O Sonho de Cassandra / Cassandra’s Dream


Nota: ★★★½

Anotação em 2009: Primeiro, alguns números. O Sonho de Cassandra é o terceiro filme da fase inglesa de Woody Allen, depois de Match Point e Scoop – O Grande Furo/Scoop, e o primeiro que não tem sequer um ator americano entre os protagonistas. Que eu me lembre, é o segundo filme dele que usa diretamente elementos da mitologia grega, depois de Poderosa Afrodite/Mighty Aphrodite. E é apenas o sexto dos seus 36 longa-metragens (se minha conta estiver certa) que é absolutamente sério, dramático, sem uma piada sequer.

Relembrando: os anteriores foram Interiores/Interiors, de 1978, Setembro/September, de 1987, A Outra/Another Woman, de 1988, Maridos e Esposas (1992) e Match Point, de 2005.

De 2004 para 2008, portanto, ele alternou dramas e comédias: depois da comédia Melinda e Melinda, de 2004, ainda nos Estados Unidos, veio Match Point, de 2005, um drama familiar misturado com thriller, que em parte lembrava Crimes e Pecados/Crimes and Misdemeanours, sua versão pessoal do Crime e Castigo de Dostoiévski. Depois vieram uma comédia, Scoop, em 2006, este O Sonho de Cassandra, de 2007, e de novo uma comédia, Vicky Cristina Barcelona, de 2008.

Agora, um pouquinho de tragédia grega.

Na mitologia, Cassandra era a filha dos reis de Tróia, Príamo e Hécuba. Sua beleza chamou a atenção do deus Apolo, que deu a ela o dom da profecia. Segundo uma das versões da história, Cassandra e seu irmão gêmeo, Heleno, quando crianças, foram brincar no templo de Apolo; acabaram passando a noite lá dentro; na manhã seguinte, a ama dos dois encontrou as crianças dormindo, enquanto duas serpentes passavam a língua por suas orelhas. Seus ouvidos ficaram tão sensíveis que os dois passaram a escutar as vozes dos deuses – e a saber, portanto, o futuro dos homens.

Já adulta, Cassandra não quis corresponder ao amor de Apolo, e, como vingança, o Deus que havia lhe concedido o dom da profecia a amaldiçoou: ninguém iria acreditar nas suas previsões. Maldição de deus é coisa pesada, e, de fato, ninguém acreditou quando Cassandra preveniu os troianos sobre o perigo do Cavalo de Tróia com que os gregos iriam invadir a cidade.

Cassandra aparece em Poderosa Afrodite – a deliciosa comédia em que Lenny, o personagem de Woody Allen, é avisado dos perigos que o rondam por personagens da mitologia grega e por um coro que imita o coro das tragédias gregas. A própria Cassandra (Danielle Ferland) alerta Lenny que ele não deve deixar Manhattan para morar no interior, no campo – como em tantas outras vezes, ela não é ouvida. Depois ela reaparece – quando Lenny, ignorando os apelos gregos, insiste em querer saber quem é a mãe biológica do seu filho de criação -, dizendo esta maravilha: “Eu vejo desastre. Eu vejo catástrofe. Pior ainda, eu vejo advogados!”

Em Poderosa Afrodite, Allen brinca com a tragédia grega. Em O Sonho da Cassandra ele não brinca com nada: aqui ele está contando uma tragédia.

acassandraO Sonho de Cassandra é o nome que os irmãos Terry (Colin Farrell) e Ian (Ewan McGregor) dão ao barco que resolvem comprar logo no início da ação. O barco é caro demais para dois sujeitos da classe trabalhadora, como o próprio Terry os define numa das primeiras frases ditas no filme, mas eles acreditam que podem comprar; Terry anda jogando (em corridas de cachorro, no pôquer), e está numa maré de sorte, e então fecham o negócio. É Terry que sugere o nome do barco – inspirado no nome de um cachorro que o fez ganhar dinheiro nas apostas.

Terry trabalha como mecânico numa oficina, e joga quase compulsivamente; ganha durante um tempo, mas depois perde muito, se enche de dívidas pesadas com agiotas. Ian ajuda no restaurante do pai, e sonha em investir um dinheiro que não tem em vagos projetos de negócios hoteleiros na Califórnia. Um jogador, um sonhador, dois jovens da working class que compram um barco. Dez minutos de filme, e já vemos se desenhando o cenário da tragédia.

Para piorar a situação, surge no caminho de Ian um perigo para quem, como ele, imagina passos muito mais largos do que as pernas podem dar. O perigo vem na bela forma de uma jovem atriz iniciante, mas muito ambiciosa, Angela (Hayley Atwell, na foto abaixo). Ian usa os belos carros que o irmão Terry conserta na oficina mecânica e mais o papo de que é investidor no ramo hoteleiro para impressionar a moça.

Falta de juízo, ambição – está se preparando a tragédia.

A mãe dos irmãos (Clare Higgins) tem um irmão muito rico, o tio Howard (Tom Wilkinson). Quando o tio Howard passa por Londres, numa de suas viagens incansáveis pelo mundo, Terry está terrivelmente necessitado de uma fortuna, 90 mil libras, para pagar aos agiotas, e Ian está terrivelmente necessitado de outra fortuna, umas 100 mil libras, para fazer de fato o investimento e assim conquistar de vez o coração da namorada ambiciosa. E o tio Howard está terrivelmente necessitado de que alguém faça para ele um serviço sujo, muito sujo. O destino – como nas peças gregas clássicas – está selado: vai começar a tragédia.

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Angela, a namorada, já havia dado o tom, na segunda vez em que se encontra com Ian, depois que ele assiste à peça vagabunda que ela está encenando. Após a apresentação, no bar em que tomam um drinque, ela diz: “Acho que a peça tem um cunho moral. Sobre o mal, sobre o destino. Acho que o texto é muito pessimista. Toda essa história sobre a vida ser uma experiência trágica”.

Os filmes de Woody Allen se parecem muito uns com os outros, mas, de alguma forma, cada um deles costuma ter uma marca especial. Pode ser um pequeno detalhe, ou algo maior. Para mim, a marca especial deste O Sonho de Cassandra é a trilha sonora de Philip Glass. Allen não costuma encomendar peças originais para suas trilhas sonoras; em geral usa uma muitíssimo bem escolhida coleção de temas – sejam eruditos, sejam jazzísticos, sejam da nova música espanhola, no caso específico de Vicky Cristina Barcelona. Assim, estamos diante de uma exceção. E a música de Philip Glass é a moldura perfeita para esta tragédia repleta de sonhos, pesadelos, presságios não ouvidos, recados ignorados pelos pobres personagens.

O Sonho de Cassandra/Cassandra’s Dream

De Woody Allen, EUA-Inglaterra-França, 2007

Com Collin Farrell, Ewan McGregor, Tom Wilkinson, Hayley Atwell, Sally Hawkins, Clare Higgins

Argumento e roteiro Woody Allen

Fotografia Vilmos Zsigmond

Música Philip Glass

Produção Iberville, Virtual Studios e Wild Bunch.

Cor, 108 min

***1/2