Anotação em 2010: Uma beleza de filme. Um drama denso, forte, apavorante, sobre vida em família e sobre os traumas profundos deixados pela guerra – no caso específico, a guerra dos Estados Unidos contra o taliban no Afganistão.
De uma maneira quase seca, sem sentimentalismos, optando várias vezes pelo subentendido em vez do explícito, o diretor Jim Sheridan mostra que uma suspeita, um ciúme, pode doer quase tanto quanto a mais brutal tortura física e mental. E que um simples gesto desagradável – como uma demonstração de manha de uma filha – pode reabrir de repente a ferida grave não curada, que talvez nunca venha a se curar.
Sheridan, o roteirista David Benioff e os excepcionais atores levam menos de 15 minutos para nos dar um quadro por inteiro da família Cahill. Sam, o irmão mais novo (Tobey Maguire), é oficial dos fuzileiros navais; já esteve no front, e vai voltar para lá. É apaixonado por Grace (Natalie Portman), sua bela e jovem mulher, e pelas duas filhas, Isabel e Maggie, a primeira de uns dez anos, a segunda de uns oito. Parecem a família perfeita, cujo maior problema é ter uma cozinha que poderia ser mais bonita.
Tommy, o irmão mais velho (Jake Gyllenhaal), ao contrário de Sam, não é um sujeito certinho, ajustado, adaptado. Está saindo da prisão sob liberdade condicional quando a ação começa. A cunhada, Grace, não gosta dele. O pai, Hank (Sam Shepard), militar aposentado, também não – e é daquele tipo irritante, imbecil de pai que está sempre, a cada momento, jogando na cara do filho problemático que seu irmão é a perfeição em pessoa.
Com uns dez minutos de ação, Sam embarca para o Afeganistão. Mais cinco minutos, ele está em missão num helicóptero, o helicóptero é abatido pelos talibans, e chega à casa de Grace a dupla de anjos da morte, os encarregados de noticiar ao familiar mais próximo o falecimento de um soldado.
E, aqui, é impossível não lembrar O Mensageiro/The Messanger, também de 2009, também sobre as feridas deixadas pelas atuais guerras em que os Estados Unidos estão metendo seus jovens, a do Iraque e a do Afeganistão.
Um roteiro que evita de propósito surpresas, reviravoltas
Da mesma maneira com que foge do sentimentalismo e da ênfase da explicitude, o diretor Jim Sheridan evita as surpresas, as reviravoltas, tão comuns em tantos filmes do cinemão comercial de hoje em dia. Ao contrário: muito do que vai acontecer a partir desses 15 primeiros minutos de Entre Irmãos é previsível – como tanta coisa na vida. A intenção não é surpreender: é meter o dedo na ferida, nas muitas feridas.
Outra mania comum nos filmes recentes de Hollywood é esconder nos créditos finais a informação de que se trata de uma refilmagem de obra feita em algum outro país. E também nisso Entre Irmãos vai contra a maré. O filme informa, com clareza, já nos créditos especiais, que é a refilmagem de Brodre (com o cortado por uma barra, que não sei reproduzir), filme dinamarquês de Susanne Bier, com argumento e roteiro de Susanne Bier e Anders Thomas Jensen. Brodre é de 2004.
Susanne Bier é uma diretora de grande talento, autora do extraordinário Depois do Casamento/Efter Brylluppet, uma história impressionante sobre família, relações familiares e injustiça social que tem o tom de thriller, e do também ótimo Coisas Que Perdemos Pelo Caminho/Things We Lost in the Fire, igualmente sobre família, morte, perda, drogas.
Confesso que a honestidade com que Entre Irmãos diz, logo nos créditos iniciais, que é a refilmagem de uma obra dinamarquesa de Susanne Bier me deixou um pouco confuso. Me distraí um pouquinho; por alguns minutos, fiquei me perguntando por que minha locadora não tem a versão original (se tivesse, eu já teria prestado atenção a ele); e também fiquei me perguntando qual será a guerra de que trata o filme dinamarquês, já que a Dinamarca, ao contrário dos Estados Unidos, não é de se meter em guerras pelos quatro cantos do mundo,.
Vejo agora, numa resenha escrita por leitor do iMDB, que a história original também tem ligação com o Afeganistão: “Michael tem tudo sob controle: uma carreira militar de sucesso, uma bela mulher e duas filhas. Seu irmão Jannik é um errante, vivendo no fio da navalha da lei. Quando Michael é enviado para o Afeganistão em uma missão das Nações Unidas…”
Por esse início de sinopse, percebe-se que a adaptação americana parece bastante fiel ao original. Mudaram-se apenas os nomes dos irmãos, e, na mais pacífica Dinamarca, o irmão militar está a serviço da ONU, enquanto na versão americana Sam trabalha diretamente para o tio que tem seu nome.
Uma história escrita por europeus, um filme dirigido por europeu
Ao longo de bons trechos de Entre Irmãos, me peguei pensando que há muitas situações no filme que parecem mais européias do que americanas. Difícil explicar isso – é uma sensação, não é uma coisa óbvia, clara, explícita. E nada, no filme feito nos Estados Unidos, parece forçado, de forma alguma. Ao contrário: é absolutamente natural vermos um jovem americano em missão no Afeganistão. Mas há alguns diálogos, algumas situações que remetem mais a uma visão européia. De fato, não sei como definir claramente isso, mas tive essa sensação. Talvez seja simplesmente por saber que é uma história originalmente criada na Dinamarca, sei lá.
Ou talvez também por saber que, embora o filme seja americano, o diretor Jim Sheridan é europeu. Irlandês de Dublin, nascido em 1949, tem grandes filmes no currículo, alguns deles tratando exatamente dos bárbaros conflitos na Irlanda, nos anos 70. Dirigiu O Lutador/The Boxer, de 1997, sobre uma paixão em tudo proibida pelos cânones do IRA, o Exército Republicano Irlandes, e seus seguidores e simpatizantes, e Em Nome do Pai/In the Name of The Father, de 1993, sobre um homem preso acusado de pertencer ao IRA e ter cometido crimes durante a luta contra os ingleses. Foi co-roteirista de Mães em Luta/Some Mother’s Son, de 1996, sobre a escalada da violência do Estado britânico promovida pelo thatcherismo na Irlanda do Norte de 1979 a 1981.
Também é dele o triste, duríssimo Terra de Sonhos/In America, de 2002, sobre as dificuldades de um jovem casal de irlandeses que emigra clandestinamente para Nova York com suas duas pequenas filhas. A terra dos sonhos muitas vezes só entrega pesadelos a quem a procura.
Um grande diretor, portanto. Acostumado a temas árduos, difíceis. Acostumado, também, a trabalhar com a fina flor, com o crème de la crème em matéria de interpretação – seus filmes anteriores tinham Daniel Day-Lewis, Helen Mirren, Fionnula Flanagan, Samantha Morton, Emily Watson.
Em Entre Irmãos, reuniu três dos melhores atores jovens dos Estados Unidos. Tobey Maguire, Jake Gyllenhaal e Natalie Portman estão excelentes. Sam Shepard é sempre ótimo, não tem possibilidade de erro. Todos os coadjuvantes estão muito bem – Carey Mulligan, que no mesmo ano de 2009 tornou-se estrela respeitável por sua interpretação em Educação/An Education, pela qual foi indicada ao Oscar, aparece pouco, mas brilha como a mulher de um soldado, Joe, que vai para o Afeganistão com o Sam, o personagem de Tobey Maguire.
Um pequeno detalhe é o grande acerto do diretor de elenco, de casting, colocar Tobey Maguire e Jake Gyllenhaal como irmãos: eles são incrivelmente parecidos.
Há no filme três canções do U2 – “Bad”, “White as Snow” e “Winter”. Esta última composta especialmente para o filme, foi indicada para o Globo de Ouro. A trilha sonora original, de Thomas Newman, é sutil, anti-fogos de artifício, anti-lantejoulas, exatamente como o estilo narrativo do filme.
Na narrativa, como já mencionei antes, há vários momentos em que se opta pelo subentendido, em vez da explicitude. Há explicitudes no filme, sim – ele não foge da violência, há momentos de grande, horrorosa violência, mas só quando é absolutamente necessário. Não há ênfase demasiada na violência. E em diversas seqüências os olhares, os pequenos gestos, as pausas e os silêncios dos personagens falam muito mais do que os diálogos – até porque um dos temas do filme é a dificuldade de se falar às claras de dores que são insuportáveis.
“Voltar do inferno pode ser até mais difícil que viver nele”
Vejo no AllMovie uma bela frase, e, como admiro bons textos, a transcrevo. É de Perry Seibert, que assina a crítica do filme no belo site. “Se uma centena de anos de história do cinema nos ensinou alguma coisa sobre o combate, é que guerra é o inferno. Brothers é um desses filmes que querem ter certeza de que entendemos o quanto voltar do inferno pode ser até mais difícil do que viver nele.”
Bela frase. Bem-aventurados os que sabem escrever bem. Eu tento, tento, e não chego lá.
De muitas maneiras, Entre Irmãos faz lembrar Amargo Regresso/Coming Home, a obra-prima de Hal Ashby de 1978, que deu Oscars a Jane Fonda e Jon Voight. É como se estivéssemos revendo agora, num filme de 2009, 30 anos depois, a mesma louca dor do capitão Bob Hyde, o personagem de Bruce Dern. Naquele tempo era o pântano sem fim do Vietnã, agora é o pântano sem fim do Afeganistão. O que faz lembrar outra bela frase, o refrão de Pete Seeger que tanta gente cantou, mas ninguém melhor que a alemã anti-nazista Marlene Dietrich: “Oh, when will they ever learn?”
Será que um dia a gente vai aprender?
Entre Irmãos/Brothers
De Jim Sheridan, EUA, 2009
Com Tobey Maguire (capitão Sam Cahill), Jake Gyllenhaal (Tommy Cahill), Natalie Portman (Grace Cahill), Sam Shepard (Hank Cahill), Clifton Collins, Jr.(Major Cavazos), Mare Winningham (Elsie Cahill), Bailee Madison (Isabelle Cahill), Taylor Geare (Maggie Cahill), Patrick Flueger (Joe Willis), Carey Mulligan (Cassie Willis)
Roteiro David Benioff
Baseado no filme Brodre, Dinamarca, 2004, de Susanne Bier, com argumento e roteiro de Susanne Bier e Anders Thomas Jensen
Fotografia Frederick Elmes
Música Thomas Newman
Montagem Jay Cassidy
Produção Lionsgate, Relativity Media. DVD Imagem Filmes.
Cor, 105 min
***
Tb gostei bastante desse filme, e confesso que só decidi ver pq trata tb de dramas familiares, pois de filmes sobre guerra eu estou meio cansada. Como diz a frase de uma camiseta minha: I’m a lover not a fighter. Sem falar que o mundo e a vida já são tão complicados que eu sinto cada vez menos vontade de ver filmes de/sobre guerra.
A paranóia (machadiana?) do Sam é tão grande que mesmo o filme não mostrando, a gente acaba ficando tb na dúvida se houve ou não algo entre Grace e Tommy. Eu, pelo menos, fiquei. E achei meio exagerada a insistência de todos os personagens secundários exaltarem a beleza da Grace, mas talvez o objetivo fosse esse mesmo.
Sempre achei parecidíssimos os atores que fazem os irmãos, a ponto de confundi-los e de ter que pensar em quem era quem quando via uma foto. Ótima escolha mesmo do diretor de casting. Só não consigo imaginar um cara com a voz fraquinha do Tobey dando voz de comando para um pelotão. Aliás, antes eu não gostava dele por causa da voz, mas acabei acostumando.
Mas voltando ao filme, vc tem razão: algumas vezes ele parece europeu, e os silêncios e as pausas falam muito e suscitam ainda mais dúvida e dor.
Agora, como assim vc tenta escrever bem e não chega lá? Só pra citar duas passagens maravilhosas desse texto: “o diretor Jim Sheridan mostra que uma suspeita, um ciúme, pode doer quase tanto quanto a mais brutal tortura física e mental”. E “até porque um dos temas do filme é a dificuldade de se falar às claras de dores que são insuportáveis.”
Se isso não é escrever bem, então eu não sei o que é.
Jussara,
Ótima a sua observação sobre a vozinha do Tobey Maguire. De fato, a vozinha dele é agudinha, fininha, fraquinha. Mas é um grande ator, menino talentoso desde bem cedo.
Sobre a questão do texto… Você é minha amiga, mas mesmo assim fico rubro de modéstia com o elogio… Muito obrigado.
Sérgio
Voltei só pra comentar rapidinho sobre o filme “Terra de Sonhos”, que vc citou no texto. Eu amoamoamo esse filme; nem tanto por causa da história, que como vc disse, é triste e dura, mas muito pela atuação das duas meninas. Pra mim, o filme é delas, apesar do ótimo casal de atores. Como eu adoro a atuação daquelas duas (muito bem dirigidas). Elas deixam o filme terno, mágico, engraçado. A mais velha – agora uma bela moça – continua atuando. Tem tudo pra se tornar uma grande atriz.