O Tempo é uma Ilusão / It Happened Tomorrow

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: O Tempo é uma Ilusão/It Happened Tomorrow é uma gostosa fantasia feita por René Clair durante seu período de exílio em Hollywood, fugindo do nazismo. Uma brincadeira com o tempo, como mostram tanto o título brasileiro quanto o original americano.

Tem um gostinho de ingenuidade, especialmente visto hoje, depois de tanta crueldade, tanta brutalidade exibida pelo cinema. Um sabor fresco de inocência, realçado pelas interpretações um tanto exageradas, algumas até caricatas, e por isso pode não ser muito bem aceito pelos espectadores mais novos.

Mas é de fato gostoso, refrescante como uma bala de hortelã. E, se as interpretações dos atores – em especial de Jack Oakie, como Cigolini, o mágico – são de fato carregadas demais, a idéia básica da trama é deliciosa: e se, por um passe de mágica, você pudesse ler na véspera, no jornal que vai às bancas no início da noite, tudo sobre os fatos do dia?

Em suma: e se você soubesse o que vai acontecer amanhã, o que vai acontecer no futuro?

         Uma redação de jornal na rodada do século XIX para o XX

A ação começa nos dias de hoje, quer dizer, da época em que o filme foi feito, 1944 (um ano anos do final da Segunda Guerra e da volta de René Clair para a França). Uma grande família – filhos, netos e bisnetos – se prepara para homenagear os patriarcas, o casal que está agora completando bodas de ouro. Toda a família está pronta, engalanada, na grande sala da casa, à espera de que o casal apareça e desça as escadas magníficas do belo hall.

Mas – epa – parece que marido e mulher estão tendo uma discussão, coisa que nunca houve em 50 anos de vida conjugal.

E então temos uma tomada do casal no seu quarto; eles são vistos de longe, o plano é de conjunto, vemos todo o quarto, os corpos inteiros dos dois – René Clair é esperto, não quer fazer close-up dos atores que em seguida vamos ver 50 anos mais jovens.

O marido insiste em que vai contar o que aconteceu quando os dois se conheceram, meio século antes; a mulher insiste em que é bobagem, que ninguém vai acreditar. O marido cai na real – é, ninguém iria acreditar mesmo. E finalmente vão ao encontro da família toda reunida para recebê-los, enquanto temos o flashback que ocupará toda a narrativa. Voltamos até 50 anos atrás, final do século XIX. Estamos numa redação de jornal.

Uma redação de jornal em 1890 e muitos – e os jornalistas estão enchendo a cara! René Clair é mesmo um cineasta que gosta do fantástico, porque só numa fantasia poderíamos ter jornalista enchendo a cara na redação…

O motivo da comemoração na redação do Evening News naquela noite (o filme dá o nome do jornal, mas não o da cidade, naquela óbvia intenção de dizer que a história poderia ter acontecido em qualquer cidade) é o fato de que Larry Stevens, o herói da história, interpretado por Dick Powell, acaba de escrever o 500º obituário de sua carreira, e, com isso, se julga em pleno direito de exigir do proprietário-redator-chefe que passe para o muito mais meritório posto de repórter.

E então lá estão Larry e seus amigos bebemorando e contando histórias e papifurando. Entre eles está o mais veterano jornalista do Evening News, Pop Benson (John Philliber), velhinho alegre, bem humorado. Começa uma discussão sobre o tempo, o que é hoje, o que é amanhã – o que hoje é hoje amanhã será ontem, e coisa e tal.

Naquela noite, nosso herói Larry receberá dois presentes. Em primeiro lugar, ficará conhecendo a heroína, Sylvia, a sobrinha e assistente do mágico-charlatão-bom-caráter Cigolini. Sylvia é interpretada por uma belíssima Linda Darnell, no esplendor dos 21 aninhos. Em segundo lugar, o velhinho camarada Pop Benson botará no paletó de Larry um exemplar do Evening News de amanhã, do dia seguinte.

Naquela noite, Larry vai dormir um tanto de porre; só na manhã seguinte perceberá, ressaqueado, que o jornal que tem no bolso do paletó traz uma reportagem assinada por ele, com grande chamada na primeira página, relatando um assalto ao caixa da ópera da cidade, ocorrido às 14h10 daquele dia!

         Uma brincadeira com o tempo, um cineasta que gosta de fantasia

 As brincadeiras com o tempo são uma presença gostosa no cinema desde sempre. Em Feitiço do Tempo/Groundhog Day, de 1993, o repórter do tempo (no outro sentido de tempo, clima – weather, e não time) interpretado por Bill Murray tem o pior dia de sua vida, que se repete incessantemente, sem parar – embora ele esteja em companhia da produtora de TV mais gracinha da história, Andie McDowell

Em De Volta para O Futuro 2, numa belíssima sacada dos roteiristas, um almanaque com os resultados de grandes competições esportivas levado ao passado pelos heróis dos anos 80 acaba dando origem a um cinzento mundo mafioso e corrupto. No filme de René Clair, feito décadas antes, também existe o resultado das corridas de cavalos que ainda estão para ser realizadas – mas, como é René Clair, não vai ser criado um mundo corrupto, as coisas vão se arranjar direitinho.

René Clair (1898-1981) fez diversas fantasias. Diz seu conterrâneo Jean Tulard: “Esse parisiense, filho de um comerciante do bairro de Halles, foi por muito tempo considerado o cineasta francês por excelência. Por sua ironia e refinamento, foi comparado a Voltaire e a Diderot. (…) O gosto pelo fantástico à francesa inspira-lhe Paris Qui Dort (1923) e O Fantasma do Moulin Rouge (1924). (…) A homogeneidade da sua obra deve-se à sua fidelidade a uma equipe (o cenógrafo Meerson, o operador Perinal), a uma certa amabilidade de tom, a um humor colorido de melancolia. Esse cineasta tão francês é o que melhor se adaptará às condições de trabalho nos estúdios estrangeiros. (…) Nos Estados Unidos, onde vai se exilar, René Clair assina filmes infinitamente superiores aos de seus companheiros, Renoir e Duvivier: Paixão Fatal, com Marlene Dietrich; Casei-me com uma Feiticeira, que apresenta Veronika Lake numa comédia fantástica bem ao gosto de René Clair; O Tempo é uma Ilusão, ou como saber o que vai acontecer com 24 horas de antecedência, vantagem complicada quando se lê assim a notícia de sua própria morte; finalmente O Vingador Invisível, uma brilhante adaptação de O Caso dos Dez Negrinhos, de Agatha Christie. De volta à França, Clair faz um filme nostálgico sobre o cinema mudo cujo sucesso é considerável. Depois uma versão bastante curiosa de Fausto, Entre a Mulher e o Diabo.”

Um homem que tem que escolher entre a mulher e o diabo, um sujeito que se casa com uma feiticeira, o fantasma do Moulin Rouge – e, neste O Tempo é uma Ilusão, um mágico, uma falsa adivinhadora do futuro e o jornal do dia seguinte.

Grande René Clair, chegado a uma gostosa fantasia.

         Dick Powell, um grande astro; e Linda Darnell, que faz jus ao nome

Na crítica do filme no AllMovie, Bruce Eder afirma que, nos anos 40, Hollywood considerava os filmes de época como veneno na bilheteria. Não me lembrava de já ter lido uma afirmação como essa, mas é bem provável que ela reflita a verdade – eram os anos da Segunda Guerra, e é fácil perceber que havia de fato vontade das audiências de ver refletida nos filmes a realidade daquela época de grandes mudanças em todas as áreas.

Diz a crítica do AllMovie que Clair soube, espertamente, colocar sua história acontecendo na época do 50º aniversário do casal, “o que colocava o filme em 1944, o ano em que ele foi lançado. Dessa maneira, deu a It Happened Tomorrow uma sensação de atualidade que ele não teria se se passasse inteiramente nos anos 1890. Mais importante: ele focaliza os elementos humanos e as pequenas fraquezas dos personagens principais, o que leva a história para os domínios da comédia. Ele também se utiliza de todo o talento de seus atores para conseguir esse fim.”

E aqui é necessário falar, ainda que rapidamente, dos dois astros.

Dick Powell (1904-1963) é bem menos conhecido hoje que outros atores surgidos ou consagrados nos anos 30, como James Stewart, John Wayne, Clark Gable e Cary Grant – mas foi um grande astro. Cantor, dançarino, depois diretor e produtor, teve duas carreiras como ator, como destaca o livro 501 Movie Stars: uma como um jovem galã alegre em musicais e romances dos anos 30, e depois outra, a partir de meados dos anos 40, em policiais, em geral fazendo o papel de detetives durões, como em Até a Vista, Querida/Murder, My Sweet, de 1944 – o mesmo ano deste filme de René Clair -, em que fez o que é tido como a melhor interpretação do detetive particular Philip Marlowe, criado por Raymond Chandler.

Linda Darnell…

Como a gente é capaz de escrever asneira. Quando vi Anjo ou Demônio?/Fallen Angel, de Otto Preminger, mais de dez anos atrás, achei o filme uma completa porcaria – e fui capaz de dizer que Linda Darnell estava feia.

Ridículo.

Linda Darnell – que o AllMovie descreve como a mais estonteantemente bela morena de sua era – está de fato fantasticamente bela aqui, como a vidente que tem seu destino cruzado com um sujeito que por acaso tem no bolso o jornal de amanhã. A tomada em que ela está em transe, longe deste insensato mundo, mas arrisca abrir um olhinho quando Larry-Dick Powell a convida para almoçar é uma graça absoluta.

Texana de Dallas, nascida em 1923, Linda Darnell fazia treatro aos 13 e, aos 16, em 1939, estreou no cinema. Estava no auge do sucesso e da beleza aqui. Foi uma das muitas atrizes de Hollywood a enfrentar o alcoolismo, e morreria cedo demais, aos 42 anos, devido a um incêndio na casa em que estava hospedada.

Vou atrás de outros filmes com Linda Darnell.

O Tempo é uma Ilusão/It Happened Tomorrow

De René Clair, EUA, 1944

Com Dick Powell (Larry Stevens), Linda Darnell (Sylvia), Jack Oakie (Cigolini), Edgar Kennedy (inspector Mulrooney), John Philliber (Pop Benson), Edward Brophy (Jake Schomberg)

Roteiro René Clair, Dudley Nichols e Helene Fraenkel

Baseado em história de Lord Dunsany, Hugh Wedlock e Howard Snyder e idéias de Lewis R. Foster

Fotografia Archie Stout

Música Robert Stolz

Montagem Fred Pressburger

Produção Arnold Pressburger

P&B, 84 min

***

Título na França: C’est Arrivé Demain

10 Comentários para “O Tempo é uma Ilusão / It Happened Tomorrow”

  1. Caro Antonio, não vi “Quem é o Infiel?”, do grande Mankiewicz. Vou pôr na listinha dos filmes a serem vistos…
    Obrigado, e um abraço.
    Sérgio

  2. Neste filme ha uma parte que um cara segura os ponteiros de um “relogio” e entrega um bilhete para outra pessoa?
    Se possível me responder até hoje, ficarei grata
    By :Di

  3. Cara Ingryd,
    Vi o filme já faz algum tempo. Não me lembro exatamente dessa cena de um
    cara segurando os ponteiros de um relógio e entregando um bilhete a outra
    pessoa, mas pode ser que seja mesmo neste filme, sim. Cabe perfeitamente
    dentro da história.
    Adorei a pressa: “Se possível me responder até hoje”.
    Um abraço.
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *