Andrew Niccol é um dos mais extraordinários escritores e diretores do cinema mundial nas últimas décadas. As histórias que cria são brilhantes, sérias, profundas, e com grande originalidade; trazem discussões fascinantes sobre algumas das questões mais importantes com que a humanidade se defronta. Gattaca (1997), o primeiro dos oito filmes que escreveu ao longo dos últimos quase 20 anos, já era uma prova disso.
Claro, isso é apenas minha opinião, e como eu sempre digo, minha opinião vale no máximo uns três guaranis furados. Mas quis abrir este comentário com essa afirmação assim tão peremptória, tão superlativa, porque creio que Andrew Niccol tem menos reconhecimento do que deveria.
Gattaca é uma ficção-científica sobre um futuro não muito distante em que a engenharia genética criará seres humanos superiores aos nascidos de forma natural. O mundo terá castas sociais rígidas, e o destino de cada pessoa será em boa parte decidido antes mesmo de seu nascimento. É um tema recorrente nas distopias – Metropolis, que Fritz Lang lançou em 1927, já tratava do tema –, mas o filme apresenta uma grande gama de visões sobre esse futuro tenebroso, e envolve o espectador numa atmosfera profundamente soturna, melancólica, acabrunhada, desesperançada.
Um diretor que só escolhe temas polêmicos, difíceis, dolorosos
Claro que volto em seguida a falar especificamente de Gattaca, mas gostaria antes de dar uma passada rápida por alguns dos filmes desse neo-zelandês nascido em 1964 a quem a genética, ou o destino, ou Deus, quem sabe?, aquinhoou com uma imaginação prodigiosa, uma inteligência fora do comum e uma sensibilidade espantosa.
A segunda história criada por Niccol e roteirizada por ele foi dirigida pela excelente Peter Weir – O Show de Truman (1998) é um esbanjamento de criatividade, um espetacular tratado ao mesmo tempo sobre os meios de comunicação, a indústria do entretenimento, o livre arbítrio, as imposições das regras da sociedade – e uma parábola sobre o Criador e as criaturas. Nessa obra-prima, Jim Carrey teve a primeira oportunidade de se mostrar um grande ator dramático – e saiu-se maravilhosamente. A trilha sonora – assim como a de Gattaca – é um assombro.
Realidade artificial, experimentos com novas tecnologias, as fronteiras do mundo tal como sempre conhecemos com esse admirável e ameaçador mundo novo que estamos vendo surgir – esses temas estão sempre presentes na obra de Andrew Niccol, e são a base do seu filme seguinte, Simone (2002), a história de um produtor de cinema (interpretado por Al Pacino) que, para continuar as filmagens de uma nova obra após a estrela abandonar o projeto, decide criar uma atriz digital para substituí-la.
Ao lado do inglês Sacha Gervasi (o diretor de Hitchcock, aquela beleza de filme de 2002 sobre as filmagens de Psicose), foi o autor da história de O Terminal, que Steve Spielberg dirigiu em 2004. Uma parábola bela e desconcertante sobre imigração, refugiados, burocracia, fronteiras nacionais num mundo cada vez mais globalizado.
O Senhor das Armas/Lord of War, de 2005, sobre um comerciante de armamentos no mundo pós-desmantelamento do Império Soviético, em que grupos terroristas podem perfeitamente comprar ogivas nucleares, é talvez um dos mais brilhantes filmes anti-militaristas e anti-indústria armamentista jamais feitos.
Não vi ainda O Preço do Amanhã (2011) nem A Hospedeira (2013). Gostaria muito de ver.
O filme seguinte dele, Good Kill (2014), é também excelente. Aborda um assunto extremamente atual, sobre o qual a gente volta e meia lê nos jornais ou ouve falar na TV, mas a rigor conhece pouquíssimo: os Vant, na sigla em português, UAVs, na sigla em inglês. Unmanned Aerial Vehicles, ou Veículos Aéreos Não Tripulados. O filme mostra como funciona a cabeça dos militares treinados para manipular esses armamentos – eles precisam ter a agilidade de garotos que jogam videogames, só que quando apertam o botão de fato disparam bombas e podem matar de uma só vez dezenas de pessoas.
Como anotei ainda zonzo depois de ver Good Kill, o camarada não está aqui para tratar de temas suaves, agradáveis. Muito ao contrário. Ele só escolhe temas polêmicos, difíceis, dolorosos.
Os casais ricos têm filhos programados geneticamente para serem perfeitos
É fascinante que o ator que faz o protagonista de Good Kill seja o mesmo de Gattaca – e foi uma fantástica viagem ao passado, ao rever agora o filme de 1997, reencontrar o Ethan Hawke de quase 20 atrás, jovenzinho de tudo. Tanto Ethan Hawke quanto Uma Thurman são de 1970, e estavam portanto com 27 anos quando Gattaca foi lançado. Jude Law, o terceiro dos principais atores do filme, de 1972, estava com 25.
Antes dos belos créditos iniciais, o filme apresenta duas epígrafes. A primeira é tirada do livro Eclesiastes da Bíblia: “Vejam a obra de Deus: quem pode endireitar o que está torto?” A segunda é uma frase de Willard Gaylin, professor de Psiquiatria na Universidade de Columbia, autor e/ou organizador de mais de 20 livros: “Não só acredito que nós vamos interferir na Mãe Natureza como acredito que a Mãe quer que façamos isso”.
No futuro não tão distante imaginado por Andrew Niccol, os casais ricos têm filhos programados geneticamente para serem perfeitos, perfeitamente saudáveis, como resultado de cuidadosa seleção dos melhores genes do pai e da mãe. Essas pessoas pertencem à casta mais alta, têm as melhores chances, os melhores empregos, as melhores posições na sociedade. São chamados de “válidos”.
Os que nascem de parto normal, sem o tratamento genético, são chamados de “inválidos” – ou até mesmo “filhos de Deus”.
Ethan Hawke faz o papel de Vincent, o primogênito de um casal que optou por ter um filho de forma natural, como se fazia antigamente. Quando nasceu, os médicos identificaram que ele dificilmente passaria dos 30 anos de idade, e teria diversas “imperfeições” – inclusive miopia e uma tendência para cardiopatia.
O casal, então, optou por ter o segundo filho dentro dos padrões vigentes na sociedade. E Anton (Loren Dean) nasceu absolutamente perfeito, forte, inteligente, ágil.
Vincent e Anton são mostrados em flashbacks como crianças (interpetados respectivamente por Mason Gamble e Vincent Nielson) e como adolescentes (Chad Christ e William Lee Scott).
O ponto central da trama criada por Andrew Niccol é que – como diz a tagline, a frase de marketing presente nos cartazes, depois na capa do DVD – não há genética para o espírito humano. E então desde muito cedo Vincent, apesar de ser um “inválido”, um “filho de Deus”, é inteligente, obstinado, tenaz, um lutador incansável, capaz de tudo para realizar seus desejos. E seu grande desejo, também desde muito cedo, era trabalhar na Gattaca, uma gigantesca, poderosa empresa aeroespacial, e ser escolhido para uma missão em outro planeta.
O pai (Elias Koteas) diz para ele que o único jeito de ele entrar para a Gattaca seria como faxineiro.
Pode haver uma coisa mais absurdamente triste, desesperançada?
Vincent, o “inválido”, faz um acordo, um arranjo, com o “válido” Jerome
Jovem adulto, Vincent vai trabalhar na Gattaca como faxineiro. Às vezes fica observando os foguetes que são lançados, ou o trabalho dos futuros navegadores – e leva bronca por isso do chefe dos faxineiros, Caesar (uma participação especial do veteraníssimo Ernest Borgnine).
Mas Vincent é de fato um lutador, e vai atrás dos serviços de um contrabandista de DNA, German (interpretado por Tony Shalhoub, que anos depois ficaria famoso como o detetive Monk da série de TV). German o põe então em contato com Jerome Eugene Morrow (o papel de Jude Law), um “válido” que é especialmente bem dotado, um gênio, que teve a infelicidade de se tornar paraplégico num acidente de trânsito.
(Deve-se, é claro, atentar para o detalhe do segundo nome de Jerome – Eugene, Eugênio, que vem do grego e significa “bem nascido”. De eugenia, “a ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana”, segundo o Dicionário da Unesp do Português Contemporâneo, ou a ciência do aprimoramento das qualidades genéticas. Eu não sabia, mas vejo agora que o termo eugenia foi criado antes de a humanidade inventar o termo genética. Vivendo e aprendendo.)
Fazem, então, os dois jovens, um acordo, um arranjo, algo não muito distante do acordo entre Fausto e Mefístofles: Vincent, o “inválido” que pode caminhar, assumirá a identidade do brilhantíssimo “válido” mas paraplégico Jerome. E, usando lentes de contato e finas membranas nos dedos para reproduzir os dados genéticos de Jerome, mais bolsas contendo o sangue e a urina dele, Vincent vai se candidatar a uma vaga na Gattaca.
Tudo isso que relatei acontece antes do momento em que estamos quando a ação começa. No inicio do filme, Vincent, fazendo-se passar por Jerome, já está trabalhando na Gattaca. É um dos favoritos do chefão da empresa, Josef, graças à sua inteligência brilhante, sua dedicação ao trabalho. E, dali a poucos dias, deverá embarcar numa viagem a Titã, uma das luas de Saturno.
É o próprio Vincent quem narra para o espectador a sua história – mostrada então em flashbacks.
Quando faltam poucos dias para a saída do foguete rumo a Titã, ocorre algo absolutamente inesperado e chocante: o chefe imediato de Vincent aparece assassinado lá mesmo, dentro da empresa.
As investigações ficarão a cargo do detetive Hugo (interpretado por Alan Arkin) e um supervisor dele – justamente Anton, o irmão de Vincent.
Ethan Hawke e Uma Thurman se conheceram ao filmar Gattaca – e se casaram
Junto de Vincent, no mesmo espaço em que ele trabalha na gigantesca corporação, há uma moça de beleza especial, Irene – o papel de Uma Thurman. Os dois vão se aproximar.
A vida imita a arte, e Ethan Hawke e Uma Thurman, que se conheceram durante as filmagens de Gattaca, apaixonaram-se como Vincent e Irene, e se casaram em 1998. Viveram juntos por seis anos, e tiveram dois filhos.
Josef, o chefão da gigantesca Gattaca, é interpretado por Gore Vidal (1925-2012), o escritor, autor de novelas, peças de teatro, ensaios e roteiros de filmes. Entre outros, Gore Vidal assinou os roteiros de De Repente, no Último Verão (1959), Vassalos da Ambição (1964), Paris Está em Chamas? (1966).
Homem de todas as artes, Gore Vidal – cujo nome de batismo, por coincidência, ou não, é Eugene, Eugene Louis Vidal – gostava de brincar de ser ator nas horas vagas. Participou de 14 filmes como ator, entre eles Bob Roberts (1992), o filme político de Tim Robbins, em que interpreta um senador. Gore era uma figura profundamente ligada à política; da ala mais à esquerda do Partido Democrata, concorreu à Câmara dos Deputados e disputou internamente no partido a indicação para o governo da Califórnia.
O filme é todo cheio de simbolismos, de referências aos elementos da história
A trilha sonora de Michael Nyman é absolutamente extraordinária. O compositor inglês criou temas muito suaves mas ao mesmo tempo marcantes que servem para enfatizar o tom soturno, sombrio da história.
E a fotografia, assinada pelo polonês Slawomir Idziak, é também admirável, de babar. Em muitas sequências, predomina um tom amarelado, que dá uma sensação de coisa outonal, crepuscular, fim de dia, fim de etapa, fim de ciclo, fim da História.
E o filme é todo cheio de simbolismos, referências a elementos que fazem parte dos temas abordados. O fato de o segundo nome do personagem de Jude Law ser Eugene – que tem em si a idéia do bem nascido, e remete a eugenia – é apenas um de muitos desses símbolos, referências sobre os quais fala a página de Trivia do filme no IMDb. Aí vão algumas:
A própria palavra Gattaca tem a ver com DNA, com as letras iniciais das quatro bases do nitrogênio do DNA (ou coisa parecida).
A escada no apartamento de Jerome (na foto) tem uma estrutura helicoidal, assim como o DNA.
Os policiais que investigam o crime acontecido num dos prédios da Gattaca são chamados de “hoovers”, o que é uma óbvia referência ao fundador e primeiro chefão do FBI, J. Edgar Hoover, mas também a Hoover, uma marca de aspiradores de pó famosa nos Estados Unidos. Em várias cenas do filme vemos faxineiros passando aspiradores de pó, para recolher amostras de DNA.
O sobrenome de Irene, a personagem de Uma Thurman, é Cassini – o mesmo do astrônomo italiano do século XVII Giovanni Domenico Cassini, que fez descobertas a respeito dos anéis e das luas de Saturno. Como já foi dito, Vicent está escalado para uma viagem a Titã, uma das luas de Saturno.
Em 1997, o mesmo ano de lançamento do filme, a Nasa lançou uma sonda na direção de Saturno chamada exatamente Cassini.
Em algumas sequências passadas dentro dos prédios da empresa Gattaca, o sistema de som transmite avisos em esperanto, a língua artificial criada no século XIX – artificial como os seres humanos do filme.
Quando está com Irene no restaurante elegante, Vicent joga a fumaça do cigarro dentro do grande cálice de vinho tinto, e comenta com a beldade que a atmosfera de Titã é enevoada. Ao fundo, está tocando… “Nuages”, a famosa canção de Django Reinhardt. Nuage, nuvem…
Um filme que “propõe interrogações pertinentes sobre um futuro muito imediato”
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4, e disse que ele é estimulantemente inteligente, espertamente irônico e tem ótimas atuações. No entanto, “a sociedade tediosa, conformista mostrada não parece convincente”. Ele finaliza dizendo foi uma estréia notável do diretor Andrew Niccol.
O Guide des Films de Jean Tulard foi extremamente sucinto na avaliação: “Un film de Science-fiction très original”.
Já o Petit Larousse des Films, depois de uma boa sinopse, diz: “Absolutamente desprovido de qualquer efeito especial, o primeiro filme de Andrew Niccol é de uma grande beleza formal, a serviço de um roteiro magistral, que evita todos os estereótipos do gênero e propõe algumas interrogações pertinentes sobre um futuro muito imediato.”
É o que digo sempre: os franceses não apenas adoram o cinema e fazem um belo cinema como também são ases ao escrever sobre cinema.
Sim. Gattaca propõe algumas interrogações bem pertinentes sobre o futuro próximo.
Ao rever o filme agora, no entanto, fiquei pensando se a Humanidade não está caminhando para um futuro ainda mais sombrio e apavorante do que o imaginado por Andrew Niccol. Afinal, no filme ainda existem, por exemplo, faxineiros.
Com a revolução que promete vir aí nos próximos dez anos com o uso cada vez mais intensivo dos robôs, faltará emprego para muito mais da metade dos 8 bilhões de pessoas deste planeta.
Anotação em dezembro de 2016
Gattaca, Uma Experiência Genética/Gattaca
De Andrew Niccol, EUA, 1997
Com Ethan Hawke (Vincent Freeman), Uma Thurman (Irene Cassini), Jude Law (Jerome Eugene Morrow)
e Gore Vidal (diretor Josef), Alan Arkin (detetive Hugo), Ernest Borgnine (Caesar, o chefe dos faxineiros), Tony Shalhoub (German, o contrabandista de DNA), Xander Berkeley (Dr. Lamar), Jayne Brook (Marie Freeman, a mãe), Elias Koteas (Antonio Freeman, o pai), Loren Dean (Anton Freeman, o irmão), Mason Gamble (Vincent Freeman menino), Chad Christ (Vincent Freeman adolescente), Vincent Nielson (Anton Freeman menino), William Lee Scott (Anton Freeman adolescente),
Fotografia Slawomir Idziak
Música Michael Nyman
Montagem Lisa Zeno Churgin
Casting Francine Maisler
Produção Columbia Pictures, Jersey Films. DVD Sony
Cor, 106 min
R, ****
Título na França: Bienvenue à Gattaca.
Descubra o esperanto: https://esperanto.blog
Ótima análise! Gosto desse filme, já vi duas vezes. Ficção-científica bem inteligente e pertinente em relação ao futuro humano e a temática da bioética. Obrigado também pela dica do “Paris Está em Chamas?”: interessou-me muito, esse filme, ainda mais com a mão do Gore Vidal no roteiro.
Elenco bonito
Elenco formoso
Elenco bem feito
Texto bonito
Texto formoso
Texto bem feito
Gostei deste filme e, depois de ler o seu comentário, fiquei com vontade de o rever; tenho que estar com mais atenção, há coisas que me escaparam.
Foi bom ler esta crónica que está muito bem escrita. Como é habitual…
Impactante e Arrebatado, mas apenas para alguns. Uma trilha sonora de rasgar o peito, um filme que toca em especial todos os que não se sentem muito adaptados a este mundo, e não se sentiriam mal em abandoná-lo. Sua luta contra tudo e todos, apenas para mostrar a si mesmo sua capacidade de superação, e ao final seguir de fato seu destino. Se voce se emociona e muito, cada vez que ouve a música principal, ou vendo a sequência final … fique tranquilo. Voce não está sozinho …
“Para alguém que nunca se sentiu confortável neste mundo, tenho que confessar que está sendo difícil deixá-lo.
No entanto, como dizem, todos os átomos do nosso corpo já fizeram parte de estrelas. Por isso, na verdade eu posso não estar saindo, mas voltando para casa.”
Um lindo filme, cinema da melhor qualidade, que contribui para nossa compreensão de uma das mais fortes características da natureza humana, a superação.
Poderia ser contado num futuro que se aproxima ou num passado imaginário, a lição seria a mesma: basta haver uma montanha que existirá um homem que desejará escalá-la.