Sublime Obsessão / Magnificent Obsession

Nota: ★★½☆

Anotação em 2011: A trama de Sublime Obsessão – filmado em 1935 por John M. Stahl e em 1954 por Douglas Sirk – é o que pode haver de mais improvável, difícil de se acreditar, engolir. Na primeira parte da história, o principal personagem masculino é uma figura abjeta. Depois de um trauma e um ensinamento religioso, cristão, ele passa por uma gigantesca transformação, de pequeno canalha vira santo.

Para que se admita essa história e se goste dela, é necessário acreditar em Deus, nos ensinamentos básicos da religião – e em milagres. Por isso, e também pelo excesso de dramas, de implausibilidade, é absolutamente surpreendente que o romance tenha sido um grande sucesso, e que tenha sido transformado em filme duas vezes, por grandes diretores e elenco de astros no auge de sua fama, ou prestes a chegar lá – também com sucesso.

Não conheço o livro em que se basearam os filmes de 1935 e 1954, de autoria de Lloyd C. Douglas, um nome que, confesso sem vergonha, não me diz absolutamente nada. Mas o livro serviu de ponto de venda para as duas versões cinematográficas. No cartaz do filme de 1935, se diz: “Um romance notável… Agora um grande filme!” E, no de 1954: “A grande história de amor… pelo autor de The Robe”.

The Robe também virou filme, chamado aqui de O Manto Sagrado, um daqueles épicos bíblicos que Hollywood fazia amiúde nos anos 50 – conta a história de um tribuno romano que chefia o grupo de soldados encarregado de crucificar Jesus Cristo, e que acaba ficando com o manto usado pelo prisioneiro.

Lloyd C. Douglas parece, portanto, um mensageiro da palavra de Cristo.

De fato era. Vejo agora que Lloyd C. Douglas (1877-1951), filho de um pastor luterano, seguiu a profissão do pai. Seu primeiro livro foi exatamente Magnificent Obsession, publicado em 1929. Hollywood levou, portanto, apenas seis anos para fazer a primeira versão cinematográfica do livro. As obras seguintes do escritor também tinham mensagens cristãs.

Nada contra a mensagem cristã. Não, absolutamente nada contra o ame ao próximo como a si mesmo, faça o bem sem saber a quem. Mas a trama que o autor criou para passar essa mensagem é de fato o que pode haver de mais improvável, de absolutamente artificial.

A mulher de um médico benemérito e um playboyzinho bêbado

São dois protagonistas, um homem e uma mulher. Helen (interpretada por Irene Dunne em 1935, na foto acima, e Jane Wyman em 1954) é uma jovem que se casa com um homem bem mais velho, o dr. Hudson (dr. Phillips na segunda versão), um grande médico, fundador de um hospital, Brightwood, num subúrbio não muito distante de Nova York. Helen é muito amiga da filha do primeiro casamento do marido, Joyce (Betty Furness em 1935, Barbara Rush em 1954). No primeiro filme, as duas têm praticamente a mesma idade; no segundo, Helen é um pouco mais velha que a enteada.

Robert Merrick (interpretado por Robert Taylor em 1935 e por Rock Hudson em 1954) é neto de um magnata de Detroit, um playboyzinho, que se mete em encrencas a toda hora e está quase sempre bêbado.

O destino fará que o dr. Hudson/dr. Phillips e Robert estejam ao mesmo tempo no lago próximo do Hospital Brightwood – e os dois se afogam e precisam de socorro. Só havia um equipamento de oxigênio disponível no local; Robert é atendido primeiro, e se salva. O dr. Hudson/dr. Phillips morre.

Revela-se então que as finanças pessoais do dr. Hudson/dr. Phillips estão em péssima situação. Embora tivesse ganho muito dinheiro com seu hospital bom e rentável, não deixa, ao morrer, praticamente nada para manter a mulher e a filha.

Diversas pessoas se apresentam na casa dos Hudson/Phillips, para prestar homenagem ao morto e dizer à viúva e à filha que o médico ajudou a cada uma delas, foi fundamental para que elas se dessem bem na vida. Oferecem às duas mulheres ajuda em tudo que elas precisarem.

Robert, o homem que todos, inclusive ele próprio, entendem que teria sido o responsável pela morte do grande médico, encontra-se por acaso com Helen, e apaixona-se no ato, antes de saber quem ela é.

Mais tarde, Robert será responsável – embora não intencionalmente – por um grave acidente de trágicas conseqüências para Helen.

Revelar isso não chega a ser um spoiler. Quando acontece o grave acidente, estamos ainda antes da metade do filme. De cada um dos dois filmes.

Entre os dois filmes, uma guerra mundial, o início de outra, mudanças em tudo

Para quem gosta de cinema, ou de História, é uma maravilha ver as duas versões, feitas com um intervalo de 20 anos, uma merrequinha de tempo, uma pulguinha na História, mas ao mesmo tempo um espaço de tempo gigantesco, em que coube uma guerra mundial, o início de uma outra guerra mundial, a fria, uma imensa mudança nos costumes. Em 1935, os Estados Unidos estavam afundados na Grande Depressão; em 1954, eram a maior potência do Ocidente – incrível o que fazem 20 anos, merrequinha de tempo.

Os dois filmes, o de John M. Stahl e o de Douglas Sirk, estão disponíveis agora em DVD no Brasil, num lançamento da Versátil Home Vídeo. A Versátil tem feito um belíssimo trabalho; lança filmes europeus importantes, fundamentais, em boas edições; tudo leva a crer que é uma empresa séria, que negocia com os distribuidores originais dos filmes, como a francesa MK2, e faz tudo legalmente – ao contrário de tantas pequenas empresas que, embora tenham registro no Ministério da Fazenda, são praticamente piratas, lançam sem cuidado algum as obras que deixaram de ter detentores de direitos autorais, caíram no domínio público. Mais recentemente, a Versátil tem lançado classicões da era de ouro do cinema americano, filmes que as próprias empresas, as majors, as atuais donas dos maiores estúdios de Hollywood, não têm interesse em lançar porque não seria uma operação lucrativa dentro dos termos delas. Como é pequena, como tem mais agilidade, como é um contra-torpedeiro, e não um porta-aviões, a Versátil pode, mediante acordo com as majors, lançar alguns filmes que terão vendagem pequena, porém garantida, numa operação lucrativa para ela.

Talvez tenha me estendido muito nessa coisa industrial, mas acho isso importante.

O fato é que o DVD duplo lançado pela Versátil, em acordo com a Universal, permite que a gente veja os dois filmes, faça as comparações entre os dois, veja as grandes diferenças, as semelhanças.

Todos os atores estavam no auge da fama

Já até citei mais acima um ponto em que as duas versões se assemelham. Foram feitos por diretores respeitados, com elenco de astros no auge de sua fama, ou prestes a chegar lá.

De John M. Stahl (1886-1950), que começou a dirigir ainda no cinema mudo, o crítico e historiador francês Jean Tulard diz: “em definitivo, os melodramas de Stahl nem sempre são aqueles folhetins lacrimejantes tantas vezes criticados. Uma revisão de sua obra se faz necessária”. Seria bom mesmo uma revisão. Stahl levou para as telas diversas histórias que seriam depois refilmadas – o que por si só já comprova sua importância. A Esquina do Pecado/Back Street, de 1932, seria refeito duas vezes, a primeira em 1941, a segunda em 1961. Imitação da Vida, de 1934, e este Sublime Obsessão, de 1935, seriam refilmados por Douglas Sirk.

Irene Dunne foi uma das maiores estrelas do cinema americano dos anos 1930 e 1940. Já era grande, imensa, em 1935, após os grandes sucessos de Esquina do Pecado/Back Street, de 1932, do próprio diretor Stahl, e de Ann Vickers, de 1933, um excelente filme muito à frente de seu tempo.

Robert Taylor era um grande galã, que fez sonhar nossas mães – ou, dependendo da idade do eventual leitor, nossas avós, ou, quem sabe, bisavós. Começou a carreira um pouco depois de Irene Dunne, em 1934, mas, ao longo dos 20 anos seguintes, beijou em cena todas as grandes atrizes de Hollywood – o primeiro beijo da então adolescente Liz Taylor foi com o sujeito que tinha o mesmo sobrenome dela, e nenhum parentesco. No meio do caminho entre Irene Dunne e Liz Taylor, o cara contracenou com, entre muitas outras, Greta Garbo e Vivien Leigh.

Jane Wyman, a Helen da segunda versão, tinha em comum com Irene Dunne, a estrela da primeira, pelo menos três características: não era extraordinariamente bela, era extraordinariamente boa atriz, e era adorada pelo público americano.

E só isso, essa noção de que Jane Wyman e Irene Dunne não eram extraordinariamente belas, mas eram grandes atrizes, e por isso viraram grandes estrelas, já dá bastante da dimensão do fosso que separa os anos de ouro de Hollywood do que veio depois.

E, para completar o quadro dos quatro atores que fizeram os dois protagonistas da história, há Rock Hudson. Ele é, seguramente, mais conhecido das novas gerações que os três outros. Tinha começado a carreira como figurante no final dos anos 40, e em meados dos anos 50 já era grande e estava ainda em ascensão. Um ano depois da segunda versão de Sublime Obsessão, estrelaria a superprodução Giant, Assim Caminha a Humanidade; trabalharia de novo com Douglas Sirk em 1955 em Tudo Que o Céu Permite/All That Heaven Allows (de novo com Jane Wyman), e em 1956 em Palavras ao Vento/Written on the Wind.

Muitas características em comum, diálogos que se repetem – mas há também grandes diferenças

O filme de 1935 é, naturalmente, em preto-e-branco – magnífico, belíssimo preto-e-branco. Dá para perceber que foi todo feito em estúdio. O de 1954 é em Technicolor – e, meu Deus do céu e também da terra, como Douglas Sirk abusava das cores fortes em seus filmes em cores. Há mais cores fortes em cada tomada de Magnificent Obssesion segunda versão que na bandeira do Brasil.

O segundo tem muito mais tomadas ao ar livre, fora de estúdio, do que o primeiro. Mas dá para perceber que, exatamente como o primeiro, o segundo foi basicamente feito dentro de estúdio – inclusive muitas das tomadas que parecem ter sido feitas ao ar livre.

Há diálogos que se repetem quase palavra por palavra, nos dois filmes. A conversa entre Bob Merrick e o escultor Edward Randolph (Ralph Morgan na versão de 1935, Otto Kruger na 1954), na noite em que o playboy herdeiro milionário chega trêbado, e na manhã seguinte, em que ouve sobre os ensinamentos de Cristo, é transcrita quase palavra por palavra na refilmagem de Douglas Sirk. O diálogo final (que, obviamente, não vou reproduzir) também é praticamente idêntico nos dois filmes.

As seqüências de momentos tristes e momentos idílicos que no primeiro filme acontecem em Paris (na foto grande acima, em preto-e-branco) e no segundo, numa pequena cidade da Suíça, também acabam sendo bastante parecidas.

Mas há diferenças significativas.

Desde a abertura, a apresentação da trama e dos personagens. No primeiro filme, não se focaliza o lago uma única vez. Helen, a esposa, e Joyce, a filha do médico, chegam ao hospital – e lá têm a notícia de que ele morreu, enquanto o equipamento de oxigênio estava sendo usado pelo plaboy Bob Merrick. O segundo filme abre com tomadas de Bob Merrick numa lancha no lago, na velocidade máxima.

Em muitos quesitos, o segundo roteiro é melhor, mais esperto, mais safo que o primeiro.

Três escritores assinaram o roteiro do filme de 1935 – Sarah Y. Mason, Victor Heerman e George O’Neil. No filme de 1954, uma pessoa, Robert Blees, assina o roteiro, uma outra, Wells Root, assina a adaptação – seja lá o que isso for; os créditos afirmam que o roteiro se baseou no do filme anterior – mas não se cita o nome de George O’Neill, sabe-se lá por quê.

No primeiro filme, os roteiristas tentaram criar um clima com um quê de graça, de comédia, ao apresentar o personagem de Bob Merrick. Meu, não dá para criar um quê de graça num personagem de melodrama que, embora sem querer, acaba provocando a morte do herói e depois um grave acidente com a heroína. Algumas das seqüências que mais me incomodaram no primeiro filme foram exatamente aquelas em que Robert Taylor tenta parecer um bêbado imbecil engraçado. Não há lugar para graça em um dramalhão danado.

Depois que alguém erra primeiro, é mais fácil consertar. Por exemplo: na primeira versão, a irresponsabilidade do playboy fica sem qualquer explicação. O roteirista e o adaptador da segunda versão consertaram a apresentação do personagem. Logo de cara, ele explica por que é tão hedonista, por que abandonou a faculdade de Medicina e agora só se dedica a aproveitar a vida: seu pai morreu quando tinha apenas 42 anos, e então ele percebeu como a vida é curta, e, já que a vida é curta, deve-se curtir a vida. Isso deixa o personagem mais crível, menos antipático.

O acidente que deixa Helen com a horrorosa sequela também foi apresentado na segunda versão de maneira muito mais plausível do que na primeira.

Os dois filmes pecam porque a mensagem é boa, mas a história não é

Agora, se formos tentar, ao fim e ao cabo, comparar o conjunto, os dois filmes como um todo…

Pelo que vi nos guias de filmes, o placar é amplamente pró Douglas Sirk. Claro, claro, Douglas Sirk é um gênio. As estampas, os rótulos colam. São feitos para isso, aliás.

Eu, aqui, quieto no meu cantinho, digo que deu empate. Tanto John M. Stahl quanto Douglas Sirk se basearam em uma história problemática. Os problemas da história estão igualmente presentes nos dois filmes. A mensagem é boa – mas, pô, se você tem uma mensagem, mande pelo correio, pelo e-mail, ou use o palanque ou o púlpito.

As duas versões pecam porque põem a mensagem acima da história que pretende passar a mensagem. A mensagem é boa, sem dúvida alguma. A história é ruim, é o que pode haver de mais improvável, difícil de se acreditar, engolir.

Quem já era a favor da mensagem continuará. Duvido que qualquer um dos dois filmes conquiste um único novo adepto para os ensinamentos cristãos.

Sublime Obsessão/Magnificent Obsession

De John M. Stahl, EUA, 1935

Com Irene Dunne (Helen Hudson), Robert Taylor (Robert Merrick), Charles Butterworth (Tommy Masterson), Betty Furness (Joyce Hudson), Sara Haden (Nancy Ashford), Ralph Morgan (Randolph)

Roteiro Sarah Y. Mason, Victor Heerman e George O’Neil

Baseado no livro homônimo de Lloyd C. Douglas

Fotografia John J. Mescall

Música Franz Waxman

Produção Universal. DVD Versátil e Universal.

P&B,112 min

**1/2

Título em Portugal: Sublime Expiação. Título na França: Le Secret Magnifique

Sublime Obsessão/Magnificent Obsession

De Douglas Sirk, EUA, 1954

Com Jane Wyman (Helen Phillips), Rock Hudson (Bob Merrick), Barbara Rush (Joyce Phillips), Agnes Moorehead (Nancy Ashford), Otto Kruger (Edward Randolph), Gregg Palmer (Tom Masterson), Sara Shane (Valerie Daniels)

Roteiro Robert Blees

Adaptação Wells Root

Baseado no roteiro de Victor Heerman e Sarah Y. Mason (George O’Neill, que também assina o roteiro anterior, não é citado)

Baseado no livro homônimo de Lloyd C. Douglas

Fotografia Russell Metty

Música Frank Skin

Produção Ross Hunter, Universal International. DVD Versátil e Universal.

Cor, 108 min

**1/2

Título em Portugal: Sublime Expiação. Título na França: Le Secret Magnifique

6 Comentários para “Sublime Obsessão / Magnificent Obsession”

  1. Eu gosto bastante da versão de Douglas Sirk. A de Sthal também é bastante boa. Certamente que a história é pouco verosímil. Acontece pouca coisa. As coisas poderiam acontecer de uma forma mais interessante (a enteada não gostar de Bob; Helen descobrir que o seu ajudante é aquele que lhe “provocou” o acidente e não querer estar com ele). Apesar de tudo, são belos filmes. São de uma sensibilidade extrema. Eu quase que chorei ao longo do filme. E dou os parabéns às duas protagonistas de ambas as versões. Conseguem sensibilizar o espectador. A mensagem está realmente bem transmitida. A cena final da versão de 1935 está bem conseguida no que respeita à interpretação de Irenne. Torcemos tanto por ela. N versaõ de Sirk, gosto muito da cena da praia com a menina a ler para Helen. As cenas do passeio apaixonado entre o casal em ambos os filmes é uma delicia. Eu considero uma história razoável mas vontade de forma magistral por Sirk e bastante bem por Sthal. Diálogos delicados, história irreal mas bela. Um melodrama delicioso

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