Amor Por Direito, no original Freeheld, é um filme que conta uma história real importante: um dos muitos episódios da aparentemente interminável luta pela igualdade de direitos entre os seres humanos. É, portanto, um filme coalhado de belas frases – belas frases de pessoas que defendem o que é justo, o que é certo, o que é de direito.
Uma das mais belas frases de Freeheld, no entanto, é o silêncio.
Discute-se, num condado do Estado de Nova Jersey, já passados dois mil anos da morte de Jesus Cristo, a questão da homossexualidade, a questão de se uma união estável entre pessoas do mesmo sexo é diferente da união entre pessoas de sexos distintos.
Entre os cinco homens que respondem pelas decisões do condado de Orange – o órgão local semelhante às nossas câmaras de vereadores –, há quem invoque a religião cristã para dizer que casais do mesmo sexo não são aceitos pela Bíblia.
Um padre chega ao microfone. Um padre de pele negra – a cor da pele das pessoas não importa coisa alguma, mas nos Estados Unidos, país de profundo e arraigado racismo, importa muito, mas aquele homem de pele negra é padre, e então ele é ouvido com respeito tanto pela platéia quanto pelos cinco legisladores pelo condado, os freeholders (daí o título original do filme, um jogo de palavras que significa algo como dependente dos legisladores, tornada cativa pelos legisladores, nas mãos dos legisladores).
O padre diz o seguinte:
– “Vou repetir para vocês, aqui, o que Jesus Cristo disse, segundo a Bíblia, sobre a homossexualidade:
E ele fica em absoluto silêncio durante um imenso minuto. Para aí esclarecer:
– “Nada. Nenhuma palavra.”
A sargento da polícia Laurel era competente, dedicada – e homossexual
É um dos melhores momentos deste filme de 2015, estrelado por duas das mais talentosas atrizes em atuação no cinema americano, Julianne Moore e Ellen Page, que conta a história real da sargento de polícia Laurel Hester.
É uma história pavorosa, que envergonha a humanidade – uma história que expõe uma sociedade retrógrada, calhorda, medieval, não na Arábia Saudita de 1500, mas em Nova Jersey, aquele estado que fica pertinho de Nova York, o umbigo do capitalismo, a capital do mundo. Não 500 anos atrás, mas já neste milênio, o terceiro desde que Cristo pregou os ensinamentos que hoje são seguidos por algo em torno de um terço da população do planeta.
Em 2002, Laurel Hester (interpretada por Julianne Moore), sargento da polícia de Orange County respeitada pelos colegas, dedicada, boa de serviço, já bastante experiente, conheceu uma moça bem mais nova que ela, Stacie Andree (o papel de Ellen Page) – e foi paixão à primeira vista.
Segundo mostra o filme, Laurel mantinha em absoluto segredo sua homossexualidade – até porque admitir a homossexualidade significava adeus às chances de promoção na carreira. Essa questão aparece várias vezes nos diálogos, e o roteirista Ron Nyswaner criou uma situação, quando o filme ainda está bem no começo, para evidenciar o fato. Um dos primeiros encontros de Laurel e Stacie acontece num bar gay, frequentado por homens e mulheres. Lá pelas tantas, Stacie sai para pegar uma cerveja – e então Laurel vê seu colega Todd Belkin (o papel de Luke Grimes). Visivelmente perturbada, ela sai do bar por uma porta traseira, acende um cigarro – Laurel fuma demais nas primeiras sequências do filme. Fica absolutamente evidente que ela não queria de forma alguma ser vista num bar gay por um colega – e seu colega, da mesma forma, ficou inteiramente apavorado por ser visto ali.
Nem mesmo Dane Wells (Michael Shannon, na foto acima), o maior amigo de Laurel, seu parceiro no dia-a-dia de caça a bandidos, traficantes, tinha idéia da opção sexual dela. Na verdade, Dane tinha até mesmo uma atração por ela – que não se transformava numa declaração por um certo temor de com isso atrapalhar a boa parceria, a grande camaradagem entre eles.
Laurel quer que sua pensão seja paga à companheira – mas o pedido é negado
Apesar de ter passado toda a vida – e seus mais de 20 anos de trabalho na polícia de Orange County – no armário, um armário trancado a sete chaves, Laurel se desmancha com o amor pela garota Stacie. O namoro fica firme, e logo vira casamento de fato. A sargento compra uma casa para dividir com a amada; pessoa simples, de origem humilde, mas prendada para obras e mecânica, Stacie executa ela mesma uma bela mexida na casa – derruba paredes, troca piso, pinta as paredes.
E então, quando o filme está com 40 dos seus 103 minutos de duração, começa a aparecer o ponto central, fulcral da história: Laurel é diagnostica com câncer no pulmão em estágio avançado, praticamente terminal, chance de sobrevivência mínima.
Stacie estava empregada numa oficina, como mecânica – mas não teria como pagar a hipoteca da casa. As duas haviam formalizado a união estável – e então Laurel pede à instância diretora do condado, formada por cinco pessoas, cinco freeholders, que, quando morrer, a pensão a que tem direito seja paga à sua parceira.
E o colegiado nega o pedido.
O filme mostra os cinco freeholders reunidos, tomando a decisão. A decisão de negar o pagamento da pensão à parceira, companheira de união estável – o espectador vê – é tomada em pequena parte por medida de economia, pretenso cuidado com as contas públicas, mas basicamente por preconceito mesmo. Por caretice, idiotice de gente retrógada, atrasada, apegada ao que consideram que sejam ensinamentos religiosos – embora não haja manifestação alguma de Deus algum estabelecendo que união de pessoas do mesmo sexo seja diferente de união de pessoas de sexo distinto.
Só há um, entre os cinco, que entende que o condado tinha que dar a pensão da sargento Laurel à sua companheira; chama-se Bryan Kelder, e é interpretado por Josh Charles, o bom ator narigudão que faz o advogado Will Gardner na série The Good Wife – o cara que demora pacas, mas acaba comendo the good wife.
É um personagem bem construído, o desse sujeito que tem certeza de que o certo é pagar a pensão – mas é derrotado pela maioria dos freeholders.
Grandes desempenhos de Julianne Moore, Ellen Page e Steve Carell
Há um outro personagem importante na história. Lá pela metade do filme, quando a luta de Laurel pelo direito de deixar sua pensão para Stacie está no começo, surge na vida dela um sujeito chamado Steven Goldstein, um ativista do movimento gay, um lutador por todas as causas de igualdade absoluta de direitos de gays e héteros.
Esse Steve Goldstein é mostrado no filme como um sujeito firme, determinado, e (talvez fosse mulher usar a adversativa “mas”) absolutamente estridente, belicoso, barulhento, escandaloso, esporrento. Define-se como um judeu gay – e abusa do barulho. Leva para dentro da pequena cidade de Nova Jersey uma turba barulhenta de ativistas gays, e usa todos os argumentos possíveis para transformar a luta de Laurel em um assunto que atraia a mídia local e nacional.
Dane Wells, o parceiro de Laurel na polícia, Stacie e a própria Laurel não gostam nada do estilo de Steve Goldstein. Dane Wells é o mais capaz de verbalizar que aquele jeito barulhento talvez seja pior para a causa, porque não pega nada bem num lugar conservador como aquela cidade. Mas Steve Godstein é uma força da natureza: o bicho – para não dizer a bicha, que é politicamente incorretíssimo – não pára diante de nenhum obstáculo.
Freeheld não tem créditos iniciais, como a maioria dos filmes americanos dos últimos anos, e então me surpreendi bastante quando Steve Goldstein aparece em cena, porque ele vem na pele de Steve Carell, esse sujeito que é um ótimo ator, excelente comediante, e um gigantesco astro. É fascinante que tenha aceitado esse papel secundário, numa produção do cinema independente – ele, que é um dos atores mais conhecidos do cinemão americano hoje. Seguramente topou porque gostou do projeto, da proposta, da coisa de participar de um filme que mostra um episódio importante da luta pela igualdade de direitos.
E parece ter se divertido muito. As caras que faz são ótimas, deliciosas.
Me peguei fascinado com a capacidade de Steve Carell fazer um gay tão afetado, quase o que antes chamávamos de veado – e, ao mesmo tempo, com a tremenda facilidade com que Julianne Moore interpreta uma lésbica de muitas atitudes bastante… ahnn… Serei condenado ao fogo dos infernos pelo povo do politicamente correto se disser “atitudes bastante machas”?
Não que isso tenha importância, mas Steve Carell e Julianne Moore são héteros. Ellen Page é declarada, assumidamente gay.
Está maravilhosa, a garotinha Ellen Page, que sempre considerei uma das melhores atrizes em atuação, desde que a vi pela primeira vez em Menina Má.com, de 2005. Ela faz uma Stacie Andree extremamente contida. É como se Stacie – moça simples, humilde, de pouco estudo, repito – tivesse plena consciência de que era o tempo todo secundária: era garotinha, Laurel era madura; não tinha uma profissão definida, um bom emprego, Laurel era veterana policial, reconhecida, admirada, medalhada. E então essa atriz extraordinária faz com brilho o papel daquela pessoa simples, sem brilho especial – a não ser o fato de ter se tornado a mulher da vida de Laurel.
Penso aqui que o papel de Stacie é o tipo do papel menos oscarizável possível. Chamam a atenção, dão indicações a prêmios os papéis de personagens que excedem – que falam alto, falam bem, brilham em algum tipo de atividade, ou então erram demais, bebem demais, ou são doentes. Stacie é o contrário de tudo isso – e a pequena Ellen Page faz uma Stacie que impressiona, emociona.
A Julianne Moore coube o papel oposto, o que chama mais a atenção. E ela é uma excelente atriz, e faz essa Laurel de forma maravilhosa. Impossível não chorar diante do avanço da doença sobre Laurel.
Os ativistas xiitas não gostam de admitir, mas a vida dos gays melhorou muito
Com tantos pontos positivos – história real importante, caso que fez avançar a sociedade rumo à igualdade entre as pessoas, atrizes excelentes, ator excelente –, este Freeheld não me pareceu, no entanto um filme muito bom. Me pareceu esquemático demais, simplificado demais, óbvio demais, previsível demais.
Muito preto no branco demais – sem lugar para a quantidade imensa de cinzas que há entre um e outro.
Merece ser visto, é claro. Tem boas intenções, defende as coisas certas. Emociona – Mary chorou várias vezes, enquanto víamos.
Muitas vezes não somos capazes de perceber – mas muita coisa melhora neste mundo de Deus, o diabo e esses raios de criaturas bípedes desplumadas que são capazes das maiores vilezas e das maiores belezas.
Os ativistas xiitas fazem questão de não admitir, mas a vida dos gays melhorou demais, nas últimas décadas. Ah, demorou – verdade, demorou. Não deveria jamais ter sido tão ruim quanto já foi – verdade, não deveria. Mas melhorou – e muito.
Deo gratias.
Anotação em novembro de 2017
Amor por Direito/Freeheld
De Peter Sollett, EUA, 2015
Com Julianne Moore (Laurel Hester), Ellen Page (Stacie Andree)
e Michael Shannon (Dane Wells), Steve Carell (Steven Goldstein), Luke Grimes (Todd Belkin), Gabriel Luna (Quesada), Anthony De Sando (Toohey), Skipp Sudduth (Reynolds, o chefe da polícia), Josh Charles (Bryan Kelder), Kevin O’Rourke (Dan Wickery), Tom McGowan (William Johnson), William Sadler (Peter Santucci), Dennis Boutsikaris (Pat Gerrity), Adam LeFevre (Don Bennett), Jeannine Kaspar (Margaret)
Roteiro Ron Nyswaner
Fotografia Maryse Alberti
Música Johnny Marr e Hans Zimmer
Montagem Andrew Mondshein
Produção Double Feature Films, Endgame Entertainment, High Frequency Entertainment, Head Gear Films, Metrol Technology
Cor, 103 min (1h43)
**1/2
Gostei do filme, e tive as mesmas impressões que você. Achei esquemático, previsível. Mas assim como a Mary, chorei em várias partes. Fiquei meio que com pena da personagem de Ellen Page, tão pequena, frágil, parecendo um tanto sofrida, e sempre se sentindo diminuída, sem brilho especial, como disse você; a atuação da atriz me emocionou, mais até do que a evolução da doença da personagem de Julianne Moore. (O enorme preconceito de alguns personagens me deixava revoltada).
Adorei ver Steve Carrel como gay afetado, e acho que seu personagem foi o alívio cômico da história, principalmente com o Dane Wells super macho e quadradão de Michael Shannon fazendo o contraponto.
Achei estranho o cabelo da personagem de Julianne Moore, como se estivesse nos anos 1970, e fosse uma das Charlie’s Angels. Ri alto do “atitudes bastante machas”.
Puxa, não chama o Josh Charles de narigudão, que ele é gato demais, e só melhorou com o tempo. Tem o nariz grande, mas é um nariz bonito. E apesar de eu não curtir roupa formal, inegável que o cara fica bem de terno e gravata, ainda que o figurino não seja tão de primeira quanto era em “The Good Wife”.
Foi muito bom vê-lo atuar novamente, depois do fim da série (Will Gardner era meu personagem preferido). Eu adoro o jeito que ele fala, acho sexy; não sei se é o sotaque ou o quê.
No mais, vejam o filme e leiam os últimos parágrafos do texto com atenção (ou vice-versa).