com Otto Sander, Nastassja Kinski, Peter Falk, Willem Defoe, Lou Reed, Solveig Dommartin, Bruno Ganz, Horst Buchholz, Rudiger Vogler
Música US, Nick Cave, Jane Siberry, Laura Anderson, Johnny Cash, Lou Reed
Cor, 144 min
consegui, ha muito tempo atras, voltando mil vezes a fita, escrever o que Cassiel diz sobre os anjos. ‘nos que estamos aqui, vcs não nos ouvem, voces não nos veem. não somos a mensagem, somos os mensageiros… ” mas perdi o caderno. estou desesperadamente procurando o conteúdo, em todos os sites possiveis e não encontro. voces teriam ou um link onde eu encontrasse a fala toda????
obrigada
Será que isso aqui ajuda?
“Vocês, a quem amamos tanto, não nos ouvem, nao nos vêem, nos imaginam tão longe. No entanto, estamos tão perto… Não somos a mensagem: somos os mensageiros que aproximam os que estão longe. A mensagem é o amor. Nós não somos nada. Voces são tudo para nós. Deixem-nos morar em seus olhos para que vejam o mundo por meio de nós. Recuperem, por meio de nós, aquele olhar terno de volta. Então, estaremos perto de vocês… e vocês, perto Dele.”
http://opapelacobreado.blogspot.com/
Um abraço.
Sérgio