3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Os mal-humorados, os pessimistas, os eternamente insatisfeitos, e também a turminha papo-cabeça que adora um filme francês ou sueco sobre personagens profundamente angustiados, esses deveriam passar longe de Julie & Julia. Este é um filme alegre, bem-humorado, de bem com a vida.
O bom humor começa já na tagline, a frase escolhida pelos marqueteiros do estúdio para definir o filme: “Baseado em duas histórias reais”. Delícia de gozação com a imensa quantidade de filmes que usa a expressão “Baseado em uma história real” para atrair público.
É uma gozação, mas é rigorosamente verdade. Julie & Julia se baseia em duas histórias reais – a de Julia Childs (1912-2004) e a de Julie Powell (nascida em 1973).
Quem????
Pois é. Para mim, até a diretora Nora Ephron fazer este filme, eram dois nomes absolutamente desconhecidos – e imagino que também fossem para o eventual leitor. Julia Childs, no entanto, é bastante famosa nos Estados Unidos, há muitas décadas – e Julie Powell também ficou bem conhecida, a partir de 2003. As duas escreveram livros; o filme se baseia neles.
O gostoso roteiro, de autoria da própria diretora Nora Ephron, vai mesclando as duas vidas, vai apresentando trechos das vidas de Julia (Meryl Streep) e de Julie (Amy Adams), começando com a chegada de Julia e seu marido Paul (Stanley Tucci) à França, em 1948, e com a chegada de Julie e seu marido Eric (Chris Messina) ao Queens, em 2002.
Duas mulheres, duas saborosas histórias
Paul, o marido de Julia, era diplomata; teve a sorte grande de ser enviado pelo Departamento de Estado para ser cônsul em Paris, três anos após o final da Segunda Guerra. Julia era uma dona de casa apaixonada por comida; encanta-se pela cozinha francesa; com o tempo, tomará aulas de culinária, e escreverá as receitas de pratos franceses para que as donas de casa americanas pudessem cozinhá-los em suas casa. O caminho é árduo, mas seu livro com as receitas – Mastering the Art of French Cooking, de 1961 – se transformaria num grande best-seller, num clássico, e, a partir de 1963, ela teria um programa na TV, um precursor dessa infinidade de programas culinários que hoje infestam diversos canais no mundo todo.
Eric, o marido de Julie, era editor de uma minúscula empresa; resolveu mudar-se do Brooklyn para o Queens em 2002 para ficar mais perto do trabalho e porque no Queens, em cima de uma pizzaria, encontrou um apartamento maior do que o do Brooklyn. Um apartamento de 85 metros quadrados, como ele repete e faz Julie repetir várias vezes – um latifúndio para um jovem casal em Nova York.
É deliciosa a comparação entre o gigantesco apartamento em Versailles onde moravam Paul e Julia e o pequenino apartamento no Queens onde moravam Eric e Julie. Como é gostosa também a disparidade entre os tempos de Julia, os anos 40 e 50 – que não trabalhava fora, e acaba se dedicando à culinária como um passatempo, um hobby – e os tempos de Julie, neste novo milênio. Julie fez faculdade, sonhou ser editora de livros e escritora, mas o que na vida real conseguiu foi um emprego público, numa agência governamental de atendimento às famílias das vítimas dos ataques terroristas do 11 de setembro. Algumas de suas amigas e colegas conseguiram empregos muito mais prestigiados e bem pagos – coisas da vida; como diz Woody Allen, os livros de auto-ajuda que nos perdoem, mas é preciso também ter sorte, na vida. Para ter algo prazeroso, já que o emprego público lhe dava salário mas nenhuma satisfação, Julie, ela também apaixonada por cozinha, fã eterna da então já legendária Julia Childs, tem a idéia de cozinhar, um a um, todos os 524 pratos descritos pela ídola em seu livro de receitas. Fixa o prazo de um ano, e começa a descrever suas experiências em um blog.
Grande idéia de Julia, grande idéia de Julie, grande idéia de Nora
Bem. Eu diria que foi uma grande idéia a de Julia Childs de se dedicar à culinária, para ter algo com que se ocupar, na Paris do final dos anos 40, início dos 50. Foi também uma grande idéia a de Julie Powell de cozinhar 524 pratos em 365 dias e relatar tudo num blog. Belas experiências de vida. Mas, sobretudo, foi uma grande idéia a de Nora Ephron de juntar as duas histórias e fazer seu filme, tão delicioso e agradável quanto uma belíssima refeição com o melhor da culinária francesa.
Nora Ephron deve muito certamente ser uma pessoa feliz, de bem com a vida. Se não fosse, não escreveria os roteiros que escreveu, nem dirigiria os filmes que dirigiu. São filmes bem-humorados – e que coisa bem-aventurada é o bom humor.
Foi jornalista; era jornalista quando se casou com Carl Bernstein, que, ainda meio foca, iniciante, foi mandado pelo Washington Post com o colega Bob Woodward para cobrir um assalto ao escritório da campanha democrata à presidência dos Estados Unidos, no Edifício Watergate, em 1972. Nora contaria a história de seu casamento e de sua separação com um dos jornalistas que derrubaram Richard Nixon da presidência em uma novela, Heartburn, que viraria filme em 1986, com direção de Mike Nichols e roteiro da própria Nora Ephron. Meryl Streep fazia o papel da heroína, e Jack Nicholson, a do marido dela.
Três anos depois, em 1989, Nora escreveu o roteiro do filme que, dirigido por Rob Reiner, viraria um novo clássico da comédia romântica, Harry e Sally – Feitos um para o Outro/When Harry Met Sally… A atriz principal do filme, Meg Ryan, então uma espécie assim de namoradinha da América, seria estrela de outro filme escrito e dirigido por Nora Ephron, em 1993 – Sintonia de Amor/Sleepless in Seattle, com Tom Hanks, então uma espécie assim de namoradinho da América, uma homenagem ao choroso clássico Tarde Demais para Esquecer/An Affair to Remember, de Leo McCarey, de 1957, com Cary Grant e Deborah Kerr. E em 1998 Nora Ephron dirigiria o mesmo casal de namoridinhos da América, Tom Hanks e Meg Ryan, em Mensagem para Você/You’ve Got Mail, uma adaptação moderna de outro clássico, A Loja da Esquina/The Shop Around the Corner, de Ernst Lubitsch, de 1940, com Margaret Sullavan e James Stewart.
Meryl, que já foi Nora, que foi filmada por Nichols, que…
Pode ser meio chata essa enumeração de filmes, mas ela tem sentido. Além de relembrar as principais obras da diretora, essa relação mostra duas coisas interessantes, que têm muito a ver com o que Nora Ephron faz na vida:
a) se juntarmos todas as tragédias existentes nos filmes dela, não há angústia suficiente para se igualar a dez minutos de um filme de Bergman, um gênio, ou de Chabrol, um chato. Nora Ephron pode não ser um gênio, mas é a anti-chata, é a joie de vivre em pessoa; e
b) os filmes de Nora Ephron são assim uma festa de amigos. Todo mundo se conhece, todo mundo já trabalhou junto.
Assim, Meryl Streep, esse monstro-sagrado, que já fez o papel de Nora Ephron, já havia trabalhado antes com Stanley Tucci, em O Diabo Veste Prada, e também com Amy Adams, essa gracinha em ascensão, em Dúvida. Assim como também já havia trabalhado com o diretor Mike Nichols em Angels in America, de 2003, no próprio A Difícil Arte de Amar/Heartburn, de 1986, e em Lembranças de Hollywood/Postcards from the Edge, de 1990. Neste último filme, Meryl Streep faz o papel de Carrie Fisher, sim, a Princesa Léia da primeira trilogia de Guerra nas Estrelas, filha de Eddie Fisher e Debbie Reynolds – a mesma Carrie Fisher que trabalhou em Harry e Sally, com roteiro de Nora Ephron.
Uma grande quadrilha drummondiana.
Meryl deve ter se divertido. E a gente se diverte com ela
Amy Adams está encantadora como a jovem Julie. Que tenha muitos bons papéis pela frente, essa jovem, bela e talentosa Amy Adams.
Meryl Streep está fantástica como sempre como a madura Julia. Muito provavelmente a verdadeira Julia falava daquele jeito engraçado, esquisito, como se estivesse sempre meio rindo, meio equilibrando uma batata quente dentro da boca. Ela devia falar assim, porque não teria sentido Meryl, a mestra dos sotaques e das personificações de pessoas das mais diferentes origens, ter escolhido esse jeito esquisito de falar. Ela deve ter se divertido bastante ao fazer esse papel. Mas, ao contrário de alguns filmes em que a gente vê que os atores e a equipe estão se divertindo, mas nós, espectadores, não entendemos muito bem por quê, aqui, não: aqui o espectador também se diverte à vontade.
Então, para os eventuais leitores bem-humorados, bom apetite, quer dizer, boa diversão. Para os mal-humorados, um Chabrol vai bem.
Uma nova tag: Comida
Ah, sim. Com Julie & Julia, inauguro uma nova tag neste site, dedicada aos filmes que destacam os prazeres da boa mesa. Fiquei numa dúvida danada sobre o nome da tag – Sabores? Gourmet? Gourmandise? Gula? (Não, já é nome de revista.) Paladar? (Não, já é nome de suplemento do Estadão.) Comer & Beber? (Não, já é nome de edição especial da Vejinha.) Mangia che te fa bene? No fim, segui a sugestão do Carlos Bêla e do Sandro Vaia: Comida. Curto e grosso. A palavra direta, sem dieta.
Bon apetit.
Julie & Julia
De Nora Ephron, EUA, 2009
Com Meryl Streep (Julia Child), Amy Adams (Julie Powell), Stanley Tucci (Paul Child), Chris Messina (Eric Powell), Linda Emond (Simone Beck), Helen Carey (Louise Bertholle), Mary Lynn Rajskub (Sarah), Jane Lynch (Dorothy McWilliams), Joan Juliet Buck (Madame Brassart), Crystsal Noelle (Ernestine)
Roteiro Nora Ephron
Baseado nos livros de Julia Child, Julie Powell e Alex Prud’homme
Fotografia Stephen Goldblatt
Música Alexandre Desplat
Cor, 123 min
Produção Columbia
***
O filme é bem legal mesmo. Realmente é alegre, bem-humorado, de bem com a vida. Só peca no fim. Achei o fim bobo, “forçado”. Mas vale a pena ver.
Concordo com o Danilo, o filme peca no fim, mas gostei bastante, como sempre gosto dos filmes da Nora Ephron. É leve e divertido, quase uma comédia romântica, não fosse as personagens já terem seus pares. Interessante que ela não focou apenas na parte culinária, mas tb no relacionamento entre os casais. Gostei da relação da Julia e do marido; ele a apoiava (fato raro na época) e ainda por cima era bem humorado, os diálogos entre os dois eram engraçadíssimos.
Vc tem razão, a Julia falava daquele jeito esquisito mesmo. Joga no tubo que vc encontra.
Já a relação da Julie e do Eric traz frescor, modernidade e atualidade ao filme. Engraçada e triste a cena onde ela precisa matar as lagostas colocando-as em água fervendo – ainda bem que não como nem nunca comi — e a música que toca é Psycho Killer (se eu não estiver louca, acho que ouvi um “choro” de lagosta sendo derretida, ou algo que o valha).
Não acho um apartamento de 85m² tão pequeno assim. Na própria Paris de hoje um lugar desse tamanho é quase luxo, e mesmo no Brasil, os imóveis novos têm saído cada vez mais minúsculos. Mas claro que comparando com os lugares onde a Julia morava, acabava ficando pequeno mesmo (e escuro; que nervoso aquela penumbra o filme inteiro).
Sobre a parte que mostra que as amigas da Julie têm empregos melhores e mais bem pagos: elas até podem ter tido “sorte”, mas a mim pareceu que eram pessoas chatas, infelizes até, obcecadas por magreza e dinheiro.
Posso trocar a “belíssima refeição com o melhor da culinária francesa” por belíssima refeição com o melhor da culinária cuiabana? Thanks. Dispenso o melhor prato francês pra ficar com meu arroz, banana frita, pirão, filé de pacu e mojica de pintado, hehehe ;D.
E pra quem ainda não viu o filme, seria bom assistir com o estômago forrado, são muitas as tentações (no meu caso foram os pratos doces).
Jussara, vou repetir mais uma vez: ter conhecido você foi uma das
melhores coisas que me aconteceram a partir da criação deste meu site.
É bom demais conhecer uma pessoa lindamente inteligente como você.
Seus comentários são sempre melhores que os meus…
Abração.
Sérgio
eu adorei o filme muito emgraçado,gostei da parte quamdo julia apremde a cortar cebolas muito legal.
fiquei triste no final por que eu queria que elas se comhecesem.