Anne +: O Filme / Anne +

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 3/2022.)

Anne, uma jovem lésbica com pretensões literárias na Amsterdã de hoje (o papel de Hanna van Vliet) não tem nada assim de propriamente especial. Não é especialmente bela, nem especialmente inteligente, nem especialmente coisa alguma. Tem muito mais dúvidas que certezas. Muitas vezes não sabe muito bem o que quer.

Talvez seja exatamente por isso, por ser uma garota igual a tantas outras, igual à imensa maior parte das pessoas, que Anne tenha encantado tanta gente. Milhares, centenas de milhares de pessoas, nos Países Baixos e pelo mundo afora, curtiram ver na tela suas amizades na comunidade LGBTQ+, seus muitos e muitos e muitos namoros. Eles foram o tema de uma série que teve duas temporadas, em 2018 e 2020, com 14 episódios no total.

O grande sucesso levou a equipe a lançar, em 2021, este Anne +, que no Brasil, exibido pela Netflix, ganhou o título de Anne +: O Filme.

Não vi a série, mas, pelas informações disponíveis todas, o filme não é um resumo da série – que é o que foi feito, para dar apenas um exemplo, com a maravilhosa série Anos Dourados, de Gilberto Braga com direção de Roberto Talma, exibida na Rede Globo em 1986 e em 2015 adaptada para Anos Dourados – O Filme.

Não. Neste caso aqui, as realizadoras fizeram algo semelhante a Downton Abbey: depois das seis temporadas da série, lançadas entre 2010 e 2015, os realizadores lançaram um filme, e depois ainda outro, Downton Abbey (2019) e Downton Abbey: A New Era (2022), em que se prossegue a história apresentada na série.

Anne +: O Filme mostra a vida de Anne depois dos acontecimentos que haviam sido apresentados nos 14 episódios da série.

A equipe e os atores são sempre os mesmos. É de fato uma continuação.

(Ah, sim, Países Baixos. Levei muito tempo para compreender que se deve usar Países Baixos, e não Holanda.)

História de amor não segue uma linha reta

O sinal de “mais” após o nome de Anne no título não indica que Anne é demais. Indica que a obra fala de Anne mais outra pessoa. Eis os títulos dos seis capítulos da primeira temporada da série: Anne + Lily. Anne + Janna. Anne + Sophie. Anne + Esther. Anne + Sara. Anne +.

E é isso mesmo: na primeira temporada, Anne namora Lily, depois Janna, depois Sophie, depois Esther – e depois Sara.

Lily foi o primeiro amor, e foi grande. O maior, talvez – até que apareceu Sara (o papel de Jouman Fattal).

Na segunda temporada, vê-se que a história Anne + Sara não se constrói – para lembrar da imagem que Georges Moustaki criou em “La Ligne Droit” – em uma linha reta: “Je ne t’attends pas au bout d’une ligne droite / Je sais qu’il faudra faire encore des détours / Et voir passer encore des jours et des jours”. Como toda, ou quase toda história de amor, é preciso, como diz a canção, esperar pelo outro não no final de uma linha reta, porque a gente sabe que é sempre preciso haver vários desvios.

Sara ainda não está absolutamente certa quanto à sua sexualidade. E então Anne namora Caro, embora o caso não a deixe muito alegre. Seus pais vão se divorciar, ela está acumulando dívidas. Está trabalhando no seu primeiro romance, e aparentemente isso, pelo menos, está indo bem.

E aí Sara reaparece, e durante um tempo tudo fica na boa. As duas passam a viver juntas.

Só que Sara tem o sonho de conseguir um emprego numa grande corporação e passar uma temporada em Montreal.

Isso tudo rola na série.

O filme começa com Anne se lembrando de alguns dos muitos bons momentos que ela e Sara viveram juntas. Anne está agora com 25 anos, e Sara está embarcando para o Canadá. As duas combinaram que Sara vai primeiro, para assumir o cargo na grande empresa e se instalar; Anne ficará mais algum tempo em Amsterdã, para se desfazer dos móveis e entregar o apartamento em que as duas viviam, e terminar de escrever seu romance.

As coisas não vão bem na vida de Anne

Havia uma combinação entre as duas: cada uma delas poderia, se quisesse, ter uns casinhos. Isso não afetaria a relação. Algumas décadas atrás esse tipo de acerto era chamado de casamento aberto; Anne e Sara usam o termo relacionamento poliamoroso.

Como diz a sabedoria popular, na prática a teoria é outra, e quando, durante um telefonema, aparece na tela do celular de Anne uma gatinha beijando Sara, e Sara conta que é alguém com quem ela está saindo, mas está tudo bem, ela ama Anne demais da conta, e tal e coisa, os alicerces da moça, que nunca foram mesmo muito sólidos, dão uma boa chacoalhada.

Coisa ruim nunca vem uma sozinha – e a editora que havia gostado do início do livro que Anne estava escrevendo passou a ver sérios problemas nos capítulos que a moça acabara de concluir. Ela pergunta a Anne o que é que a protagonista da história quer, afinal de contas.

A protagonista da história – como os protagonistas da imensa maioria das histórias que os jovens escrevem – é bastante parecida com a autora. E os acontecimentos que ela relata no livro, e os amigos da protagonista, são muito parecidos com os acontecimentos na vida de Anne e com os seus amigos.

“Não acontece muita coisa”, sentencia a editora.

Sim, porque, da mesma forma, não acontece muita coisa assim diferente, notável, na vida de Anne e dos seus amigos. E não é apenas a protagonista da história que não sabe o que quer. A autora também não sabe.

A relação afetiva básica em crise, o livro que está escrevendo em crise. Anne não está nada bem.

O ponto de sua vida que está firme, forte, são seus amigos – um grande número de moças e moços, todos ali na mesma faixa da idade, todos gays, todos classe média de país rico, sem emprego fixo, sem carreira definida, mas também sem passar por necessidades básicas. E então praticamente toda noite a turma vai para um bar ou outro, ou outro ainda, e bebe, e dança, e conversa.

Como tudo na vida.

É interessante notar isso. As realizadoras parecem fazer questão de mostrar que aquela turma de jovens de Amsterdã – a cidade tida e havida como liberal demais nos costumes, como paraíso para quem usa drogas – é exatamente igual a qualquer turma de jovens de qualquer cidade grande do Ocidente. Eles gostam de sair juntos, ir a bar, dançar, conversar e beber. Bebem bastante, é verdade – cerveja e também destilados. Como em qualquer lugar do mundo.

Não se fala em cocaína, heroína, droga pesada alguma. Até maconha aparece pouquíssimo no filme.

Uma figura absolutamente andrógina

Lá pelas tantas, pinta alguém novo no pedaço. Num show de drag queens num bar que a turma frequenta, Anne presta atenção em Lou (o papel de Thorn Roos de Vries, à direita nas duas fotos acima). Os amigos sabem que, lá em Montreal, Sara está com uma namorada; talvez Anne devesse ter um namoro também, para compensar. Mexem uns pauzinhos, trocam números de telefones, e Anne vai se encontrar com Lou.

– “Eu esqueci como é que se faz isso”, pensa Anne, no momento em que está se encaminhando para encontrar Lou, que vem em sua direção. Ela pensa isso – meu Deus, como é mesmo esse negócio de primeiro encontro, primeira conversa? – e o espectador ouve a voz dela expressando o seu pensamento. É uma sacadinha das realizadoras; acontece algumas vezes ao longo do filme. Anne pensa alto – e a gente ouve a voz dela contando o que ela está só pensando, e não falando de fato.

Lou é uma figura que gente fora do universo LGBTQ+, como Mary e eu, tem dificuldade para entender. Naquele primeiro encontro, Anne pergunta como ele/ela gosta de ser tratado/tratada, e Lou responde com aquelas palavras neutras que não decorei.

Lou é uma figura fascinante. É totalmente andrógino – muito mais andrógino do que David Bowie nos seus momentos mais andróginos. Lou parece realmente neutro, nem o nem a, nem ele nem ela.

Não transam de cara a moça lésbica e aquele/aquela que é uma perfeita mistura de ele com ela. É só num terceiro ou quarto encontro, sei lá, que vão para a cama. Pelas cicatrizes no peito de Lou, Mary inferiu que era um transgênero que originalmente era mulher.

Lou pergunta a ela se pode usar um treco que as legendas do filme traduziram espertamente para cintaralho – um cinto com um gigantesco, mas gigantesco caralhão. A essa altura, o espectador já havia visto que Anne e Sara usavam objetos em forma de pau. Anne responde que nunca havia experimentado. E o espectador vê que ela tem imenso prazer ao experimentar.

A sequência é bastante interessante, porque ao mesmo tempo é às claras, sem pudicícias – mas também sem explicitudes que beirassem o pornográfico.

Me pareceu um belo gol da diretora Valerie Bisscheroux, e por isso quis falar disso.

A série e o filme são criações de três moças

Valerie Bisscheroux foi a diretora dos 14 episódios da série, e dirigiu também o filme.

Uma mulher assina sozinha o roteiro original da série, ou seja, a criação da história e também do roteiro. Chama-se Maud Wiemeijer, e a série e o filme Anne + parecem ter sido, por enquanto, as suas realizações na vida.

Os créditos de autoria de história e roteiro do filme são mais complexos. São assim: Roteiro Maud Wiemeijer (escritora), Valerie Bisscheroux & Maud Wiemeijer (criadoras) & Hanna van Vliet (co-criadora).

Três mulheres trabalhando juntas – me parece que é isso o que a assinatura no filme quer dizer. A autora original Maud Wiemeijer, a diretora de todos os episódios e do filme, Valerie Bisscheroux, e a atriz central, que faz Anne, essa moça Hanna van Vliet.

São todas extremamente jovens. A escritora Maud é de 1993. A atriz Hanna, de 1992. Valerie, a diretora, de 1993.

Vi fotos de Valerie na internet, e achei que o rosto dela tem grande semelhança com o de Hanna.

Aliás, as três moças assinam juntas o casting do filme – os atores foram escolhidos pelas três, em conjunto.

Se duas delas foram namoradas, ou as três viveram um poliamor, isso não fiquei sabendo. O que vi, e achei interessante registrar aqui, foi a definição que Valerie Bisscheroux faz de si própria em seu site na internet. O site é em inglês, não em holandês. Vou tentar ser o mais literal possível:

“Olhar queer

“Como uma realizadora queer, meu foco é criar personagens e tramas LGBTQ+ que sejam nuançadas e realistas. Minha intenção é por representação positiva e narrativas empoderantes.

“Quero retratar pessoas em camadas, como elas são, e gostaria de mostrar quão liberador é pensar fora das fronteiras do gênero. Sinto uma grande responsabilidade para mostrar personagens independentes e vulneráveis, com foco em suas forças e falhas. Pessoas que estão procurando por sua identidade (gênero), expressão de gênero e orientação sexual, seguindo seu próprio caminho com orgulho e amor-próprio.”

O pessoal moderno anda ressignificando termos

A expressão queer é usada demais, demais, ao longo dos curtos 94 minutos do filme.

Li bastante sobre essa expressão depois de ver Crônicas de San Francisco/Tales of the City (2019), uma série baseada nos livros do escritor gay Armistead Maupin. Fiquei sabendo, então, que queer é uma daquelas expressões que foram banidas ao longo das últimas décadas pelo politicamente correto, por ser considerada ofensiva aos homossexuais – exatamente como veado, bicha, sapatona, sandalhinha. Está no meu Dictionary of English Language and Culture da Longman: “old-fash infml derog” – old-fashioned informal derogatory, gíria antiga e depreciativa.

No oitavo episódio de Tales of the City de 2019, Shawna, uma das protagonistas da série, o papel da extraordinária Ellen Page, ela mesma uma gay assumida na vida real, que hoje se chama Elliot Page, usa a palavra queer, numa conversa com um casal hétero, gente boa, de comportamento padrão mas de forma alguma preconceituosa, ao contrário. E ambos, marido e mulher, demonstram achar estranho que a garota jovem, anticonvencional, vinda de San Francisco, use a palavra atualmente banida. E aí Shawna explica: – “Ah, nós a ressignificamos. E, sim, eu sou queer.”

A comunidade focalizada na história passada em San Francisco pertence ao grupo moderno que “ressignificou” a expressão queer. Deu novo significado a ela. Passou a usá-la com orgulho – até porque, afinal, queer, originalmente, basicamente, significa estranho, esquisito, e portanto diferente do padrão, da maioria.

Vê-se então que a comunidade LGBTQ+ da Amsterdã de hoje – a mostrada neste filme, e bem representada pela diretora Valerie Bisscheroux – se comporta exatamente como a comunidade LGBTQ+ de San Francisco mostrada na série baseada nos livros de Armistead Maupin.

A turma de Anne ressignificou a expressão queer!

Uns cinco anos atrás, minha sobrinha-neta Sarah Vaz, uma ativista da causa LGBTQ+, me mostrou um texto em que ela defendia o uso desses termos que o politicamente correto havia condenado, sapatonas, sandalhinhas. Dizia que elas, lésbicas, deveriam usar e com orgulho – por que não? – esses termos. Pois é: no Brasil também já estavam ressignificando. A turma de Anne e a diretora Valerie Bisscheroux aprovariam o texto da Sarah.

Anotação em março de 2022

Anne +: O Filme/Anne +

De Valerie Bisscheroux, Países Baixos, 2021

Com Hanna van Vliet (Anne)

e Jouman Fattal (Sara), Thorn Roos de Vries (Lou), Jade Olieberg (Jip), Eline van Gils (Lily), Jesse Mensah (Max), Huib Cluistra (Teun), Ayla Satijn (Maya), Amy van der Weerden (Daantje), Anne Chris Schulting (Stella), Hein van der Heijden (Jos), Jacqueline Blom (Liesbeth), Romana Vrede (Jill), Georgina Verbaan (professora de redação), Hassan Al-Lahham (o pai de Sara), Kholoud Alhaffar (a mãe de Sara), Kirsten Mulder (Esther), Martin Schwab (Marco)

Roteiro Maud Wiemeijer (escritora), Valerie Bisscheroux & Maud Wiemeijer (criadoras) & Hanna van Vliet (co-criadora)

Fotografia Cor Booy

Música Tess van der Velde

Montagem Augustine Huijsser

Casting Valerie Bisscheroux, Hanna van Vliet, Maud Wiemeijer

Desenho de produção Femke Hoebe 

Figurinos Akelei Loos   

Produção Suzan de Swaan, Rachel van Bommel, Millstreet Films.

Cor, 94 min (1h34)

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