Ao resgatar o caso de como foi descoberta a relíquia arqueológica que passaria a ser chamada de Tesouro de Sutton Hoo, o jovem, extremamente jovem realizador Simon Stone não apenas criou um pequeno grande filme, como deu uma bela contribuição à honrosa luta para atribuir o devido valor às pessoas humildes que fazem avançar a História mas permanecem anônimas, sem o devido reconhecimento.
Depois de ver A Escavação/The Dig, não consegui deixar de ficar pensando no poema do Bertold Brecht:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída. Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha
da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu?
Como é uma história inglesa, passada no campo (no condado de Suffolk, na região Sudeste da Inglaterra, a cerca de 130 km de Londres), em 1939, há a cada momento referências à guerra contra a Alemanha nazista que estava para começar – e também menções às diferenças entre as classes sociais.
Os protagonistas da história são uma mulher rica, dona de terras, viúva, de uns 40 anos de idade, Edith Pretty, e um homem de uns 60 e tantos, um trabalhador braçal – um escavador, como ele mesmo se define, Basil Brown.
Brown aprendeu a escavar a terra da região de Suffolk com seu pai, que por sua vez havia aprendido com o pai dele. Se viesse de uma família de meios – o filme mostra isso de maneira claríssima – , teria estudado em Cambridge ou Oxford, e seria um renomado arqueólogo. Como era trabalhador, filho de trabalhadores, era um excavator – embora, autoditada, estudioso, persistente, fosse um leitor voraz, e tivesse ele próprio escrito livros sobre arqueologia e descobertas arqueológicas.
O fato de que Mrs. Pretty é interpretada por Carey Mulligan e Basil Brown por Ralph Fiennes, dois dos melhores atores do cinema inglês das últimas décadas (o que é igual a dizer que são dois dos melhores atores do cinema mundial das últimas décadas), é parte importantíssima da qualidade do filme.
A descoberta atrai a atenção de arqueólogo importante
Em um trecho das terras de Mrs. Pretty, terras bem planas, havia alguns pequenos montes. E ela tinha a “intuição” – a palavra é usada várias vezes no filme – de que neles poderia haver algo de valor arqueológico. Assim, ela se informou sobre quem poderia escavar aqueles montes, e foi indicado o nome de Basil Brown.
A Escavação/The Dig abre com Basil chegando à propriedade de Mrs. Pretty, chamada Sutton Hoo, para uma primeira conversa.
A princípio, não chegam a um acordo. Ela oferece a mesma quantia que ele recebia para fazer escavações para o Museu de Ipswich – a maior cidade do condado de Suffolk. Como Sutton Hoo fica distante da casa dele, Brown queria um pagamento um pouco maior. Na última hora, quando ele já está na estrada voltando para casa, ela manda seu motorista encontrá-lo com uma nova oferta: duas libras por semana.
Ele aceita – e começa a trabalhar na escavação de um dos morros, o que pareceu a ele mais promissor. Mrs. Pretty consegue que dois homens da região o auxiliem no trabalho.
A viúva tem um filho, Robert (Archie Barnes, ótimo), garoto aí de uns 10, 12 anos, esperto, inteligente, curioso, interessado pelas coisas. Começa a se desenvolver entre ele e o velho escavador uma boa relação.
A princípio, pela sua longa experiência, Brown acredita que poderá encontrar ali objetos dos vikings – Sutton Hoo, a propriedade, fica junto de um grande rio, não longe de sua foz. A presença de vikings na região já havia sido comprovada anteriormente.
Mas, depois que a escavação vai se aprofundando, Brown descobre rebites de ferro que haviam pertencido provavelmente a um navio – o que poderia indicar a existência ali de algo bem anterior aos vikings, algo pertencente aos anglo-saxões da Idade Média profunda, ali pelo século VI.
As informações sobre a descoberta se espalham rapidamente – e, diante da importância do que aquele sítio arqueológico poderia conter, o humilde escavador Basil Brown fica pequeno. Surge em cena um famoso, proeminente arqueólogo de Cambridge, Charles Phillips (o papel de Ken Stott). Tem a aprovação de algum órgão governamental para assumir os trabalhos naquele sítio, agora considerado de importância nacional.
Luta de classes, British style.
Basil Brown, competente, bom de serviço, o cara que levou até à descoberta, chega a enfiar a viola no saco, digo, os pertences no saco e voltar para casa.
Mas a proprietária da terra exige que ele volte.
O pomposo homem de Cambridge tem que aceitar o cara da working class de volta.
Luta de classes, British style.
Chegam para participar do trabalho mais braços – inclusive de gente da academia, como o casal Stuart e Peggy Piggott (Ben Chaplin e Lily James).
Por sorte, por acaso, cabe a Peggy – pequenina, leve, o que ajuda no trabalho sobre o solo frágil – fazer a descoberta das primeiras peças de ouro puro.
O navio que se escondeu sob a terra naqueles montes de Sutton Hoo durante mais de 16 séculos devia ser, muito provavelmente, o túmulo de alguém tremendamente importante, um grande líder, um rei.
Um filme em que cada detalhe tem importância
E, como diz João Gilberto em uma de suas poucas composições, a maravilhosa “Bim Bom”, “É só isso o meu baião / E não tem mais nada não”.
Esta é a história de A Escavação.
É uma história importante, interessante, que merecia mesmo ser contada pelo cinema, sem dúvida alguma. O que pretendo realçar é que é uma história simples, direta, pequena. Não tem grandes surpresas, reviravoltas, momentos de excepcional dramaticidade.
E é exatamente por isso que A Escavação é, como eu disse antes, um pequeno grande filme. Pequeno exatamente porque não tem esses elementos do parágrafo acima, surpresas, etc. E grande porque, a partir dessa história simples, de poucos elementos, a roteirista Moira Buffini e o diretor Simon Stone criaram uma narrativa agradável, interessante, fascinante memo, em que cada pequeno detalhe tem importância, tem significado.
O roteiro, a direção e o extraordinário talento de Carey Mulligan e Ralph Fiennes tornam de uma imensa riqueza o relacionamento que vai se construindo entre a viúva proprietária de terras e o escavador pobre mas de uma inteligência e uma perseverança invejáveis.
Os dois vão se aproximando com extremo cuidado. Há entre eles o fosso da diferença da classe social, e os dois têm plena consciência disso – afinal, são ingleses. Mas vão pouco a pouco aprendendo a respeitar um ao outro – e até mesmo a gostar um do outro. Além de admirar a seriedade com que Brown trabalha, Mrs. Pretty vai sendo cada vez mais grata a ele pela atenção que dá ao garoto Robert.
Há um diálogo fascinante em que os dois, a jovem senhora rica e o velho trabalhador braçal, falam de livros, estudo – e ela meio que deixa escapar a queixa de que, quando jovem, chegou a ser aceita em um dos colégios de Cambridge, mas seu pai negou a oportunidade: na cabeça dele, lugar de mulher é no lar, não na escola.
Fascinante: duas pessoas inteligentes, curiosas, que poderiam ter tido belas carreiras em boas escolas, mas foram impedidas de ter a educação nas salas de aulas – um por ser pobre, a outra por ser mulher.
Mrs. Pretty fará uma defesa firme de Basil Brown sempre que o presunçoso Charles Phillips quiser diminuir sua importância nos trabalhos.
Lily James aceitou um pequeno papel
A esses três personagens interessantes – Mrs. Pretty, Brown e o garoto Robert – vem se somar uma outra, a moça Peggy Piggott, estudante de História ou de Arqueologia, que se une ao grupo que escava o monte em Sutton Hoo.
Sem espalhafato, mas de forma clara, o filme demonstra que no casamento de Peggy com Stuart Piggott falta um elemento fundamental: sexo. Stuart simplesmente não demonstra interesse sexual pela jovem mulher que tem. Assim, quando o espectador vê Peggy conversando com Rory Lomax (Johnny Flynn), um primo de Mrs. Peggy que ela havia chamado para ajudar Brown na escavação, fica muito fácil imaginar que vai rolar algo entre os dois.
Mas Rory já havia se alistado e aguardava apenas o chamado para servir na Royal Air Force na guerra que estava para começar.
O personagem dessa Peggy Piggott é sem dúvida interessante – mas é secundário, pequeno. E requer que a atriz escolhida pareça não muito bonita, não muito atraente. Assim, me peguei pensando como é inteligente, esperta essa moça Lily James (na foto acima) – ou então seu agente, ou os dois, ao mesmo tempo. A rigor, ela não precisaria desse papel de coadjuvante, pois, apesar de tão nova (faz 32 anos em 2021, o ano de lançamento de A Escavação), já é uma estrela: já foi Cinderella numa produção Disney com direção de Kenneth Branagh, já foi escolhida para o papel título da refilmagem do clássico hitchcockiano Rebecca – A Mulher Inesquecível, já esteve na continuação de Mamma Mia!, já foi a secretária de Winston Churchill no excelente O Destino de uma Nação.
A rigor, portanto, não precisaria aceitar o papel de Peggy Piggott. Pois é. Mas, por outro lado, participar de uma produção séria, um drama baseado em fatos reais ao lado de Ralph Fiennes e Carey Mulligan garante prestígio.
Algumas informações interessantes tiradas da página de Trivia sobre o filme no IMDb, com pitacos meus, é claro:
* Edith Pretty tinha 56 anos em 1939, a época em que se passa o filme. Carey Mulligan estava apenas com 34. Como é uma atriz extraordinária, ela de fato parece ser bem mais velha do que é na verdade, no papel de Mrs. Pretty.
* Na vida real, Basil Brown era 5 anos mais jovem que Edith Pretty, enquanto Ralph Fiennes é 23 anos mais velho que Carey Mulligan.
* Ainda a questão das idades dos atores e dos personagens: Lily James e Ben Chaplin fizeram papel de filha e pai em Cinderella (2015). Aqui, fazem papel de marido e mulher.
* Por uma grande coincidência, Ralph Fiennes nasceu em Ipswich, a maior cidade da região em que se passa a história, como já foi dito acima.
* O personagem de Rory Lomax – o primo de Edith Pretty que vai ajudar Basil Brown na escavação, e acaba fazendo um extraordinário trabalho como fotógrafo do processo de descoberta do tesouro arqueológico – é fictício. Na verdade, as fotografias do trabalho de Brown e dos outros que participaram da escavação, como Stuart e Peggy Piggott, foi feito por Mercie Lack e Barbara Wagstaff.
O nome de Basil Brown está no Museu Britânico
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída. Quem a reconstruiu tantas vezes?
Os letreiros ao final da narrativa – que, como sempre acontece em filmes baseados em fatos reais, relata para o espectador o que aconteceu após os eventos mostrados no filme – contam que o nome de Basil Brown não foi mencionado na primeira vez em que as peças encontradas em Sutton Hoo foram expostas ao público, após a morte de Edith Pretty, em 1942.
Mas seu nome não se perdeu. “A importante contribuição de Basil à arqueologia foi reconhecida, e seu nome aparece ao lado do de Edith no Museu Britânico”.
Anotação em fevereiro de 2021
A Escavação/The Dig
De Simon Stone, Inglaterra, 2021
Com Carey Mulligan (Edith Pretty), Ralph Fiennes (Basil Brown)
e Archie Barnes (Robert Pretty), Lily James (Peggy Piggott), Johnny Flynn (Rory Lomax), Ben Chaplin (Stuart Piggott), Ken Stott (Charles Phillips),
Monica Dolan (May Brown, a mulher de Basil), Danny Webb (John Grateley), Robert Wilfort (Billy Lyons, o motorista de Mrs. Pretty), Ellie Piercy (Mrs. Lyons, a cozinheira), James Dryden (George Spooner), Joe Hurst (John Jacobs), Paul Ready (James Reid Moir), Peter McDonald (Guy Maynard), Christopher Godwin (Dr. Parry)
Roteiro Moira Buffini
Baseado no livro de John Preston
Fotografia Mike Eley
Música Stefan Gregory
Montagem Jon Harris
Casting Lucy Bevan
Produção Carolyn Marks Blackwood, Netflix, Magnolia Mae Films, Clerkenwell Films.
Cor, 112 min (1h52)
Disponível na Netflix em fevereiro de 2021.
***
A escolha de uma atriz de 34 anos para interpretar uma personagem de 56 suscita várias reflexões sobre o que ocorre com as mulheres mais velhas não apenas em Hollywood, mas nos ambientes de trabalho em geral. Será que não existe atriz dessa idade competente para o papel?
Gostei muito deste filme.
Há muito tempo que me interesso por arqueologia, comprei vários livros e leio sempre as notícias sobre o que se passa em Portugal sobre o assunto.
Infelizmente são más notícias quase sempre: ruínas destruídas, monumentos megalíticos desaparecidos e outras desgraças.
O filme está muito bem feito.
Só reconheci o Ralph Fiennes, os outros actores não me lembro de ter visto.
Segundo a Wikipedia o rei sepultado seria Rædwald of East Anglia; não é uma certeza.
Em Portugal existe um monumento megalítico importante: O Cromeleque dos Almendres que é considerado o mais importante da peninsula ibérica e um dos mais importantes do mundo.
Dê uma olhada a ele.