Peggy Sue, Seu Passado a Espera / Peggy Sue Got Married

Nota: ★★★★

Peggy Sue Got Married, no Brasil Peggy Sue, Seu Passado a Espera, de Francis Ford Coppola, é um daqueles filmes feitos para a gente amar de paixão.

Não estou falando aqui dos melhores, os mais perfeitos, os geniais, os grandes, as obras-primas, Cidadão Kane, O Sétimo Selo, Ran, Apocalypse Now. Não, nada disso: estou falando dos filmes que a gente ama de paixão.

Não os que o pessoalzinho que não perde uma novidade na Mostra Internacional de São Paulo aplaude com seus narizinhos empinados, mas os que dão felicidade a quem os vê. Os que deixam quem os vê – sejam cinéfilos de carteirinha, sejam pessoas que gostam de ver filmes agradáveis, gostosos – pairando alguns centímetros acima do chão, levitando de puro prazer.

Um filme sobre quem foi jovem nos anos 50

Creio que a maior parte das pessoas está cansada de saber disso, mas é preciso registrar, já que pode haver gente que não sabe: Peggy Sue desmaia no meio da festa de reunião da turma do colégio, 25 anos depois da formatura. E de repente acorda 25 anos antes, faltando alguns dias para a  formatura.

Peggy Sue Got Married é, portanto, um filme sobre viagem no tempo. Sobre volta ao tempo da adolescência.

Foi lançado de 1986. A ação começa em 1985 – e aí Peggy Sue, 43 anos de idade, dois filhos já jovens adultos, casamento desfeito, à espera do divórcio, desmaia e acorda em 1960, com 17 aninhos, às vésperas de fazer 18.

Nos anos 1980 houve alguns filmes assim, sobre a volta ao passado, a volta à adolescência, a volta ao final dos anos 1950, início dos anos 1960, – o começo da era do rock’n’roll, o alvorecer da era em que os adolescentes passaram a ser o principal alvo da música e do próprio cinema.

Está aí para não me deixar mentir a trilogia De Volta Para o Futuro/Back to the Future. O primeiro dos três filmes de Robert Zemeckis com a dupla Michael J. Fox e Christopher Lloyd é de 1985, um ano antes de Peggy Sue. Depois viriam a parte II, de 1989, e a III, de 1990.

No primeiro De Volta para o Futuro, a ação se passa em 1985, e os personagens centrais viajam no tempo de volta até 1955.

Há muitos filmes dos anos 1970, 1980, 1990 sobre a volta ao passado, aos anos 1950, comecinho dos 60 – e também há muitos filmes sobre exatamente os anos 1950, começo dos 60. Como por exemplo A Última Sessão de Cinema, de Peter Bogdanovich, lançado em 1971, sobre adolescentes nos anos 1950 numa pequena cidade do Texas. Loucuras de Verão/American Graffiti, de George Lucas, de 1973, em que um grupo de adolescentes se diverte numa noite quente de 1962. Febre de Juventude/I Wanna Hold Your Hand, também de Robert Zemeckis, de 1978, sobre a chegada da beatlemania aos Estados Unidos, em 1964. The Wonders – O Sonho Não Acabou, de Tom Hanks, de 1996, sobre uma banda de rock que chega a fazer sucesso em 1964.

Não é uma coincidência, de forma alguma.

São filmes feitos por diretores que eram garotos ou adolescentes nos anos 1950.

E é aqui que a coisa me pega, a mim, pessoalmente. Fui garoto nos anos 1950, adolescente no início dos anos 60.

Me identifico com todos os filmes que falam sobre jovens nessa época – assim como, seguramente, todas, ou quase todas, as demais pessoas

nascidas, digamos, entre 1940-1941 e 1956. Entre os anos, já durante a Segunda Guerra Mundial, em que nasceram John Lennon, Bob Dylan, Joan Baez, e o ano em que a Hungria tentou um levante para se libertar do domínio da União Soviética e Elvis Presley gravou seu primeiro compacto para a RCA Victor, com “Heartbreak Hotel”.

Todos nós que nascemos entre 1940 e 1956 temos mil e um motivos para amar filmes que falam de quem era jovem no final dos anos 1950, início dos 60.

E Peggy Sue é exatamente isso.

Ela ainda ama o marido que a trocou por uma bimbo

O filme abre no momento em que Peggy Sue está se vestindo para ir à festa de comemoração dos 25 anos da formatura da sua turma do colegial, com a ajuda filha, Beth, moça aí de uns 21, 22 anos. Na televisão ligada, está rolando um comercial em que aparece Charlie, o Crazy Charlie, como era conhecido no colégio. Beth se entusiasma ao ver o pai – mas Peggy Sue pede que ela desligue a TV. Charlie havia abandonado a mulher pouco tempo antes, trocado Peggy Sue por uma garotinha bem mais nova.

A garotinha bem mais nova se chama Janet; chegaram a ser filmadas cenas com Ginger Taylor no papel, e o nome dela aparece nos créditos – mas as cenas acabaram não entrando na montagem final do filme.

Beth, a filha, é interpretada por Helen Hunt, essa atriz bela, simpática, competente. Helen Hunt estava tão jovenzinha que não a reconheci ao rever o filme agora (tinha visto duas vezes, antes, uma no cinema, na época do lançamento, em 1987, e outra no vídeo, em 2002).

Charlie Boddel, Charlie Doidão, é o papel de um Nicolas Cage também bem novinho, muito antes de fazer tanto filme porcaria na vida.

E Peggy Sue é interpretada pela maravilhosa, fabulosa, sensacional, arrasadora Kathleen Turner, no auge, no absoluto topo da beleza.

Já na primeira sequência, em que Peggy Sue se veste para a festa, fica absolutamente claro que ela ainda ama o marido que a trocou por uma garotinha mais jovem.

(O babaca. Como é possível abandonar aquele mulherão maravilhoso, meu Deus do céu e também da Terra?)

Ainda o ama, e ainda está com a mágoa toda de ter sido abandonada presa na garganta.

Beth pergunta quando ela vai parar de ter raiva de seu pai. – “Eu tenho certos sentimentos não resolvidos sobre o seu pai. Eu não confio nele”, Peggy Sue responde. E em seguida, enquanto põe um vestido de tecido brilhante, do tempo em que era uma garotinha, insiste: – “Gostaria que você compreendesse. É um insulto ele me deixar por aquela fulana.”

“That bimbo.” No original é isso que Peggy Sue fala – “that bimbo”.

O Dictionary of English Language and Culture da Longman tem descrição detalhada de uma bimbo: “Uma mulher jovem, atraente mas não inteligente, especialmente uma que tem uma relação sexual com um político outra figura pública”.

Como se não bastasse isso para demonstrar cabalmente que não admite a separação, ela ainda pergunta: – “Você acha que ele ama a Janet?”

O combinado era que Charlie Doidão não iria à festa. Mas é claro que ele vai. E é claro que Peggy Sue ficará inteiramente perturbada por rever o marido agora ex-marido.

No palco para receber a coroa de rainha, ela desmaia

A festa é uma superprodução. No grande salão de festas da própria escola em que aquele pessoal se formou 25 anos atrás, foram colocadas gigantescas fotos em preto-e-branco das pessoas da turma, feitas naquela época, 1960. Há uma magnífica foto de Peggy Sue como cheer leader, as torcedoras dos times da escola, segurando um daqueles bastões típicos, de saia curtinha, as coxas maravilhosas aparecendo. Mas antes mesmo de ver essa foto, o que Peggy Sue e Beth vêem é uma foto do casal de namorados firmes daquele último ano de colegial – ela e Crazy Charlie.

Na festa, somos apresentados a alguns dos colegas de Peggy Sue, com seus cônjuges. Há as duas amigas mais próximas dela, Carol (Catherine Hicks) e Maddy (a ótima Joan Allen). Há Walter, que era um dos maiores amigos de Charlie, e cantava com ele na banda de quatro que tinham (o papel de Jim Carrey, em um de seus primeiros filmes). Há Delores (Lisa Jane Persky), que era a menina mais chata da turma – e continua uma chata, 25 anos depois.

Há um ex-aluno da turma de 1960 que não está presente – mas aparece em uma das grandes fotos em uma das paredes. É Michael Fitzsimmons (Kevin J. O’Connor), o intelectual da turma, o garotão rebelde, leitor voraz, que sabia recitar Yeats, achava Ernest Hemingway uma fraude e adorava Jack Kerouac.

Richard Norvik (Barry Miller) era o nerd da turma – embora o termo ainda não fosse usado em 1986, creio. O CDF, o caxias, o que só estudava, e todo mundo (menos Peggy Sue) ignorava, achava um bobo. Só que ele tinha se dado super bem, profissionalmente – tinha se especializado em tecnologia, informática, era um empresário de sucesso, conhecido, nome nas revistas de negócios.

Há um diálogo sensacional entre Peggy Sue e sua amiga Carol. Carol havia se separado fazia anos. Com a experiência de uma veterana no mundo das mulheres sem marido, dá conselhos à amiga. – “Não é tão ruim assim. Você tem que pensar em homens como se fossem casas, e mudar sempre para o melhor.” E em seguida acrescenta: – “Eu sempre pensei que você e Charlie tinham um ótimo casamento.”

– “Acho que tivemos”, diz Peggy Sue – e a câmara do diretor de fotografia faz um close-up do rosto magnífico de Kathleen Turner, enquanto ela prossegue, com aquela voz de Kathleen Turner, capaz de dar tesão a um frade de pedra: – “Mas nos casamos jovens demais, e acabamos culpando um ao outro por todas as coisas que deixamos de fazer.”

– “Então ele começou a ter casos e você começou a ficar deprimida?”

Peggy Sue concorda com um aceno de cabeça. E tenta não parecer tão mal: – “Tenho dois filhos muito legais. E meu próprio negócio.” (Ela tem uma padaria gourmet.)

E, depois de uma pequena pausa: – “Mesmo assim, se eu soubesse naquela época o que sei agora, teria feito as coisas de modo bem diferente.”

Os organizadores da festa escolhem Richard Norvik como o rei da turma – e Peggy Sue como a rainha.

Ela é aplaudidíssima ao se encaminhar para o palco para receber a coroa, enquanto a banda convidada para animar a festa ataca de “Peggy Sue Got Married”, a canção de Buddy Holly que dá nome ao filme.

E é então que Peggy Sue desmaia.

Quando acorda, está ali mesmo na sua escola – estava havendo uma campanha de doação de sangue, ela acabava de doar, estava um tanto zonza. Uma faixa pendurada na parede mostra o ano: 1960.

Carol e Maddy se aproximam dela, percebem que ela está meio tonta, se oferecem para levá-la para a casa.

Peggy Sue vai ficando cada vez mais tonta no caminho de casa, ao olhar ao redor e ir percebendo que tudo estava como 25 anos antes, quando ela era uma garotinha de 17 aninhos, indo pra 18.

Em casa, encontra a mãe, Evelyn, o pai, Jack, e a irmãzinha de uns 14 anos, Nancy. Vai ficando cada vez mais espantada.

Evelyn, a mãe, é o papel de Barbara Harris, a falsa médium de Trama Macabra, o último filme de Alfred Hitchcock. Jack, o pai, é o de Don Murray, que em 1956 fez o vaqueiro que se apaixona pela cantora de cabaré interpretada por Marilyn Monroe em Nunca Fui Santa. E a garotinha Nancy é interpretada pela filha do diretor, Sofia Coppola, 15 anos de idade em 1986.

Que elenco, não? Em papéis menores, Joan Allen, Jim, Carrey, Barbara Harris, Don Murray, Sofia Coppola, o veteraníssimo John Carradine. E ainda tem, no papel de Elizabeth, a avó de Peggy Sue, a também veteraníssima Maureen O’Sullivan, a Jane dos filmes em que Johnny Weissmuller fazia o Tarzan, nos anos 30, e mãe de 7 filhos com John Farrow, inclusive Mia Farrow.

Volver a los 17 después de vivir un siglo

“Se eu soubesse naquela época o que sei agora, teria feito as coisas de modo bem diferente.”

Nem meia hora depois de falar a frase, Peggy Sue volta ao tempo em que tinha 17 anos e namorava Charlie Bodell, o Crazy Charlie, Charlie Doidão – que, 25 mais tarde, iria abandoná-la por uma bimbo.

Volver a los 17, como na canção de Violeta Parra. Volver a los 17 después de vivir un siglo.

Uma mulher de 43 anos que de repente se vê de novo com 17! Com toda a bagagem de uma vida! Uau! Quanta possibilidade diante dessa idéia!

Ingmar Bergman faria um profundíssimo estudo psicológico, comportamental, de todas as escolhas diferentes que a protagonista poderia fazer.

Mas Peggy Sue Got Married não é um drama existencial de Ingmar Bergman – é só uma comedinha romântica de Hollywood. Danada de bem feita, charmosa, gostosa, engraçada, divertida, com aqueles bons atores todos – e aquela protagonista linda de tirar o fôlego e talentosa demais da conta.

Danada de bem feita, deliciosa – mas uma comedinha romântica de Hollywood. Dirigida por um dos grandes do cinema americano, é verdade também – mas uma comedinha romântica de Hollywood. E então não há grandes dúvidas metafísicas, profundas considerações sobre o significado da vida o amor a morte.

Ao voltar aos 17 depois de viver um quarto de século, Peggy Sue só comete uma pequena escapadela, no plano afetivo, do que o destino havia traçado para ela desde sempre: permite-se uma aventurinha com Michael Fitzsimmons, o tal colega rebelde, intelectual, um tanto atraente. Mas logo percebe que seu interesse é mesmo pelo Crazy Charlie.

Tem uma hora lá que até parece que Peggy Sue vai usar os conhecimentos de quem vivia em 1980 para alterar os rumos da humanidade. Passa algumas informações sobre conquistas tecnológicas para Richard Norvik, o estudioso, o nerd – é só para ele que ela confidencia que fez uma viagem do tempo, voltou de 1985. Chega até a pensar em lançar, ela mesma, para ficar muito rica, a meia-calça, artigo inexistente em 1960. Mas os roteiristas – Jerry Leichtling    & Arlene Sarner, eles também autores do argumento, da história – acabam meio que esquecendo dessa coisa, e vão adiante.

A única tentativa mais real que Peggy Sue faz de mexer na História da humanidade é entregar para Charlie, que cantava na sua banda, e pretendia ser cantor profissional, uma canção, com a certeza de que ela faria um sucesso gigantesco. Charlie acha interessante aquela coisa de ”She loves you”, mas desaprova o “yeah, yeah, yeah”, e muda para “she loves you, uuu, uuu, uuu”…

Um cineasta que alterna afrescos com pequenos retratos

Francis Ford Coppola é um realizador fascinante por vários motivos. Ele demonstra fazer uma distinção completa entre os filmes que são realmente dele, pessoais, e os que ele apenas dirige, sem ter um envolvimento pessoal com o projeto.

Em 1982, depois de ter feito três produções grandiosas, épicas, painéis, afrescos gigantescos, The Godfather (1972), The Godfather: Part II (1974) e Apocalypse Now (1979). Coppola fez um filme absolutamente pessoal, uma história de amor com um visual inesperado, surpreendente, féerico, O Fundo do Coração/One From the Heart. Para fazê-lo, estourou completamente o orçamento e assumiu dívidas gigantescas. Chegaria a dizer que os filmes que fez no resto dos anos 80 e em parte dos 90 – Vidas Sem Rumo (1983), Cotton Club (1984), este Peggy Sue de 1986, O Poderoso Chefão III (1990), Jack (1996) e O Homem Que Fazia Chover (1997) – foram para pagar as dívidas contraídas com One From the Heart.

Tomo a liberdade de reproduzir aqui trecho do que escrevi sobre O Fundo do Coração:

É fascinante como Coppola alternava, naqueles anos 70 e 80, filmes grandiosos com outros mais íntimos, amplos afrescos com pequenos retratos. Obras mais, digamos assim, industriais, com filmes pessoais. One From the Heart é tão pessoal que ele conseguiu enfiar diante da câmara seu pai e sua mãe. Numa hora lá qualquer, Frannie, a personagem central, entra no elevador de um hotel, e dentro do elevador está um simpático casal de senhorinhos já idosos. São Italia Coppola e Carmine Coppola. Mamãe e papai.

Entre o primeiro Godfather, de 1972, e o segundo, de 1974, legítimos representantes de obras grandiosas, ele lançou A Conversação, um filme bem em tom menor, que dá para se definir como pessoal. Depois de outra grandiosidade, Apocalypse Now, fez One From the Heart.

Ele é tão preocupado com essa coisa de fazer filmes pessoais que, em dois dos filmes que dirigiu nos anos 90, fez questão de botar no título original o nome do autor do livro em que as obras se basearam: Bram Stoker’s Dracula, de 1992, um épico, uma sinfonia, e John Grisham’s The Rainmaker (no Brasil, O Homem Que Fazia Chover), bem mais modesto. Em 2009, aos 70 anos de idade, fez Tetro, uma obra personalíssima, em que repassa a história de sua própria família. Passou pelo Brasil em dezembro de 2010 para divulgar o filme e, em todas as muitíssimas entrevistas que deu, salientou de novo essa coisa de que a partir de então só queria fazer filmes “modestos e pessoais”.

Não é dinheiro público, ele pode usar quantos parentes quiser

Interessante também é essa coisa de ele gostar de usar pessoas da família em seus filmes. Colocou pai e mãe numa sequência de O Fundo do Coração. Usou o pai, Carmine Coppola, como compositor: a trilha sonora de O Poderoso Chefão é do felliniano Nino Rota – mas a valsa, o tema principal, é de Carmine, que também compôs temas para Apocalypse Now e Vidas Sem Rumo.

Sofia, a filha, nascida em 1971, Coppola botou como atriz ainda criancinha, tanto no Poderoso Chefão de 1972 quanto no II, de 1974. Arranjou papéis para ela em Vidas Sem Rumo, O Selvagem da Motocicleta, Cotton Club.

Assinou junto com Sofia o argumento e roteiro de Life Without Zoe, um dos três episódios de Contos de Nova York, o filme de 1989 que tem os outros episódios dirigidos por Woody Allen e Martin Scorsese. A Coppolinha tinha, em 1989, 18 aninhos. Ah, sim: papai Carmine faz uma participação especial como ator em Life Without Zoe. Trabalha no episódio também Talia Shire, irmã de Francis, filha de Carmine, tia de Sofia. Talia Shire também trabalhou nos dois primeiros Godfather.

Se Coppola fosse um diretor de empresa estatal, ou um ministro de governo, seria um grande adepto do nepotismo. Como o negócio dele não é com dinheiro público, essa característica de trabalhar com parentes é uma coisa sensacional.

As voltas que o mundo dá: em 1999, Kathleen Turner seria dirigida por Sofia Coppola em Virgens Suicidas, o primeiro longa-metragem da moça como diretora.

Buddy Holly morreu aos 22 anos, mas continua aí

Nos créditos iniciais de Peggy Sue Got Married, ouvimos Buddy Holly cantando “Peggy Sue Got Married” – a mesma canção que a banda toca na festa na hora em que é anunciado que Peggy Sue foi escolhida a rainha da turma.

Como este é um filme sobre adolescentes em 1960, ouvimos ao longo dos seus deliciosos 103 minutos um porrilhão de canções do então jovenzinho rock’n’roll. O IMDb relaciona 15 canções, apresentadas por vários cantores e conjuntos que desapareceram na poeira do tempo: The Champs, Dion & The Belmonts, Little Anthony & the Imperials, The Diamonds, Lloyd Price, Jimmy Clanton, Phil Upchurch Combo, The Olympics, The Duprees, Hank Ballard…

Buddy Holly é diferente. Se o eventual leitor não conhece Buddy Holly, o problema é dele, leitor – não de Buddy Holly.

Numa maravilhosa canção de You’re the One, seu álbum de 2000, “Old” Paul Simon diz que “Buddy Holly still goes on” – Buddy Holly continua aí. A letra começa assim: “A primeira vez que ouvi ‘Peggy Sue’ eu tinha 12 anos. A Rússia estava com naves e foguetes lá em cima e a guerra era fria. Muitas guerras vieram e foram embora. O genocídio continua aí. Buddy Holly continua aí, mas seu catálogo foi vendido.”

Sim: os direitos das canções compostos por Buddy Holly foram comprados por um fã absoluto dele, Paul McCartney. No quarto disco daquela banda da qual fez parte, Beatles For Sale, lançado em dezembro de 1964, Paul McCartney e seus colegas cantaram uma das canções de Buddy Holly, “Words of Love”, numa imitação absolutamente perfeita, acorde por acorde, sílaba por sílaba.

“Peggy Sue Got Married” é uma das primeiras canções pop que são uma sequência de uma outra. “Peggy Sue”, de autoria de Jerry Allison e Norman Petty, foi lançada como compacto simples em julho de 1957, e foi um tremendo sucesso; ficou 16 semanas na lista dos mais vendidos da Billboard, chegando ao terceiro lugar. É um rockinho absolutamente adolescente, bobinho e delicioso. A letra começa assim: “If you knew Peggy Sue / Then you’d know why I feel blue without Peggy / My Peggy Sue / Oh well, I love you, gal, yes, I love you, Peggy Sue”.

Dois anos depois, o próprio Buddy Holly compôs letra e música da sequência, a “Peggy Sue Got Married” que dá nome ao filme de Coppola. A letra é um primor de doçura juvenil. É como se o narrador estivesse contando uma fofoca para um amigo: sabe a Peggy Sue, cara? É, aquela lá, que estava em tudo que era música. Pois é: ouvi dizer que ela se casou! Não tenho certeza – mas é o que estão dizendo.

No original, é assim:

Please don’t tell, no-no-no

Don’t say that I told you so

I just heard a rumour from a friend

I don’t say that it’s true

I’ll just leave that up to you

If you don’t believe I’ll understand

You recall a girl that’s been in nearly every song

This is what I heard, of course the story could be wrong

She’s the one, I’ve been told

Now, she’s wearing a band of gold

Peggy Sue got married not long ago

You recall a girl that’s been in nearly every song

This is what I heard, of course the story could be wrong

She’s the one, I’ve been told

Well, she’s wearing a band of gold

Peggy Sue got married not long ago

Peggy Sue got married not long ago

Buddy Holly gravou sua canção em dezembro de 1958 – e nunca soube do sucesso que ela teria. Antes que o compacto com a canção fosse lançado, morreu – aos 22 anos de idade -, num acidente de avião durante uma turnê no Meio Oeste, em que a música perdeu também Richie Valens e The Big Bopper.

Na sua canção “American Pie”, Don McLean se refere ao acidente de 3 de fevereiro de 1959 como “o dia em que a música morreu”.

A frase impressionante, emocionante, seria a inspiração do título da capa da revista Time em dezembro de 1980, quando John Lennon foi assassinado: “When the music died”.

Viveu só 22 anos, mas continua aí. Sua música influenciou, conforme enumera a Wikipedia, Elvis Presley, Bob Dylan, The Beatles, The Rolling Stones, Eric Clapton, The Hollies (o nome do conjunto é homenagem a ele, claro), Elvis Costello, Elton John.

Deu tudo muito certo na escolha dos atores      

Esta anotação já está longa até para os meus padrões, mas, antes de reproduzir outras opiniões sobre o filme, gostaria de comentar a questão das idades dos atores.

Para mostrar personagens aos 17 anos e também na faixa dos 40 e tanto, outro diretor muito provavelmente optaria por escolher um par de atores para cada papel. Francis Ford Coppola optou por usar o mesmo ator nas duas fases – tão absolutamente diferentes – da vida.

Acabou dando certo – e, aí, Coppola contou com muita sorte. A sorte ajuda demais no quesito casting de atores, como eu digo aqui volta e meia, ao comentar que fulano e fulana haviam sido inicialmente pensados para tais papéis, mas acabaram substituídos por sicrano e sicrana, que ficaram ótimos.

Pensou-se em Dennis Quaid para o papel de Charlie e em Debra Winger para o de Peggy Sue. Nada contra Dennis Quaid, e muitíssimo menos contra Debra Winger, uma maravilhosa atriz que admiro profundamente – mas a verdade é que foi muito bom para o filme que não tenha rolado nem com um nem com outro.

Em 1986, ano de lançamento do filme, Kathleen Turner, de 1954, ainda estava longe dos 43 anos da Peggy Sue madura do início da narrativa – tinha 32. E não há problema algum em que ela aparente seus 32 lindos anos quando volta a ter 17, porque, afinal, é ela adulta, madura, que foi transportada para o passado.

Já Nicolas Cage (que, aliás, é sobrinho de Francis Ford Coppola, primo de Sofia Coppolinha), nascido em 1964, estava com apenas 22 anos – perfeito para fazer aquele Crazy Charlie adolescente que aparece ao longo de quase todo o filme. Para fazê-lo parecer mais velho, na única sequência em que o vemos de volta a 1985, houve lá um trabalho árduo do departamento de maquiagem, e pronto.

Interessante é ver que a bela e simpática Helen Hunt, nascida em 1963, estava com 23 anos. Tinha, portanto, apenas nove anos menos que a atriz que faz sua mãe, e era um ano mais velha que o ator que fazia seu pai.

Problema nenhum. Deu tudo certo.

“Uma comédia humana, uma memória nostálgica”

Peggy Sue Got Married teve três indicações ao Oscar: melhor atriz para Kathleen Turner (a única indicação ao prêmio que a fabulosa atriz teve), melhor fotografia para Jordan Cronenweth e melhor figurino para Theadora Van Runkle, uma extraordinária maga das pranchetas e tesouras.

Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4 para a maravilha: “O radiante poder de estrela de Turner segura este filme agradável, muitas vezes melancólico, cujo roteiro deixa muitos fios suspensos. A atuação desagradável de Cage é outro problema.”

Como diria Marina, minha neta: ah, fala sério, Maltin! Nicolas Cage faz um Charlie careteiro, falastrão, bobão – exatamente como o personagem, e portanto ótimo. Comparada ao que faria em dezenas de outros filmes algumas décadas mais tarde, a atuação de Nicolas Cage é extraordinária! Quase um Laurence Olivier…

O grande Roger Ebert deu a cotação máxima de 4 estrelas, e, ao final de seu texto brilhante, resumiu que era um dos melhores filmes do ano.

Dá vontade de transcrever o texto inteiro. Na verdade, meu texto poderia perfeitamente ir pro lixo, e ficaria valendo só a transcrição do que Roger Ebert escreveu.

Aqui vão trechos.

“Você alguma vez já recebeu uma mensagem telefônica de alguém por quem você esteve apaixonado aos 17 anos? E você não sentiu, por um segundo, que vinha daquela adolescente de tanto tempo atrás, e não da adulta que deixou a mensagem? Peggy Sue Got Married é várias coisas – uma comédia humana, uma memória nostálgica, uma história de amor –, mas há momentos em que ele é simplesmente assustador, porque desperta memórias tão vívidas em nós.

“O que você diria, sabendo o que você agora sabe, às pessoas que você amava quando tinha 17 anos? O que você sentiria se pegasse o telefone e ouvisse a voz da sua avó? Você diria a ela que ela iria morrer daí a dois anos e três meses? Não, mas você saberia disso, e então seu coração não daria um pulo até sua garganta? Peggy Sue Got Married é cheio de momentos como este.

É como visitar um cemitério em que as pessoas ainda estão vivas.

E no entanto é uma comédia. Frank Capra fazia comédias como esta, em que o humor nascia de um drama de emoções humanas profundo, até mesmo sentimental.”

Ebert dedica um longo parágrafo a elogiar a atuação de Kathleen Turner, que – diz ele – é preciso ver para acreditar. O crítico que amava os filmes que via mostra que a atriz não tenta parecer que tem 17 anos – mas, aos 32, atua como uma adolescente ao fazer certas mudanças na forma com que fala e com que se move. “Ela fala mais impetuosamente, não esperando pela resposta das outras pessoas, e caminha daquele jeito desatento daqueles que ainda não tropeçaram o suficiente para caminhar com cuidado. Há um momento em que ela se joga na sua cama, e não importa a sua aparência, mas o que vemos é uma garota de 17 anos esparramada lá. Sua atuação é um livro didático, um estudo sobre a linguagem corporal. Ela sabe que um dos sintomas de envelhecer é que você arranja os seus membros mais cuidadosamente quando em repouso.”

Ah… Se eu pudesse voltar aos 17 anos, tentaria aprender a escrever sobre filmes como Roger Ebert escreve.

Ou não. Talvez dedicasse todo o esforço para ser mais cuidadoso e não perder a garotinha por quem estava apaixonado desde os 14. Sei lá. Vai saber.

Anotação em junho de 2020

Peggy Sue, Seu Passado a Espera/Peggy Sue Got Married

De Francis Ford Coppola, EUA, 1986

Com Kathleen Turner (Peggy Sue)

e Nicolas Cage (Charlie Bodell), Helen Hunt (Beth Bodell, a filha), Barry Miller  (Richard Norvik, o colega estudioso), Catherine Hicks (Carol Heath, amiga), Joan Allen (Maddy Nagle, amiga), Kevin J. O’Connor (Michael Fitzsimmons, o colega rebelde), Jim Carrey (Walter Getz, amigo de Charlie), Lisa Jane Persky (Delores Dodge, a colega chata), Lucinda Jenney (Rosalie Testa), Wil Shriner (Arthur Nagle), Barbara Harris (Evelyn Kelcher, a mãe), Don Murray (Jack Kelcher, o pai), Sofia Coppola (Nancy Kelcher, a irmã mais jovem), Maureen O’Sullivan (Elizabeth Alvorg, a avó), Leon Ames (Barney Alvorg, o avô), John Carradine (Leo)

Argumento e roteiro Jerry Leichtling & Arlene Sarner

Fotografia Jordan Cronenweth

Música John Barry

Montagem Barry Malkin

Casting Pennie DuPont

Produção Paul R. Gurian, Barrie M. Osborne, TriStar Pictures,

Rastar Pictures, Zoetrope Studios, Delphi V Productions. DVD Obras Primas M.D.R.V.

Cor, 103 min (1h43)

R, ****

Disponível em DVD.

4 Comentários para “Peggy Sue, Seu Passado a Espera / Peggy Sue Got Married”

  1. Como cheguei ao seu maravilhoso e sensível comentário (ou seria estudo?) sobre “Peggy Sue”? Ao assistir ontem à terceira temporada de “Método Kominsky” com minha filha e dar de cara com Kathleen Turner como a ex de Michael Douglas.
    Comentei que aquela senhora fora uma linda, ótima e sexy atriz que brilhou décadas atrás e, claro, me lembrei de Peggy Sue! Obrigada pelo belo texto!

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