Murder by Numbers, no Brasil Cálculo Mortal, que Barbet Schroeder lançou em 2002, é um bom thriller, valorizado por excelentes atuações e alguns cenários deslumbrantes da costa da Califórnia. Sandra Bullock, essa moça que divide opiniões – parece ter tantos admiradores quanto detratores –, nunca esteve tão bem nem tão bela, na opinião deste admirador aqui.
Rever Cálculo Mortal hoje, como Mary e eu fizemos depois de muita insistência minha (e a rigor nem sei bem por quê), é bom para demonstrar mais uma vez como esse diretor nascido em Teerã, de pai suíço e mãe alemã, criado na África Central e depois na Colômbia, é competente, seguro, firme. Mas é também interessantíssimo para ver ou rever Ryan Gosling bem jovenzinho, com cara de pouco mais que adolescente.
Ryan Gosling estava, em 2002, com ridículos 22 aninhos, e parecia ter uns 18, que provavelmente era a idade de seu personagem, um garoto muito rico, filho de papai, inteligente, cursando a high school. O ator tinha começado a carreira cedo, em 1995, com apenas 15 anos – ele nasceu em 1980, em London, Ontario, Canadá. Fez várias séries de TV, mas seu primeiro filme importante – e em que teve papel de destaque – foi este aqui.
22 ridículos aninhos, mas já se mostrava bem esperto. Nunca soube disso, até agora, quando li a informação no IMDb depois de rever o filme: durante as filmagens, o garotinho teve um caso com La Bullock, já à época uma grande estrela.
Mas isso, como se costuma dizer, é outra história.
Uma policial competente, mas nada simpática
A trama de Cálculo Mortal foi criada diretamente para a cinema; é um roteiro original de Tony Gayton, apenas inspirado em uma história real, da qual manteve bem poucas características. O espectador vai vendo, paralelamente, simultaneamente, duas histórias, que se passam no mesmo local, uma pequena comunidade do litoral da Califórnia, e ao mesmo tempo, os dias de hoje, ou seja, os dias da época em que o filme foi feito, o início deste novo milênio.
Uma história é a da personagem de Sandra Bullock. Ela é Cassie Mayweather, uma detetive da polícia da pequena cidade de San Benito, na região da mítica, mitológica Monterrey, alguns bons quilômetros ao Sul de San Francisco. É uma boa policial, competente, dedicada – mas não é nada querida por seus colegas e conhecidos. Muitíssimo ao contrário. Tem uma fama terrível de chata, insuportável, e o apelido de “hiena”, aquele bicho absolutamente nada simpático. Ninguém quer trabalhar junto com ela.
Quando a narrativa começa, ela está justamente começando a trabalhar com um novo parceiro, Sam (o papel de Ben Chaplin), um policial inteligente, mas que vinha do setor de narcóticos e não tinha experiência alguma na área de homicídios. E o primeiro trabalho da nova dupla, Cassie, a hiena, e Sam, o novato, é investigar o assassinato de uma mulher cuja identidade a princípio não é conhecida e cujo corpo foi abandonado perto de um riacho.
As primeiras investigações mostram que a mulher não foi morta ali: foi estrangulada em algum outro lugar e seu corpo foi carregado para aquele lugar ermo. Um de seus dedos havia sido cortado depois que ela já estava morta.
Com o tempo, Cassie e Sam descobrem a identidade da vítima – era uma mulher de classe média da cidade, que vivia sozinha. A casa tinha sinais de arrombamento e nela foram encontradas fibras e outros materiais que levavam até um tal Ray (Chris Penn), funcionário de uma escola de ricos do lugar e fornecedor de drogas para a estudantada que podia pagar por elas.
Dois rapazes ricos que se julgam superiores
A outra história, que vai sendo apresentada ao espectador paralelamente à da detetive Cassie Mayweather, é dos adolescentes Richard Haywood (o papel de Ryan Gosling) e Justin Pandleton (Michael Pitt).
Estudam na mesma classe, na escola de ricos em que trabalha o tal Ray. Bem no início da narrativa, logo após o final dos créditos iniciais (de grande beleza visual, a câmara provavelmente colocada num helicóptero voando baixo sobre um litoral recortado, com várias pequeninas ilhas), nós os vemos numa grande casa abandonada no alto de um promontório, um lugar de beleza fenomenal, de armas na mão, como se prontos para uma roleta russa.
Depois de uma sequência em que ficamos conhecendo os policiais Cassie e Sam em sua investigação do assassinato de uma mulher desconhecida, voltamos a ver os rapazes Richard e Justin na sala de aula, no momento em que este último está de pé, ao lado do professor e diante da classe, terminando de ler um trabalho – uma redação, um ensaio.
O trabalho que Justin apresenta é, para dizer o mínimo, bastante polêmico. Fala de conceitos segundo os quais há seres humanos melhores que os outros – mais inteligentes, mais preparados, mais fortes que os demais. Supremacismo. Eugenia. Pavorosos conceitos em geral relacionados ao filósofo Friedrich Nietsche, e mais diretamente ao nazismo, mas também a todos os tipos de racismos, supremacismos, autoritarismos.
– “Cada um de nós tem dentro de si um aspecto fraco, interessado em desistir da liberdade pelo conforto de ser dominado”, diz Justin. “Mas nós também temos uma vontade de poder que deseja a liberdade – que insiste em decidir por nós mesmos, cada um de nós, individualmente, o que é o bem e o que é o mal.”
Em diferentes momentos do filme, Justin fala frases como estas:
– “Toda a liberdade real leva ao risco do crime. Na verdade, a liberdade é crime, porque pensa primeiro nela mesma e não no grupo.”
– “Uma pessoa não pode viver plenamente sem abraçar o suicídio no crime.”
– “Um pacto feito com implacável fogo que exige que, enquanto alguns vivem, outros morrem.”
A mesma fonte de Festim Diabólico, de Hitchcock
Nietsche mal lido, mal compreendido, por jovens inteligentes, ou que se crêem muito inteligentes, melhores que os demais – e que, a partir daí, resolvem matar alguém que julgam pessoa pouco importante, inferior, só pelo gosto de se sentirem poderosos, acima de todos os outros, acima do sistema, acima da polícia e da Justiça.
Já vimos esse filme antes. É claro que já vimos. Em 1948, Alfred Hitchcock fez Festim Diabólico/Rope, adaptação de uma peça inglesa de Patrick Hamilton, por sua vez baseada na história real de Richard Loeb e Nathan Leopold, dois estudantes ricos de Chicago que, em 1924, assassinaram um colega para provar que eram fodinhas e ninguém iria descobrir os autores do crime.
Em 1959, Richard Fleischer filmou Estranha Compuisão, uma reconstituição do caso real de Loeb e Leopold e do julgamento dos assassinos. Em 1992, saiu Swoon – Colapso do Desejo, de Tom Kalin, outro filme inspirado no caso real.
É preciso enfatizar que, neste Cálculo Mortal, há muito pouco que reproduz a história real de Richard Loeb e Nathan Leopold. Do caso real, o autor e roteirista Tony Gayton pegou só a base, a essência – dois estudantes inteligentes (ou que se julgavam muito inteligentes), muito ricos, que leram algumas páginas de livros de filosofia e passaram a ter a certeza de que pertenciam à classe privilegiada dos que podem fazer tudo com os infelizes dos mortais comuns – até mesmo matar –, porque são inteligentes, e farão o crime perfeito e a polícia jamais chegará até eles.
Há os have e os have not. E há os bons e os maus
Me ocorreu, depois que revi o bom filme de Barbet Schroeder – esse autor dos ótimos Barfly: Condenados Pelo Vício (1987), Mulher Solteira Procura (1982) e Advogado do Terror (2007) – que Cálculo Mortal é, além de um thriller, um sério drama sobre a coexistência, neste mundo de Deus e do diabo, neste planetinha mixuruca de uma estrela de pequena grandeza, entre os have e os have not, os muito ricos e os pobres, entre os que têm demais e os que muitas vezes não têm o mínimo.
De uma certa maneira, Cálculo Mortal é isso: um drama sobre a injustiça social – o gigantesco fosso, o Grand Canyon, a Amazônia, o Júpiter que existe entre os muito ricos e os não aquinhoados pela fortuna.
O filme leva bastante tempo para nos mostrar, mas mostra, finalmente, que a policial Cassie Mayweather teve origem humilde, bem humilde. Teve uma juventude pavorosa, trágica. Batalhou muito, se esforçou, brigou – e conquistou uma posição razoável, às custas de seu trabalho.
Richard e Justin são exatamente o oposto dela. Nasceram, como diria minha mãe, em berço de ouro; são privilegiados, têm tudo de mão beijada. Nunca tiveram que trabalhar, nunca tiveram que conquistar nada.
Há um detalhe que me chamou muito à atenção, num diálogo entre a have not Cassie e o filhinho de papai Justin. Trabalho duro, esforçado, de Cassie e Sam indica que Justin foi, no dia em que aquela mulher foi morta e teve seu corpo deixado no meio do mato, ao lado de um riacho, a um restaurante caríssimo da região, um restaurante francês, chamado alguma coisa de la Croix. Cassie vai ao restaurante, conversa com o gerente. Depois procura Justin na escola, e pergunta se ele esteve no dia tal no restaurante “de la crois”. Ele a corrige: “Ah, de la Croá”.
Ela agradece pela correção, um tanto embaraçada, envergonhada.
O garotinho teve oportunidade de estudar Francês. A detetive da polícia não sabe pronunciar o nome do restaurante.
Os have not e os have.
De uma certa maneira, o filme de Barbet Schroeder faz a defesa de que, mais importante do que a divisão entre os have not e os have, é a divisão entre os que estão do lado certo e os que estão do lado errado. Os que fazem o bem e os que fazem o mal.
Nos minutos finais, o filme, infelizmente, desanda
Não dá para não registrar, também, a forma com que que o filme mostra o comportamento dessa personagem interessante, fascinante mesmo, que é a detetive Cassie Mayweather, diante do sexo.
Há um diálogo entre ela e seu assistente, parceiro, Sam, ainda no início da narrativa:
Cassie: – “Você sabe por que eles me chamam de hiena?”
Sam: – “Não. Por quê?”
Cassie: – “As hienas fêmeas têm uma espécie de pênis falso. Tire aí sua conclusão.”
Sam: – “Isso incomoda você?”
Cassie: – “Não. Eu uso calças compridas bem largas, então não é um problema.”
Cassie parte para cima de Sam direto e reto. Ele não quer, afinal ela é a parceira dele, ele está acabando de chegar, no lugar em que se ganha o pão não se come a carne, tal e coisa. Mas Cassie parte para cima dele, e o pobre rapaz não tem outro jeito a não ir em frente. Assim que o troço acaba, Cassie o bota para fora da sua cama e da sua casa.
Cassie – parece que é isso que o filme quer mostrar – se transformou num tipo um tanto masculino. Porque já sofreu demais, porque não quer sofrer de novo, reage como um homem bruto: depois que comeu, expulsa o outro da vida.
Não sei o que as feministas xiitas diriam de Cassie – nem quero saber. Os xiitas, todos sabemos, são especialmente chaatos. O personagem, e a forma com que Sandra Bullock a interpreta, me fascinaram.
Leonard Maltin deu ao filme 2.5 estrelas em 4: “Detetive de homicídios Bullock – uma brilhante solitária com bagagem emocional pesada – trabalha com seu novo parceiro (Chaplin) no caso de um homicídio brutal cometido por dois estudantes de high school que desejam cometer o crime perfeito, à la Leopold e Loeb. Ainda mais um thiller contemporâneo que joga fora todas as suas boas qualidades por se render a um final tolo, antiquado, de Hollywood.”
Está certíssimo o Maltin. Nos últimos minutos do filme, muito provavelmente cedendo às ordens dos produtores, Barbet Schroeder se permite acabar nos exageros idiotas que Hollywood exige para seus thrillers.
Uma grande pena – e um especial absurdo, porque ao longo de, digamos, uns 105 dos 115 minutos de filme, Schroeder consegue fazer um filme racional, lógico. Para, nos últimos 10 minutos, partir para aquela bobagem danada que é o exagero, a violência.
Pena.
Anotação em abril de 2010
Cálculo Mortal/Murder by Numbers
De Barbet Schroeder, EUA, 2002
Com Sandra Bullock (Cassie Mayweather)
e Ben Chaplin (Sam Kennedy, o parceiro de Cassie), Ryan Gosling (Richard Haywood), Michael Pitt (Justin Pendleton), Agnes Bruckner (Lisa Mills, a colega de Richard e Justin), Chris Penn (Ray, o traficante funcionário da escola), R.D. Call (capitão Rod Cody, o chefe de Cassie e Sam), Tom Verica (Al Swanson, o assistente de promotor), Janni Brenn (Ms. Elder), John Vickery (gerente do restaurante chique), Michael Canavan (Mr. Chechi), Krista Carpenter (Olivia Lake), Neal Matarazzo (policial no flashback), Adilah Barnes (técnica de laboratório), Jim Jansen (advogado)
Argumento e roteiro Tony Gayton
Fotografia Luciano Tovolli
Música Clint Mansell
Montagem Lee Percy
Casting Howard Feuer
Produção Warner Bros., Castle Rock Entertainment, Schroeder Hoffman Productions.
Cor, 115 min (1h55)
R, ***
Sempre achei esse filme da hora, mas o final sempre me incomodava, um personagem inteligente com Justin Pendleton (Michael Pitt), cair naquela armadilha tão tosca, ficou forçada demais. Parabéns pelo belo texto Sérgio.