Anotação em 2011: Mais um belo filme do diretor Ferzan Ozpetek, o terceiro que vejo dele. Uma sensível mistura de comédia e drama, uma história de vida em família, homossexualidade, as escolhas que se fazem, os segredos que se escondem, a eterna lição de que é preciso lutar pelas coisas que se quer.
É espantoso como Ozpetek tem talento para dirigir atores. Todo o elenco está brilhante, com atores veteranos e outros muito jovens, uma nova geração de bons atores que surge no cinema italiano.
Dei uma olhada nas anotações que fiz sobre os dois filmes anteriores do diretor, Um Amor Quase Perfeito/Le Fate Ignoranti, de 2001, e A Janela de Frente/La Finestra di Fronte, de 2003, e é muito interessante que o primeiro deles, o terceiro realizado por Ozpetek, impressione pela absoluta simplicidade da narrativa. “O estilo do diretor é absolutamente simples, despojado, sem qualquer firula, fogos de artifício. É aquele tipo de diretor que tem uma boa história e sabe contá-la bem”, anotei ao ver Um Amor Quase Perfeito.
Este O Primeiro Que Disse, ao contrário, tem algumas firulas, pequenos fogos de artifício. Nada exagerado, não, de forma alguma. É tudo muito suave, e extremamente bem feito. Há umas mexidinhas na ordem cronológica, misturam-se algumas imagens do passado com a história que está sendo contada nos dias de hoje; e, no final, há uma fusão, nas mesmas sequências – memoráveis, belíssimas – de pessoas do passado com as do presente.
No passado, uma noiva em fuga com um revólver; hoje, uma matriarca
O filme abre com uma jovem noiva em fuga (o papel de Carolina Crescentini, belíssima), num bosque, longe da cidade. Ela chega a uma casa isolada, onde está um jovem. Surge nas mãos dela um revólver; ela aponta o revólver para o rapaz, depois aponta para seu próprio peito; ele chega perto dela, tenta tirar o revólver de sua mão, corta, vemos a casa do lado de fora, ouvimos o barulho do tiro.
Entremeadas a essa sequência, há tomadas de uma senhora idosa – obviamente aquela que muitos anos antes havia sido a jovem noiva em fuga com um revólver que se encontrara com um rapaz na casa dele.
A senhora idosa (interpretada por Ilaria Occhini) é a matriarca da família Cantone. O espectador é apresentado à família Cantone em uma sequência em um almoço na grande casa deles, e pode-se levar algum tempo para se entender quem é quem.
O chefe da família (estamos no sul Itália, sociedade machista) é Vincenzo (Ennio Fantastichini), o filho da matriarca. Vincenzo dirige a fábrica de massas que havia sido criada por sua mãe e por seu tio Nicola (Giorgio Marchesi). Ele e a mulher Stefania (Lunetta Savino) têm dois filhos: o mais velho é Antonio (Alessandro Preziosi), que toca a fábrica no dia-a-dia. O mais novo é Tommaso (Riccardo Scamarcio, na foto abaixo), que está chegando de uma longa temporada em Roma quando a ação começa. A família vive em Lecce, bem no Sul da Itália.
Antonio e Tommaso têm ainda uma irmã, Elena (Bianca Nappi), casada com Salvatore (Massimiliano Gallo). E há uma tia deles, irmã do chefe da família Vincenzo, Luciana (Elena Sofia Ricci), uma solteirona que na juventude foi hippie, e hoje, solitária, é chegada a uma bebida.
Tommaso, o mais jovem, conta três segredos ao irmão Antonio
Pois é, muitos personagens, família grande, como ainda hoje são grandes muitas famílias na Itália. Mas o protagonista é o filho mais novo de Vincenzo, Tommaso.
Numa conversa com Antonio, o irmão mais velho, Tommaso revela três segredos. O primeiro: em Roma, ao contrário do que fez crer à família, não cursou Administração, e sim Letras. O segundo: não quer saber de administrar a fábrica de massas da família, não quer saber de nada daquilo; quer ser escritor. Já escreveu um romance, que enviou para uma editora, e está aguardando a resposta deles. E o terceiro: é gay.
Os Cantone estão para se associar a uma família rica, os Brunetti, para ter uma injeção de capital e fazer crescer a fábrica. Há um jantar já marcado de toda a família Cantone com o comendador Raffaele Brunetti (Giancarlo Monticelli) e sua filha Alba (Nicole Grimaudo); no jantar, a sociedade seria selada.
Na conversa com o irmão mais velho, Tommaso expõe seu plano: vai anunciar sua opção sexual durante o jantar solene; dessa maneira, acredita ele, será deserdado pelo pai, e ficará livre para voltar para Roma e seu namorado Marco (Carmine Recano), deixando que o irmão Antonio continue à frente da fábrica.
A matriarca é ao mesmo tempo uma presença forte e uma ausência
Quando ocorre o jantar (na foto), estamos aí com não mais que 15 minutos de filme. A seqüência do jantar, longa, é uma maravilha, com todos os atores brilhando, personagens bem formados, bem construídos, definidos.
É uma seqüência digna de Mario Monicelli, o grande cineasta que soube tão bem retratar as famílias, os conflitos familiares, com um humor corrosivo, cortante. É tudo engraçado, mas ao mesmo tempo profundamente triste, amargo, patético.
(Depois que escrevi esta anotação, li a entrevista que Luiz Carlos Merten fez com o diretor Ozpetek para o Estadão, e o diretor diz que Monicelli é “grande demais, um dos maiores”.)
Paralelamente aos acontecimentos que se seguem ao jantar, o filme volta a mostrar, de tempos em tempos, seqüências do passado, as da jovem e bela noiva. O diretor Ferzan Ozpetek, ele mesmo co-autor do argumento e do roteiro, ao lado de Ivan Cotroneo, faz um certo suspense sobre aqueles acontecimentos do passado; vai revelar bem aos poucos a história da jovem noiva, que hoje, o espectador sabe bem, é a matriarca da família, a mãe de Vincenzo, a avó de Antonio e Tommaso.
É fascinante a forma como os roteiristas e o diretor criaram a personagem. Ela é a pessoa mais importante da história, depois de Tommaso: é ao redor da história do passado dela que se faz mistério, que se cria um certo suspense. Foi ela que iniciou o que hoje é a bem sucedida fábrica de massas que sustenta toda a família. E, no entanto, ninguém fala sequer o nome dela. Todos os demais personagens têm seus nomes, suas identificações claras. A avó é ao mesmo tempo uma presença forte e uma ausência.
Ninguém dá muita importância a ela. Vemos que Tommaso e Antonio têm grande carinho por ela – mas são os únicos que demonstram isso. As demais pessoas da família a tratam como uma velhinha um tanto doida, um tanto velha demais, doente com sua diabete – um peso, uma pessoa que já foi. Às vezes referem-se a ela como “a bala perdida”, numa referência ao episódio mostrado bem no início da narrativa. Os americanos diriam que ela é uma has been – um dos piores insultos que se podem fazer a alguém na sociedade capitalista.
No entanto, a nonna, que ninguém mais (salvo os dois netos) respeita ou ouve, porque é uma has been, porque é velha e é mulher, é uma figura chave na história.
Tanto que o título original do filme, Mine Vaganti, significa exatamente – aprendo com Sandro Vaia – bala perdida, bala disparada por acidente, mina perdida, solta, imprevisível, canhões soltos: o título em inglês do filme é exatamente Loose Cannons.
“Se você fizer sempre o que os outros pedem, não vale a pena viver”
Numa manhã qualquer, a nonna vai ao quarto de Tommaso para acordá-lo. Tommaso estava passando os seus dias cuidando dos assuntos da fábrica, pelos quais não tem o menor interesse, junto com Alba, a jovem, dinâmica, expedita e um tanto extravagante agora co-proprietária da fábrica Cantone, e, à noite, sozinho em seu quarto, escondido, escrevia furiosamente no seu laptop, e então não acordava cedo. E a nonna vai ao quarto dele chamá-lo. O diálogo é belíssimo. Ela pergunta se ele pega na massa que sai quente das máquinas – no tempo em que ela criou a fábrica, ela e seu cunhado Nicola, o tio de Tommaso, pegavam na massa, faziam a massa com suas próprias mãos.
Tommaso não quer discutir. Naquele momento, ele está como Caetano Veloso se definiu durante seu exílio forçado em Londres: “I came around to say yes, and I say!”. E diz à avó que fará, sim, o que ela diz, que vai pegar na massa, para senti-la, como ela e seu tio faziam no passado. E então a nonna diz a frase que, na minha opinião, é o cerne do filme:
– “Se você fizer sempre o que os outros pedem, não vale a pena viver.”
Ilaria Occhini, veterana atriz, brilha como a nonna sem nome
Um imenso acerto do filme foi a escolha da atriz que interpreta a nonna sem nome, figura chave na história que a maioria das pessoas trata sem respeito, como um traste, uma has been. Ilaria Occhini (na foto acima) é uma mulher de grande, forte beleza. A presença dela na tela é tão poderosa que fiquei com a nítida sensação de que já a conhecia de outros filmes. Ela compõe o personagem complexo com imenso talento, e com a ajuda de seu porte, sua beleza.
Ilaria Occhini, conforme conferi depois, nasceu em 1934, em Florença. Estava, portanto, em 2010, o ano do filme, com 76 anos bem vividos. Não tem uma filmografia tão extensa – são 46 títulos, muitos deles filmes para a televisão italiana. E eu estava enganado: não, não vi filme recente dela, não poderia me lembrar do rosto dela. Mas vi, sim (e só fiquei sabendo disso depois), um filme com ela, bem antigo, de quando ela era ainda jovem: em Dois Homens Contra uma Cidade/Deux Hommes dans la Ville, de 1973, ela faz o papel da jovem e linda mulher do bandido interpretado por Alain Delon. É um papel pequeno, mas importante. Vi o filme poucos meses atrás, e aquela então jovem atriz de grande beleza havia me impressionado.
Atores talentosos, personagens ricos, uma relação fascinante entre a mulher forte e o gay
O ator que interpreta Tommaso, Riccardo Scamarcio, de quem jamais tinha ouvido falar, é, segundo informa a capinha do DVD do filme, um ator ascendente na Itália hoje. Deve ser mesmo. É um bom ator, e tem fina estampa; não fico muito à vontade para falar da beleza de atores homens, mas esse rapaz faz lembrar bastante a beleza do jovem Tony Curtis, e até mesmo a de Alain Delon.
Ótima atriz é também a garota Nicole Grimaudo (na foto acima, com Riccardo Scamarcio-Tommaso), que faz o papel de Alba Brunetti, a jovem que toma as rédeas da fábrica de massas. É um nome para se guardar, assim como o de outra italiana que conheci nos últimos dias, Alda Rohrwacher, do filme Que Mais Posso Querer/Cosa Voglio di Più.
É um personagem interessante, fascinante, o dessa Alba. A primeira vez que ela surge na tela, está dirigindo em disparada um elegante, carésimo carro esporte vermelho. Desce do seu carro – inadvertidamente observada por Tommaso, antes de se reencontrarem no dia do jantar solene em que deveria ser selada a sociedade entre suas famílias –, encaminha-se até um outro carro estacionado, um carro caro, milionário, e, com a chave, risca toda a lataria. Não contente, tira um de seus sapatos finos, de salto muito alto, e com ele quebra o retrovisor do carrão; em seguida, caminha rapidamente até seu conversível esporte vermelho e sai em disparada.
Mais tarde, ela mesma dirá que é uma pessoa de comportamento estranho.
Talento é uma coisa realmente admirável, que faz a gente babar. É fantástica a relação que se cria entre Alba, mulher forte, determinada, um tanto doida, mas absolutamente segura de sim, e Tommaso, rapaz sensível, introvertido, gay ainda não inteiramente assumido.
Mais que “um filme gay”, um filme não-conformista, sobre assumir escolhas
Gay, homossexual, homo, veado, boiola, baitolo. No filme, os personagens usam todos os diversos epítetos que em italiano correspondem a esses e outros termos portugueses, vários deles, como os três últimos, ofensivos, preconceituosos.
Muita gente seguramente dirá que O Primeiro Que Disse é um filme gay. É – mas também não é. Fala-se muito de homossexualidade, no filme – em tom ofensivo, em tom jocoso, em tom “veadamente veado”, em tom sério, nos mais diversos tons.
E a homossexualidade é um tema que está presente em todos os três filmes do diretor Ferzan Ozpetek que vi. Está em A Janela de Frente, embora não seja o tema principal. Está muito presente no ótimo Um Amor Quase Perfeito, e é recorrente neste O Primeiro Que Disse.
Mas me parece que é mais que “um filme gay”. É um filme não-conformista, um filme contra o status quo reacionário, retrógado, contra as hipocrisias. É um filme sobre assumir escolhas, enfrentar preconceitos – “Se você fizer sempre o que os outros pedem, não vale a pena viver.”
É um belo filme.
O Primeiro Que Disse/Mine Vaganti
De Ferzan Ozpetek, Itália, 2010
Com Riccardo Scamarcio (Tommaso), Nicole Grimaudo (Alba), Alessandro Preziosi (Antonio), Ennio Fantastichini (Vincenzo), Lunetta Savino (Stefania Cantone), Ilaria Occhini (a avó), Carolina Crescentini (a avó quando jovem), Bianca Nappi (Elena), Elena Sofia Ricci (Luciana), Carmine Recano (Marco), Massimiliano Gallo (Salvatore), Giancarlo Monticelli (Raffaele Brunetti)
Argumento e roteiro Ivan Cotroneo e Ferzan Ozpetek
Fotografia Maurizio Calvesi
Música Pasquale Catalano
Produção Fandango, RAI Cinema, apoio Apulia Film Commission e Provincia di Lecce . DVD Imovision.
Cor, 110 min
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Título em inglês: Loose Cannons
E eu, na fila do cinema, deixei de ver esse para assistir Tio Boonmee, que Pode Recordar suas Vidas Passadas…estava arrependida, agora estou miseravelmente arrependida.
Adoro esse blog e sempre passo por aqui para checar as novidades, ontem após rever Mine Vaganti na Netflix resolvi checar sua resenha e como já é habitual gostei muito de sua avaliação, só gostaria de registrar um pequeno detalhe que para um amante da Itália não possou desapercebido, o filme se passa em Lecce que fica na Puglia e não na Sicília como está descrito, apesar de a conclusão, uma sociedade machista, ser a mesma.
Caro Ary, muitíssimo obrigado pela gentileza e pela correção. Já retirei a Sicília do texto, já que ela não tinha nada a ver.
Um abraço.
Sérgio