Amarga Esperança / They Live By Night

3.0 out of 5.0 stars

A abertura de They Live by Night, no Brasil Amarga Esperança, é sui generis, única, diferente de tudo o que já se viu. O filme começa como se fosse um trailer. Vemos um casal de jovens, em close-up, e, enquanto eles se olham, apaixonadamente, vão surgindo as seguintes palavras na tela: “Este rapaz… e esta moça…”

“… Nunca foram propriamente apresentados ao mundo em que vivemos… Para contar a história deles…”

Aí corta, e surge o título do filme, They Live by Night, eles vivem à noite. E vemos, do alto, bem do alto, um carro conversível, correndo numa pequena estrada deserta, com quatro homens nele. Vemos o carro lá embaixo: a câmara estava colocada num helicóptero.

Hoje, uma tomada aérea é a coisa mais comum do mundo. Não era, em 1948, quando o filme foi feito. Aquela foi a primeira tomada filmada de um helicóptero na história do cinema.

Um filme gris: uma mistura de noir com toques sociais

Amarga Esperança é um noir – por causa da atmosfera densa, pesada, sombria, e do fato de que os personagens são bandidos, fora-da-lei. Três dos homens daquele carro em disparada acabavam de fugir da prisão, e fizeram refém o quarto deles – que já nos primeiros minutos do filme será morto por um dos fugitivos.

Foi também definido como um filme gris, cinza, como foram classificados os filmes noir com temática social, de denúncia das injustiças sociais, com um viés esquerdista, socialista. Exatamente porque mostra um rapaz e uma moça jovens que, como diz aquele estranho, inusitado letreiro na primeira sequência, “nunca foram propriamente apresentados ao mundo em que vivemos”. Não tiveram direito a uma vida normal. Ela, Keechie (o papel de Cathy O’Donnell), por ser filha de um bandido, passou toda a vida numa fazenda perdida no interiorzão do Texas que era também um esconderijo, e ele, Bowie (o papel de Farley Granger), por ter sido preso quando tinha apenas 16 anos de idade, acusado de um crime que foi levado a cometer por inexperiência, por uma reação instintiva.

O plano de fuga da prisão foi dos dois homens bem mais velhos, bandidos com longa folha corrida, T-Dub (Jay C. Flippen), um sujeito mais calmo, mais ponderado, e Chickamaw (Howard da Silva), este, sim, a representação do Mal em Si, sujeito violento, sanguinário, frio, uma besta fera.

Bowie havia ficado amigo deles na prisão. Soltos, o mais novo dos três teria para sempre uma dívida para com os outros dias, que afinal o tiraram da prisão. E essa será a maldição que cairá sobre Bowie: contra sua vontade, contra sua natureza, será obrigado pelos outros dois a participar de assaltos a banco.

Logo depois da fuga da prisão os três homens vão para a fazenda de Mobley (Will Wright), o irmão mais velho de Chickamaw – e pai da jovem Keechie.

E então o filme noir, ou gris, se mostra, na verdade, como já havia prenunciado aquela abertura esquisita, uma história de amor.

Dois perdidos numa noite suja, num mundo sujo.

Dois jovens inocentes, puros, de bom coração, ele obrigado a participar de crimes, ela obrigada a conviver com um fora-da-lei cada vez mais procurado pela polícia.

Um dos realizadores mais adorados pela crítica

Foi o primeiro filme dirigido por Nicholas Ray – e os críticos do mundo inteiro começaram ali uma história de paixão pelo recém-chegado. Nicholas Ray é uma das maiores unanimidades da história do cinema. E não são só os críticos que o idolatram: também seus colegas de profissão o adoram. O checo Milos Forman o homenageou dando-lhe um papel especial em Hair (1979). O alemão Wim Wenders fez em 1980, um ano após a morte de Ray, aos 67 anos, Um Filme para Nick/Nick’s Film, um documentário-elegia.
Uma das circunstâncias fantásticas que cercam este Amarga Esperança é que Ray era, em 1948, aos 37 anos, um total neófito no mundo do cinema. Toda a sua experiência cinematográfica se resumia ao fato de ter sido assistente de direção de seu grande amigo Elia Kazan no primeiro filme dele, Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn (1945).

É um caso raro em Hollywood de um sujeito que chega de fora da indústria e já começa logo dirigindo um longa-metragem. Na imensa maioria dos casos, antes de dirigir os profissionais passam por diversas experiências, seja como ator, roteirista, montador, auxiliar de direção ou diretor de segunda unidade. Há quem compare o caso de Ray ao de Orson Welles, que também não tinha tido experiência anterior no cinema quando, aos ridículos 26 anos de idade, dirigiu Cidadão Kane, em 1941.

Até então, Raymond Nicholas Kienzle, nascido em 1911 no interior do Wisconsin, tinha passado por vários outros ofícios. Bem jovem, foi assistente do grande arquiteto Frank Lloyd Wright; mudou-se para Nova York e mergulhou no mundo do teatro – foi quando conheceu Elia Kazan e se tornaram grandes amigos. Passou uma temporada em Washington, aproximou-se do do pesquisador e musicólogo Alan Lomax, e participou de viagens com ele ao Sul, à procura de músicos tradicionais para gravá-los para o acervo da Biblioteca do Congresso. No início dos anos 40, Lomax e ele foram contratados pela CBS para apresentar um programa de música de folk, sob a direção – incrível saber disso! – de Woody Guthrie, o grande compositor que influenciaria toda uma geração de compositores e cantores, o jovem Bob Dylan à frente. Devido à amizade com o produtor e ator John Houseman, foi levado a participar da produção de programas da então nascente televisão.

E foi também John Houseman que deu para Ray ler um livro policial lançado em 1937 chamado Thieves Like Us, ladrões como nós, de autoria de Edward Johnson, com a sugestão de que transformassem a história em um filme. Houseman foi o produtor do filme.

A RKO era chefiada, na época, 1948, por Dore Schary, um chefão de estúdio de mente aberta, disposto a dar oportunidade a gente nova.

“Um outsider, um sujeito de fora do sistema”

E então, em 1948, o filme ficou pronto – e não estreou! A RKO havia acabado de ser comprada pelo milionário Howard Hughes, e Hughes impediu que alguns filmes recém-concluídos pelo estúdio fossem lançados. Quis examiná-los antes. Consta que viu They Live by Night e simplesmente não entendeu o filme.

Um distribuidor acabou lançando o filme em Londres, e lá ele foi recebido com críticas extremamente positivas. Só dois anos depois de concluído They Live by Night foi, enfim, lançado nos cinemas americanos.

“Durante toda sua vida Ray se identificou como um outsider, um sujeito de fora do sistema, um homem à margem da sociedade, um rebelde, sempre em oposição ao mainstream”, diz Imogen Sara Smith, uma estudiosa da obra do cineasta, em um documentário de uns 40 minutos que acompanha o filme no DVD lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, e incluído na Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema. Ela diz que Ray se identificou bastante com a visão do escritor Edward Johnson. O livro que deu origem ao filme tinha bem o clima da Grande Depressão, diz ela: “O romance tem uma mensagem muito forte de crítica social, como a idéia de que os bancos, os políticos, as instituições são ladrões como nós, como dizem os assaltantes de banco do livro.”

Em outro dos especiais que acompanham o filme no DVD, a crítica e historiadora Molly Haskill derrete-se assim: “They Live by Night é uma jóia, uma revelação para mim. É uma das maiores histórias de amor de Hollywood”. Nesse pequeno documentário, vários críticos dão breves testemunhos sobre o filme. Um deles, cujo nome não guardei, diz que este foi, muito provavelmente, o primeiro filme de Hollywood sobre adolescentes. Um outro, James Ursini, diz que foi “um dos primeiros filmes que mostram casais em fuga”.

Há quem fale – como a estudiosa Igonem Sara Smith – que o casal em fuga do filme tem a ver com a lenda que se criou em torno do casal de assaltantes de bancos da época da Grande Depressão Clyde Barrow e Bonnie Parker.

Há aí, no meio desse endeusamento de Nicholas Ray e de seu primeiro filme, alguns vôos espaciais. O casal Keechie e Bowie não tem absolutamente nada a ver com Bonnie e Clyde: estes eram de fato assaltantes de banco, os dois. Ora, Keechie jamais participa de assalto algum; muito ao contrário, passa o tempo todo pedindo a Bowie que não volte a participar de assaltos, que diga não aos pedidos de Chickamaw e T-Dub.

E, ora, ora, ora: não eram adolescentes. PelamordeDeus! Tinham 20 e tantos anos, os dois. Eram jovens, mas não eram adolescentes.

É uma forçação de barra para dizer que Keechie e Bowie já antecipavam os personagens do filme que tornaria Nicholas Ray ainda mais amplamente conhecido e respeitado no mundo todo, Rebel Without a Cause, no Brasil Juventude Transviada, de 1955, com os jovens James Dean, Natalie Wood e Sal Mineo.

Duas sequências impressionantes, estupendas

Antes de transcrever outras opiniões sobre o filme, gostaria de registrar que há nele duas sequências absolutamente impressionantes, estupendas, maravilhosas. A primeira delas é quando Bowie e Keechie estão fugindo não da polícia, ainda, mas dos amigos e parentes bandidos – fugindo da areia movediça da vida no crime, ou junto do crime. Estão em um ônibus da Greyhound; o ônibus pára numa pequenina cidade do interiorzão do Texas e, da janela, eles já enxergam um anúncio em neon – casamentos a 20 dólares.

Toda a sequência é magistral, de tirar o fôlego do espectador – mas uma tomada, em especial, provocou exclamações da Mary e minhas: aquele iniciante, aquele sujeito que estava fazendo seu primeiro filme, bota a câmara atrás do anúncio de neon. Vemos em primeiro plano as letras, ao contrário, é claro, como se vistas no espelho, e lá do outro lado da rua, ao fundo, caminhando lentamente, inseguros, os dois jovens que nunca foram propriamente apresentados ao mundo que nós conhecemos.

É demais.

A outra sequência que me impressionou especialmente é a que com certeza impressionou a todos na época do lançamento. É bem mais para o fim, quando, tendo atravessado a fronteira estadual, por um dia, ou algumas horas, ao menos, o casal de jovens sai às ruas durante o dia, como se fossem pessoas normais, como se pertencessem ao mundo. Passeiam, observam as atitudes das pessoas, depois se permitem ir a um restaurante em que uma cantora interessante, de presença forte, muito gingado e bela voz (interpretada por Marie Bryant) apresenta a canção “Your Red Wagon”.

O dia de pessoas normais termina subitamente quando o gerente do lugar, ou coisa parecida, cerca Bowie no banheiro e manda que o casal desapareça da cidade imediatamente.

“Uma defesa da inocência perseguida”

Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “O primeiro filme do diretor Ray é uma história sensível, bem feita, de jovens amantes que são fugitivos da lei. Passado nos anos 30, ele evita clichês e cria um considerável impacto. Baseado no livro de Edward Anderson Thieves Like Us, refeito em 1974 com aquele nome.”

Sim, houve um Thieves Like Us, dirigido pelo grande Robert Altman em 1974, com Keith Carradine e uma das atrizes prediletas do diretor, Shelley Duvall. No Brasil o filme de Altman teve o título de Renegados Até a Última Rajada.

O Guide des Films de Jean Tulard diz: “Pouco conhecido durante um bom tempo, por ser uma       produção B, é um filme muito belo, próximo de J’ai le Droit de Vivre, de Lang: uma defesa da inocência perseguida e do amor louco”.

J’ai le Droit de Vivre é o título francês de You Only Live Once, no Brasil Vive-se Só uma Vez, que Fritz Lang realizou em 1937, com Henry Fonda como um homem que foge da prisão e é acompanhado pela mulher, interpretada por Sylvia Sydney. Imogen Sara Smith, a estudiosa de obra de Nicholas Ray, fala bastante desse filme no documentário do DVD da Versátil.

Uma atriz promissora, que morreu cedo demais

Um rápido registro sobre os dois atores principais. Farley Granger (1925-2011) faria, logo depois deste They Live Like Us, dois filmes com Alfred Hitchcock: Festim Diabólico/Rope, daquele mesmo ano de 1948, e Pacto Sinistro/Strangers on a Train, de 1951. E, em 1954, teve a honra de ser dirigido por Luchino Visconti em Senso, no Brasil Sedução da Carne, ao lado de Alida Valli.

Um caso fantástico de um ator que, jovem, fez quatro filmes importantes, com grandes realizadores – os mais importantes de sua longa carreira de mais de 80 títulos.

Cathy O’Donnel, nascida em 1923 no interior do Alabama como Ann Steely, ganhou esse nome artístico do produtor Samuel Goldwyn. Apresentado a ela por um caçador de talentos, Goldwyn ofereceu à moça um contrato, matriculou-a na American Academy of Dramatic Arts e a colocou para treinar a voz e se livrar do pesado sotaque sulista. Em 1946, fez parte do elenco estelar de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, de William Wyler, que logo viraria um clássico.

Parecia que para Ann Steely-Cathy O’Donnel o céu seria o limite – mas aí veio a roda-viva. Aos 24 anos, ela se casou com Robert Wyler, irmão do diretor William Wyler – com quem Samuel Goldwyn havia acabado de romper relações pessoais e profissionais de forma rude, virulenta. Numa reação idiota de vingança, Goldwyn cancelou o contrato com a atriz, o que provocou um impacto na carreira dela.

Cathy O’Donnel e Farley Granger se reuniram novamente em Pecado Sem Mácula/Side Street, outro filme noir, dirigido por Anthony Mann. E o cunhado William Wyler voltaria a dirigi-la em Chaga de Fogo/Detective Story (1951) e Ben-Hur (1955). Ela morreu jovem demais, com apenas 46 anos, em 1970, de câncer.

Anotação em abril de 2019

Amarga Esperança/They Live By Night

De Nicholas Ray, EUA, 1948.

Com Cathy O’Donnell (Keechie), Farley Granger (Bowie)

e Howard da Silva (Chickamaw), Jay C. Flippen (T-Dub), Helen Craig (Mattie), Will Wright (Mobley), Marie Bryant (a cantora no bar), Ian Wolfe (Hawkins), William Phipps (jovem fazendeiro), Harry Harvey (Hagenheimer), Regan Callais (jovem esposa), Frank Marlowe (o marido de Mattie), Jim Nolan (Schreiber), Charles Meredith (Hubbell), J. Louis Johnson (Porter), Myra Marsh     (Mrs. Schaeffer)

Roteiro Charles Schnee, Nicholas Ray

Baseado no romance Thieves Like Us, de Edward Anderson

Fotografia George E. Diskant

Música Leigh Harline

Montagem Sherman Todd

Produção John Houseman, RKO Radio Pictures

P&B, 95 min

***

Titulo na França: Les Amants de la Nuit. Em Portugal: Filhos da Noite. Na Itália: La Donna del Bandito.

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