4.0 out of 5.0 stars
Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2001: Além de contar bem histórias, os bons filmes costumam ser, eles próprios, personagens de histórias saborosas. É bem o caso dos três que estão no quadro desta semana – todos eles contando histórias de mulheres que passam por profundas transformações em função do que aprendem, a duras penas, através da convivência com homens por quem acabam se apaixonando, cada uma a seu jeito.
O diretor George Cukor, um nova-iorquino descendente de judeus húngaros, conhecido como o diretor das mulheres, um dos grandes intérpretes da alma feminina no cinema, é personagem das histórias de dois destes três filmes. Outro húngaro, Gabriel Pascal, é um personagem bem menos conhecido, mas seu papel é decisivo: sem sua insistência não teria sido feito Pigmalião, uma pérola do cinema inglês da primeira metade do século que só o advento do DVD trouxe para as locadoras brasileiras; e foi ele, também, o responsável pela existência da peça My Fair Lady – embora isso possa ser uma surpresa até para quem já viu o filme mais de uma vez.
Nascida Ontem/Born Yesterday | Pigmalião/PygmalionMy Fair Lady |
My Fair Lady |
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Produção | EUA, 1950. | Inglaterra, 1938. | EUA, 1964. |
Diretor | George Cukor | Anthony Asquith e Leslie Howard | George Cukor |
Roteiro e argumento | Roteiro de Albert Mannheimer, baseado na peça de Garson Kanin – este é o crédito oficial. Mas o próprio Kanin retrabalhou, a pedido de Harry Cohn, o chefão da Columbia, o roteiro feito pelos irmãos Julius e Philip Epstein. | Roteiro e diálogos de George Bernard Shaw, baseado em sua peça; roteiro de W. P. Liscomb e Cecil Lewis. Também trabalham no roteiro (embora não apareçam nos créditos) Ian Dalrymple e Anthony Asquith. | Roteiro de Alan Jay Lerner, baseado no musical dele (texto e letras) e Frederic Loewe, por sua vez baseado na peça Pigmalião, de George Bernard Shaw. |
Elenco | Judy Holliday, William Holden, Broderick Crawford, Howard St. John. | Leslie Howard, Wendy Hiller, Wilfrid Lawson, Marie Lohr, Scott Sunderland, Jean Cadell. | Rex Harrison, Audrey Hepburn, Wilfrid Hyde-White, Stanley Holloway, Gladys Cooper, Mona Washbourne. |
Cor, duração. | P&B, 102 min. | P&B, 90 min, segundo diz o DVD. O original tem 95 min. | Cor, 173 min. |
Ação | Washington, 1950. | Londres, início do século XX. | Londres, início do século XX. |
Local de filmagem | Estúdio em Hollywood, 1950. | Estúdios Pinewood, Inglaterra, 1938. | Estúdios Warner Bros., Hollywood, 1964. |
Ela | Ex-dançarina de cabaré, amante de um novo-milionário, o protótipo da loura burra: “Sou burra e gosto de ser; sou feliz; tenho tudo o quero – até dois casacos de mink”. | Uma vendedora de flores, pobre, ignorante – e inteligente. | Idêntico à coluna da esquerda.. |
Ele | Um jornalista culto, refinado, levemente idealista, que define a História como “uma luta entre egoistas e altruístas”. | Um conhecido, respeitado e rico professor de fonética, egocêntrico, arrogante e misógino. | Idêntico à coluna da esquerda. |
O que ela quer | “Gostaria de aprender a falar bonito.” | “Quero ser uma dama numa floricultura, mas eles não vão me aceitar a não ser que eu fale mais distinto.” | “Quero ser uma dama numa floricultura em vez de vender na esquina da Totterham Court Road, mas eles não vão me aceitar a não ser que eu fale mais distinto.” |
O que ele ensina | Ele a ensina a ler jornais e livros, consultar dicionário, apreciar arte, ouvir música erudita, interessar-se por História, política. | Ele a ensina a falar com perfeição – e, depois, a se vestir bem, ter maneiras educadas, comportar-se bem entre os mais ricos. | Idêntico à coluna da esquerda. |
Por quê | O jornalista é contratado pelo amante dela para treiná-la e evitar, assim, que ela dê vexame em compromissos sociais. | Pelo prazer do grande desafio: “Vê essa criatura com seu inglês da calçada, o inglês que vai mantê-la na sarjeta pelo resto da vida? Em três meses eu poderia fazer com que ela se passasse por uma duquesa numa recepção. Ou até mesmo conseguir um emprego como dama de companhia, o que requer um inglês melhor.” | Como sempre, o mesmo que a coluna da esquerda. A mesma frase é dita, apenas com um acréscimo que a torna ainda mais irônica: “… um emprego como dama de companhia ou uma vendedora de loja, o que requer um inglês melhor”. |
O que mais ela aprende | Tudo, a respeito de tudo – de Bethoven a Thomas Jefferson, opressão dos mais fracos, direitos humanos, democracia x fascismo, ordem econômica, cartéis… | Como funciona a sociedade de classes: “A diferença entre uma dama e uma florista não está na forma como ela se comporta, e sim na forma como ela é tratada”. Por exemplo, sobre o casamento: “Estávamos acima disso no Covent Garden; eu vendia flores, não me vendia; agora que você fez de mim uma dama, eu não sirvo para mais nada.” | Idêntico ao da coluna da esquerda. As frases são exatamente as mesmas, palavra por palavra. |
Prêmios | Teve cinco indicações ao Oscar – filme, diretor, atriz (Judy Holliday), roteiro e figurino. Só Judy Holliday levou – no ano em que estavam no páreo Bette Davis e Anne Baxter por A Malvada/All About Eve), que levou o prêmio de filme, Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses /Sunset Boulevard e Eleanor Parker em À Margem da Vida/Caged. | Teve quatro indicações ao Oscar – filme, ator (Leslie Howard), atriz (Wendy Hiller) e roteiro. Ganhou o prêmio de roteiro. | Teve 12 indicações ao Oscar, e levou oito – filme, diretor, ator (Rex Harrison), direção de arte, fotografia, figurinos, música e som. (Só não levou os prêmios de ator coadjuvante, para Stanley Holloway, atriz coadjuvante, para Gladys Cooper, roteiro não original e montagem.) Ganhou ainda três Globos de Ouro na categoria comédia/musical – filme, ator e diretor, e mais os prêmios de filme e ator dos Críticos de Cinema de NY. |
Nas listas | 24º lugar na lista das 100 melhores comédias americanas do American Film Institute. | 91º na lista dos 100 melhores filmes americanos do American Film Institute. |
A língua como fronteira e passaporte
Pigmalião virou o texto mais popular de tudo o que o irlandês George Bernard Shaw (1856-1950) escreveu – e ele escreveu profusamente, peças, críticas de música e teatro, ensaios sobre política, economia, sociologia, panfletos, e cartas, aos milhares. A peça estreou em Londres, a cidade onde se passa a ação, em 1913, e fez um tremendo sucesso; deu origem a três filmes, dois na Holanda (em 1921 e 1937) e um na Alemanha (1935). Shaw detestava todos os filmes que haviam sido feitos com base em suas peças. Foi Gabriel Pascal, um húngaro que já havia trabalhado no teatro na Áustria e no cinema, como ator e produtor, na Itália, na França e na Alemanha, que, com muito custo, conseguiu convencer o Prêmio Nobel de Literatura (de 1925) a permitir que fosse feita uma nova versão cinematográfica de Pigmalião, com a garantia de que nem uma linha de diálogo seria tocada, e, depois, com a sugestão de que ele mesmo cuidasse do roteiro. Assim, foi o próprio Shaw que escreveu cenas adicionais, como a do grande baile na embaixada – que não aparecia na peça, era apenas citada -, e assinou o roteiro.
Pigmalião é um desses fenômenos fantásticos, obras de criadores geniais, que conseguem agradar às platéias, cair no gosto popular, sem precisar para isso ser simples, rasas; tem doses iguais de encanto, graça – e seriedade, idéias, inteligência. Contém os ingredientes básicos da obra de Shaw: a crença na capacidade do ser humano de evoluir, crescer; a crítica ácida ao conformismo social, à estrutura rigorosa de classes da sociedade britânica, da qual o uso da língua é o símbolo mais óbvio e aparente, ele próprio um estratificador social.
O filme manteve toda a força da peça, toda a difícílima alquimia de juntar profundidade e deleite.
Consta que Shaw defendeu, para fazer o professor Higgins, o ator Charles Laughton, mas acabou sendo convencido de que Leslie Howard desempenharia bem o papel e garantiria uma boa recepção no emergente mercado americano. A atriz, no entanto, foi escolha do autor; ele adorava as interpretações de Wendy Hiller no teatro, e confiava nela para fazer Eliza Doolittle, a florista que trabalha nas imediações do Covent Garden, aquela espécie assim de fronteira entre a Suíça e a Índia encravada bem no coração do então Império, a ópera de um lado da rua e a fauna maltrapilha do mercado de frutas e verduras do outro.
O filme foi um tremendo sucesso, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos; Leslie Howard eventualmente iria para a ex-colônia no ano seguinte para participar de uma superprodução da Metro, … E o Vento Levou, ao lado de outra inglesa, Vivien Leigh; Wendy Hiller, no entanto, preferiu ficar em seu país, onde fez por merecer o prestígio como uma das grandes atrizes de teatro do século e, mais tarde, o título de Dame, o correspondente feminino ao de Sir. Nos créditos de Pigmalião, aparece um “introduzindo”, antes do nome dela; é uma licença mercadológica, pois ela já havia feito um filme, antes, e voltaria a fazer vários outros, embora sempre como uma atividade secundária.
Também nos créditos de Pigmalião, como autor da montagem, consta um nome na época desconhecido; era seu quarto filme como montador. Dez anos mais tarde viria a dirigir um filme excepcional, Desencanto/Brief Encounter, e, do final dos anos 50 até os meados dos 60, seria o autor de várias obras-primas, vastos painéis, afrescos gigantescos, em que entrelaçaria com mão de mestre acontecimentos emblemáticos do século – a Segunda Guerra, a Revolução Russa, as chagas do colonialismo no Oriente Médio e na Índia – com a intensidade dos dramas pessoais de seus personagens. Está lá, num letreiro que agrupa vários técnicos, o nome de David Lean, mais tarde Sir David Lean, um dos maiores artistas da História do cinema.
Shaw seguramente gostou do resultado – tanto que transformou Gabriel Pascal no homem que negociaria os direitos de filmagens de seus trabalhos, daí em diante. Vários filmes surgiram a partir dessa combinação entre os dois.
Pascal tentou convencer Shaw a adaptar Pigmalião para um musical. O escritor recusou a idéia terminantemente. Pascal, no entanto, não desistiu dela e, depois da morte de Shaw, ofereceu-a a vários compositores – Noël Coward, Cole Porter, Rodgers e Hammerstein. Nenhum deles se dispôs a enfrentar a tarefa. Alan Jay Lerner e Frederick Loewe, no entanto, aceitaram. Mesmo para quem fez a história de Um Americano em Paris e as músicas e letras de Núpcias Reais, Brigadoon e Gigi, no entanto, não foi uma tarefa fácil; levaram anos para criar o libreto, as letras intrincadas, cheias de palavras gigantescas, as melodias ricas mas facilmente assimiláveis. Pascal morreu em 1954 sem ver o trabalho pronto; My Fair Lady estreou na Broadway em 15 de março de 1956 – e virou, instantaneamente, uma unanimidade.
O puro prazer da felicidade, da inteligência
My Fair Lady foi durante muito tempo o musical de mais longa temporada na história, com 2.717 apresentações seguidas (mais tarde, o recorde seria batido, mas até o final dos anos 90 continuava entre os dez maiores sucessos da Broadway); foi também o primeiro a ultrapassar a marca dos US$ 10 milhões de bilheteria. Enquanto o show continuava a carreira de sucesso em Nova York, as três principais figuras do elenco original – todos ingleses: os experientes Rex Harrison e Stanley Holloway e a novata Julie Andrews – foram lançar a montagem no West End de Londres, para mais críticas fascinadas, platéias lotadas e encantadas. Fizeram-se diversos discos com a trilha sonora – a da montagem original da Broadway, a da montagem original de Londres, depois as das montagens no México, Itália, Israel, Alemanha, depois a edição de 20º aniversário da estréia na Broadway…
Jack L. Warner, o mais jovem dos irmãos Warner e o último a abrir mão da empresa que a família fundou na segunda década do século, pagou US$ 5,5 milhões pelos direitos de filmagem do musical – e assumiu ele mesmo a produção do filme, coisa que fez apenas sete vezes em 50 anos de carreira. Chegou a oferecer o principal papel masculino a Cary Grant, que, sabiamente, recusou, dizendo que sequer iria ver o filme caso ele não fosse feito com Rex Harrison. Warner resignou-se com a obviedade de manter Harrison como o professor Higgins, mas, numa das decisões mais controvertidas de sua vida e do cinema americano, negou-se a dar a Julie Andrews o papel que era dela havia anos e anos; quis porque quis que Eliza Doolittle fosse Audrey Hepburn.
Foi uma baita de uma briga. Falou-se mais mal de Jack L. Warner na época do que hoje se fala do juiz Lalau ou de Wanderley Luxemburgo. Conta-se que as primeiras cenas com Audrey mostraram-se totalmente inadequadas. Ela poderia ser absolutamente convincente como a dama do final – mas não tinha nada a ver com a mendiga da primeira metade do filme. E, sobretudo, não tinha voz, não era cantora, tanto que teve que ser dublada, nos muitos números musicais, por Marni Nixon, profissional do ramo e tão assídua ao trabalho quanto esses nossos principais dubladores da TV. Possivelmente por causa disso – o fato de ter sido dublada -, Audrey não teve sequer indicação para o Oscar, enquanto o filme levava um total de 12, oito das quais transformadas em estatuetas. Mais ainda: no meio do turbilhão de prêmios para o filme, a Academia dedicaria exatamente a Julie Andrews o de melhor atriz, por Mary Poppins.
Hoje, naturalmente, discutir se My Fair Lady seria um filme melhor se Eliza Doolittle fosse Julie Andrews, em vez de Audrey Hepburn, é tão supérfluo quanto discutir o sexo dos anjos ou tentar exportar areia para o Saara. OK – Rex Harrison como Higgins e Stanley Holloway como Alfred P. Doolittle, seus mesmos papéis do palco, são soberbos, magistrais, magníficos. A graça, a leveza, o gingado suave de Holloway, as milhares de nuances da voz e da expressão facial de Harrison, isso é parte do que de melhor já se fez, na história do filmusical. Mas Audrey Hepburn está, e é, absolutamente sublime – e pronto.
E é tanto, tanto, que fica difícil, para quem já viu My Fair Lady pelo menos uma vez, se encantar com a Eliza Doolittle da então jovem Dame Wendy Hiller em Pigmalião. Na verdade, a interpretação dela, no filme de 1938, é também fantástica. Gosta-se mais dela da segunda vez em que se vê o filme. Aliás, gosta-se mais de tudo, de cada pequeno detalhe, em Pigmalião, quanto mais se vê e revê esse filme que esteve desaparecido até mesmo do mercado americano, nos anos 60 e início dos 70, nunca havia sido lançado em vídeo no Brasil, e só chegou agora às locadoras em DVD.
Um dos grandes baratos de ver agora Pigmalião é que dá vontade de rever My Fair Lady – e vice-versa. Não para ver quem está melhor do que quem, qual mostra melhor isso ou aquilo (o de 1938 mostra mais a preparação para o social, enquanto o de 1964 concentra-se mais na fonética, por exemplo), mas pelo prazer de ver a mesma beleza de história contada de jeito tão parecido em muitas coisas – as mesmas idéias básicas, as mesmas falas, às vezes os mesmos gestos, as mesmas posições dos atores em cena – e tão diferente em outras – P&B e cor, sem canções e com, uma produção sem tantos luxos de 1938, véspera da Guerra e uma superprodução de US$ 17 milhões em 1964, tempo de prosperidade no novo Império.
O americano Roger Ebert, um sujeito que vive de escrever sobre filmes mas, ao contrário da imensa maioria dos críticos, gosta de vê-los, fez belas observações sobre My Fair Lady. Repara que é um dos musicais mais alegres jamais feitos. “A maioria das canções é simplesmente sobre ser feliz. O que a história celebra não é o romance, mas a inteligência – sobre liberar-se da ignorância e ser livre para realizar as potencialidades.” Lembra que se trata, afinal, de uma dissecação do sistema de classes inglês, e crava: “Não só não se fazem mais filmes como este – não se pode mais fazer. A indústria do cinema não está mais interessada em musicais sobre adultos, quanto mais adultos com idéias”.
Idéias, inteligência, brilho, maturidade. Essas coisas que andam cada vez mais raras no cinemão americano, e que saíam aos borbotões, em Pigmalião e My Fair Lady.
Tome-se, por exemplo, a seqüência da corrida de cavalos em Ascot, de My Fair Lady, em que Jack L. Warner gastou rios de dinheiro para vestir dezenas e dezenas de figurantes com os figurinos magníficos criados por Cecil Beaton, o desenhista de produção mais chique da história. O diretor George Cukor soube usar bem o dinheiro investido. É uma das seqüências mais brilhantes que já foram feitas. Em cinco minutos estupendos, Cukor faz uma crítica da imbecilidade da sociedade burguesa mais furiosamente inteligente do que dezenas de filmes de Claude Chabrol e Marco Ferreri juntos.
Ou tome-se, apenas como outro exemplo, esta ironia ferina de Shaw, que Leslie Howard diz em Pigmalião, ao explicar que não pretende nenhum avanço sobre Eliza Doolittle, sua nova aluna: “Já ensinei um grande número de milionárias americanas a falar inglês – as mulheres mais belas do mundo.”
Infelizmente, a riqueza da frase se perde na legenda em português do DVD: “Já ensinei as mais belas mulheres do mundo”. Na verdade, não são muitos os tropeços das legendas nesta edição brasileira de Pigmalião, embora este citado seja lastimável. Há um outro tropeço feio, no entanto: a capa do DVD identifica o filme, inglesérrimo, como sendo americano. Poderiam consertar isso.
Agora, tropeção gigantesco, horroroso, deu a filial brasileira da Warner, ao lançar o DVD apenas com o filme My Fair Lady, tirando fora todas as apresentações especiais da edição americana. Como será que se justificaria isso, em termos de marketing? O espectador brasileiro não merece apresentações especiais? Brasileiro, ao contrário do americano, não tem o direito de ver as duas cenas extras com Audrey Hepburn cantando com sua própria voz, essa preciosidade? (Aliás, uma boa voz.) Mais ainda: como será que se faz isso, assim, tecnicamente? Pega-se uma matriz e aí se tem o trabalho de retirar dela uma parte? Pega-se a gravação de uma orquestra e retira-se um bando de instrumentos, deixando só os de sopro? Não seria industrialmente mais simples prensar tudo igual?
Não dá pra entender.
Uma maravilha de loura burra
No mesmo ano em que Bernard Shaw morreu, 1950, chegou aos cinemas a versão cinematográfica, dirigida por George Cukor, de uma peça de muito sucesso na Broadway, Nascida Ontem. Nela, bem ao estilo de Pigmalião, uma mulher ignorante passava por uma metamorfose de lagarta-borboleta e alçava vôo, depois de uma imersão à la Eliza Doolittle com um professor por quem, naturalmente, se apaixonava. O chefão da Columbia, Harry Cohn, pagou US$ 1 milhão pelos direitos da comédia de Garson Kanin – um preço alto que nem o que os espanhóis do Santander pagaram pelo Banespa, se se comparar com os US$ 5,5 milhões que Jack L. Warner pagaria uma década depois pelos direitos de My Fair Lady.
Como Warner faria mais tarde, Harry Cohn não queria no filme a atriz que consagrara o personagem na Broadway, Judy Holliday. “Não quero aquela judia gorda”, ele teria dito, segundo relata o livro The Columbia Story. Ainda segundo esse relato, Cohn só mudou de idéia e resolveu aceitar Judy Holliday depois de ver sua participação em outro filme baseado em texto de Garson Kanin e sua mulher Ruth Gordon, A Costela de Adão/Adam’s Rib, também dirigido por Cukor, com a fantástica dupla Katharine Hepburn-Spencer Tracy.
Harry Cohn teria feito uma besteira sem tamanho se tivesse tirado Judy Holliday do projeto. Ela é a melhor coisa do filme, disparado. O jeito de andar, o jeito de olhar as pessoas, os trejeitos, a voz – esganiçada, de taquara rachada -, é tudo a perfeita encarnação desse estereótipo que se mantém cada vez mais vivo no imaginário coletivo, que ganhou até grafia especial, a lôraburra. Os dois outros atores – Broderick Crawford como o amante milionário, e William Holden como o jornalista liberal contratado para ensinar a ela uma ou duas coisinhas para que ela não desse vexame em encontros sociais – servem apenas de escada para a interpretação de Judy Holliday.
Há uma seqüência antológica, a do jogo de baralho da loura Billie e seu amante Harry na suíte luxuosa do hotel em Washington, onde ele foi fazer lobby e ladroeira. Cukor deixa a câmara parada, estática, diante dos dois, por uns três minutos. É impagável, é uma delícia – sai faísca de Judy Holliday.
Aquele 1950 foi um ano de alguns filmes absolutamente excepcionais – A Malvada, Crepúsculo dos Deuses, O Segredo das Jóias, O Terceiro Homem – e de interpretações femininas idem – Bette Davis e Anne Baxer em A Malvada, Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses, Eleonor Parker em À Margem da Vida. Não cabe mais, meio século depois, discutir se houve injustiça, mas o fato é que a mulher que Harry Cohn chamava de “a judia gorda” levou o Oscar, o único que o filme recebeu, das cinco indicações que teve.
Ao contrário de Pigmalião e My Fair Lady, o filme envelheceu. Há que se admitir que a crítica Pauline Kael, com aquela acidez toda que a caracteriza, tinha razão quando disse que a personagem de Billie (e, por conseguinte, também o filme) fica chata quando aprende todas aquelas lições de moral e cívica e vivam-os-Estados-Unidos-da-América-e-a-democracia-que-aqui-temos-e-ninguém-mais-tem-igual. O personagem de Broderick Crawford, Harry, o amante da loura, diz algumas frases ótimas, engraçadíssimas, como “Tanta encrenca só porque ela leu um livro”, ou “Será que a gente não poderia arranjar alguém para deixá-la burra de novo?” – mas, na verdade, é monocromático, maniqueistamente babaca, um grosso grosseiro. O professor Higgins é machista, misógino, autoritário, mas, ao mesmo tempo, inteligente, fascinante, multifacetado. Harry é um chato. E a trama toda – ao contrário de outras de Garson Kanin, como A Costela de Adão, uma fineza esperta, brincalhona, divertida – é bem simplória.
Mas vale, sim, alugar o DVD. Só pela beleza de atuação de Judy Holliday já vale a pena.
Sérgio Vaz
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Sua crítica é uma deliciosa e eloqüente aula sobre bons momentos do cinema. Só me preparei para reclamar muito, quando você fala das indicações de My Fair Lady para o Oscar, fala das estatuetas ganhas, e simplesmente passa batido pelo fato de terem excluído a bela, adorável, deliciosa Audrey – essa deusa. Mais para baixo, você se redime ao cometar o fato, e eu te perdôo inteiramente por sua avaliação de que Audrey estava, e é, sublime.
Parabéns pelo trabalho.
Adoro quando há colunas comparativas, mostrando semelhanças entre produções de diferentes épocas. Dá para sentir melhor como cada diretor explorou o roteiro e, neste caso, como bons plots bem cuidados geram filmes extraordinários.
É um dos pouquíssimos filmes do género que tenho em DVD e acho que é magnífico.
My Fair Lady, com Audrey Hepburn é o filme preferido da minha filha; o filme e a atriz! Creio que ela o assistiu umas cinco, seis vezes. Orgulho da mamãe! Uma menina de 18 anos que prefere os clássicos, inclusive musicais, aos filminhos atuais e seus vampiros purpurinados.