4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Uma ótima, maravilhosa surpresa, este Lila Diz… Um belo, inteligente, sensível, talentoso filme sobre a vida de imigrantes árabes na França, preconceito, racismo, violência, e também sobre amor e sexo na adolescência.
Não me lembro de ter lido ou ouvido falar neste filme. Tudo bem, é filme demais – pode até ter passado no circuito comercial, ou na Mostra, pode ter saído matéria nos Cadernos 2 e eu não ter visto. É possível, claro, mas acho que de fato ele passou mais despercebido do que deveria.
Como é bom ser surpreendido por um bom filme que, por algum motivo, não foi muito badalado. É um dos grandes prazeres da vida, acho eu.
Me peguei pensando que, na verdade, este filme mereceria ter sido tão falado quanto, por exemplo, O Segredo do Grão, O Silêncio de Lorna, Entre os Muros da Escola, só para dar três exemplos de filmes que tratam basicamente do mesmo assunto, a vida dura dos imigrantes dos países pobres na Europa rica.
Que sociedade é esta que criamos, meu Deus do céu e também da terra?
Mas vamos lá.
O filme abre com um plano geral de um bairro bem pobre de Marselha (assim como Lady Jane, do badalado, e bom, Robert Guédiguian, que vi dias atrás). Uma voz em off de um rapaz bem jovem, o narrador, nos explica que ele está escrevendo sobre tudo o que aconteceu – uma grande pretensão, reconhece, para quem jamais leu um livro até o fim. Vemos o rapaz, de óbvia ascendência árabe, bem moreno, em seu quarto pobre, cercado por papéis onde fez anotações.
Ele nos conta o que Lila disse para ele ontem – e então temos close-ups de uma garota muito jovem e muito bonita, olhando para a câmara e falando. Não é um plano longo; são diversos planos curtos, bem montados, um após o outro, todos em big close-up; o rosto ocupa a tela inteira; a câmara se mexe, aproxima ainda mais; há momentos em que vemos apenas a boca da menina, os olhos.
Há momentos em que a expressão dela é de uma adolescente inocente, angelical; às vezes a expressão dela é de pura safadeza, uma Lolita sensualíssima.
Eis as primeiras frases que Lila diz, o rosto em close-ups e big close-ups:
– “Reparou que eu tenho cara de anjo? Todo mundo diz. Está vendo meus olhos? São claros e azuis. Você daria tudo por eles. Está vendo meu cabelo? Louro como o dos anjos, e a pele branca. Minha tia diz que isso vem de longe, de cinco gerações. Conhece minha tia? Ela diz que eu sou tão loura que pareço uma mancha. Nem os especialistas sabem por quê. Sou como uma Ferrari no meio do lixo.”
Meu Deus do céu e também da terra, que civilização nós criamos, que ensina uma meninota de uns 18, 20 anos a dizer uma frase como esta – “Sou como uma Ferrari no meio do lixo” – porque sua pele é branca, o cabelo, louro, e os olhos, claros?
A câmara continua no rosto de Lila, enquanto a voz em off do narrador fala:
– “Por que ela me fala assim? Não sei. Depois ela diz: ‘Quer ver minha xoxota?’”
Uma cara angelical, uma boca mais suja que de puta ou marinheiro
“Quer ver minha xoxota?” é uma das frases mais amenas que Lila vai dizer ao longo do filme para Chimo, o jovem árabe de 19 anos que vive com a mãe trabalhadora num cortiço de Marselha, depois de ter sido abandonada pelo marido, que foi embora com uma francesa loura. Lila vai tentar Chimo com um poder de sedução maior do que tinha o Diabo quando apareceu para Cristo no deserto. Vai falar sacanagens e safadezas que envergonhariam putas e marinheiros; vai mostrar a xoxota, vai roçar a bunda sem calcinha na cara dele, vai pegar no pau dele.
E aqui o filme poderia perfeitamente descambar para o que eu chamo de QuasePornô, ou para o pornô claro. Mas, não, não descamba coisa alguma. Em nenhum momento o diretor Ziad Doueiri – que filma com a agitação e o calor da juventude aliados a um domínio de técnica de veterano – chega sequer perto daquelas coisas que andaram em moda no cinemão americano, tipo Instinto Selvagem ou Corpo em Evidência. Lila diz todo tipo de coisa com jeito sacana e safado, mas a câmara do diretor é quase pudica. É, no mínimo, polida.
Porque não é um filme safado explorando sexo. É um filme sério sobre preconceito, racismo, violência, os valores que nossa sociedade tem passado para os jovens, e a vida tornada ainda mais dura para os imigrantes árabes depois do 11 de setembro. (O narrador diz, bem no começo do filme, enquanto vemos a polícia fazendo uma batida no bairro árabe: “Depois que aqueles tipos atacaram Nova York, nós também pagamos o pato.”)
Chimo, o único rapaz do bairro com quem Lila conversa – para os outros, inclusive os amigos e colegas dele, ela não olha; é como se não existissem –, é um adolescente sensível, inteligente, mais introspectivo do que aberto. Trata a mãe com respeito. A professora reparou que ele sabe escrever, embora cometa muitos erros no francês (com a mãe, ele fala em geral em francês, mas vemos que é a sua segunda língua; a primeira foi o árabe), e até tenta incentivá-lo a ir para uma escola para estudantes especiais em Paris. Mas Chimo anda em más companhias – seus melhores amigos são uma pequena gangue que ultrapassou o fio da navalha da deliqüência –, não tem forças para resistir a elas, abandoná-las.
E, nisso – interessante –, Chimo me fez lembrar muito um personagem que chegaria depois dele às telas, o de Thao, o garoto de etnia hmong que mora ao lado da casa de Walter Kowalski, o racista interpretado por Clint Eastwood no seu marivilho Gran Torino. Chimo, assim como Thao, é sensível, inteligente, introspectivo; os dois se sentem perdidos, desajustados, como todo adolescente em geral se sente, mas estão muito mais perdidos e desajustados do que o normal, porque são e se sentem estrangeiros naquele país para onde os pais resolveram imigrar. Sentem-se diferentes, um tanto inferiorizados, como acho que é normal se sentirem os imigrantes num lugar mais rico.
O diretor Ziad Doueiri, nascido no Líbano, ele mesmo um dos autores do belo roteiro do filme, foi fundo nisso. Ele mostra o tempo todo que Chimo não consegue compreender por que Lila o escolheu para conversar, para falar tudo aquilo que ela fala que fez com vários homens, sua vasta experiência sexual. É como se Chimo estivesse se perguntando o tempo todo (e às vezes ele faz algumas dessas perguntas explicitamente): Por que eu? O que ela viu em mim – ela francesa, loura, olhos azuis, gostosa, atraente, cheirosa, em mim, árabe, imigrante, pobre, pele escura? O que ela quer comigo?
Lá pelo meio do filme, Chimo diz, explicitamente, para o espectador:
– “Essa garota mexe comigo, me sacode. Sou como uma salada nas mãos dela.”
E é bem interessante a forma como Chimo confessa abertamente essa sensação de não poder fazer nada diante de uma coisa mais forte do que ele. Antes mesmo dessa frase explícita, eu já havia pensado nos filmes noirs dos anos 40, em que as femmes fatales faziam gato e sapato dos coitados dos homens a quem seduziam, os patos, ou suckers, como eles mesmos se definiam.
Durante a maior parte do filme, o personagem de Lila intriga o espectador: mas, afinal, o que ela quer, quem é ela, para que tudo isso?, a gente se interroga, ao ver e ouvir aquela menina que alterna caras angelicais com caras de safada.
A resposta a essas interrogações, que virá ao final da narrativa, e também a forma como ela vem, são um brilho.
Já surpreso com a qualidade do filme, me surpreendi mais ainda quando vi, nos créditos finais, no meio dos nomes de todos os envolvidos na produção, o seguinte: “D’après l’ouvrage de Chimo – Editions Plon – Paris”. Cacete! Então aquilo tudo se baseia numa história real!
Um bom diretor, que deveria ter chance de fazer muitos outros filmes
Foram muito bem escolhidos, estão muito bem dirigidos os jovens atores que fazem Lila e Chimo. Lila é interpretada por Vahina Giocante, nascida em Orleans, em 1981 – estava, portanto, ao fazer o filme, que é de 2004, com 23 anos; parece ainda mais jovem, embora, conforme vejo agora no iMDB, já fosse quase uma veterana. Estreou no cinema em Marie Baie des Anges, de 1997, aos 16 anos. Este aqui foi seu 11º filme. Numa rápida olhada na filmografia dela, só reconheci O Libertino, de Gabriel Aghion, de 2000, sobre a vida de Diderot. Tem trabalhado muito, e certamente vai longe, essa Vahina Giocante; já interpretou Maria Antonieta numa produção para a TV francesa de 2005, e neste ano de 2009 foi dirigida por Chabrol em um filme com Gérard Depardieu, Bellamy.
Já o garoto Mohammed Khouas, que faz Chimo, antes deste filme só havia trabalhado em um episódio para a TV. No seguinte, 2005, teria um papel em Munique, de Spielberg. Apesar dessas duas ótimas oportunidades, sua carreira não deslanchou.
O filme teve quatro prêmios e outras quatro indicações, nos festivais de Gijón, Marrakech, Verona e no Sundance. Mereceria muito mais.
O diretor Ziad Doueiri havia feito, em 1998, um filme chamado West Beyrouth (À l’abri les enfants), sobre a guerra civil do Líbano. Este aqui foi seu segundo filme, e ele ainda não voltou a dirigir um terceiro – o que é um total absurdo, porque o sujeito é bom demais. Ele teve uma vasta experiência como operador de câmara; trabalhou em filmes do endeusado Quentin Tarantino – Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Jackie Brown. Seu filme demonstra esse domínio da câmara – é uma câmara extraordinária, ágil, agitada, nunca imóvel, às vezes na mão, mas sem exageros, sem chamar demais a atenção, sem cansar o espectador.
O domínio da câmara está presente na longa, extraordinária seqüência em que Chimo e Lila andam de bicicleta por Marselha, em ruas desertas, depois ao longo do porto, entre armazéns e guindastes. Uma maravilha de seqüência, de maestria do uso da câmara e da montagem, os jovens atores muito bem – faz lembrar os melhores momentos de Lelouch.
Deveria ter mais oportunidades, esse Ziad Doueiri. Fez um filme maravilhoso.
O que Lila diz me fez criar uma tag sobre racismo e imigração
Uma nota muito pessoal, particular. Este filme, logo no início, quando há aquela fala supremacista, racista, da personagem Lila, foi que me deu a idéia de criar uma tag para reunir os filmes que tratam de racismo, essa doença que é uma das piores pragas que a humanidade enfrenta, e da imigração, esse outro grande drama, em geral tão ligado ao anterior. Felizmente, são muitos os bons filmes que nos ajudam a identificar, compreender e combater o racismo e a rejeição aos imigrantes.
Lila Diz…/Lila Dit Ça
De Ziad Doueiri, França-Itália-Inglaterra, 2004.
Com Vahina Giocante, Mohammed Khouas, Carmen Lebbos, Karim Ben Haddou, Lofti Chakri, Hamid Dkhissi
Roteiro Ziad Doueiri, Mark Lawrence, Joelle Tuma
Baseado no livro de Chimo
Fotografia John Daly
Música Nitin Sawhney
Produção 8 ½ Productions e UK Film Council
Cor, 89 min.
****
depois de assistir o filme “Lia Diz”, adquirir mais seis filmes desta actriz “Vahina Giocante”, que são eles:Soldados de Salamina, Pacto de Sangue, Jogos do Poder, Segrede de Estado e a serie de 12 episódios “MATA HARI”.
Simplesmente amei esse filme!
Sou poeta, peguei uma das frases finais da garota e escrevi um poema.
Muito bom seu blog, parabéns.
O poema está no YouTube.
Abraços!