Anotação em 2011: Il Sorpasso, de Dino Risi, que no Brasil ganhou o título de Aquele que Sabe Viver, é um dos grandes clássicos do início dos anos 60, um daqueles filmes que marcaram toda uma geração mundo afora – a imediatamente anterior à minha, e mesmo as pessoas da minha geração dois ou três anos mais velhas do que eu.
Foi um filme tão marcante, tão falado, sempre soube tanto sobre ele, que fico em dúvida se não terei visto quando era bem jovem. Acho que não, mas não tenho certeza. Minhas anotações sobre os filmes que vi têm algumas lacunas – e ainda não consegui passar para o computador todos os filmes anotados nos caderninhos de adolescente.
Mas o fato é que dificilmente haverá alguém que goste de cinema e não se lembre da imagem dos jovens e belos Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant em um carrinho esporte, o famoso Lancia Aurelia B24, correndo muito, demais, pelas estradas italianas, ultrapassando outros carros.
Il Sorpasso significa exatamente isso: a ultrapassagem, o ato de um carro ultrapassar outro.
Na França, o filme (uma co-produção Itália-França, como eram praticamente todos os filmes franceses e italianos daquela época) teve o título de Il Fanfaron – fanfarrão, gabarola, parlapatão, segundo um antiguíssimo dicionário Francês-Português que tenho, da Porto Editora, da cidade do Porto. Ou, em “brasileiro”, como costumam dizer os portugueses, alardeador, bazófio, farofeiro, garganta, jactancioso, gabola.
Numa entrevista mais ou menos recente, já bem velhinho, Dino Risi (nascido em Milão em 1916 e morto em Roma em 2008) contou que, segundo ficou sabendo, o filme fez tanto sucesso em países de língua espanhola, em especial na Argentina, que “sorpasso” passou a ser usado no sentido de fanfarron, fanfarrão.
Não tenho a mínima idéia se isso de fato aconteceu. Estou só reproduzindo o que o diretor disse – e pode ser verdade, sim. Il Sorpasso marcou época. Tanto que – ainda segundo diz Dino Risi na mesma entrevista – aquele americano que alguns anos depois faria aquele filme… Como é mesmo o nome?, pergunta o veterano cineasta, e o entrevistador, voz em off, diz Easy Rider. Sim, sim, o americano que faria aquele filme Easy Rider disse que sua inspiração foi Il Sorpasso.
É o que diz Dino Risi, bem velhinho, na entrevista sobre sua obra.
Eu, que tinha 12 anos quando Dini Risi fez seu road movie sobre dois sujeitos que ficam correndo a toda pelas estradas da Itália, nunca tinha ouvido falar que Dennis Hopper se inspirou nas aventuras dos personagens de Gassman e Trintignant para fazer o road movie sobre dois jovens que ficam correndo a toda pelas estradas dos Estados Unidos em Easy Rider, o filme que mexeu com a minha cabeça quando eu tinha 19 – a minha e a de mais alguns milhões de pessoas no mundo todo.
Mas, de novo, é bem possível que Easy Rider tenha nascido por inspiração de Il Sorpasso. Tem tudo a ver.
Uma Roma absolutamente deserta, onde corre o Lancia Aurelia B24
O filme abre com imagens de uma Roma que parece ter sobrevivido intacta a um ataque com bomba de nêutrons, aquela que destrói todas as vidas preservando a paisagem. Não há uma alma viva nas ruas de Roma – a não ser o motorista do Lancia Aurelia B24 que anda a toda, feito barata tonta, insistindo em usar sua buzina que toca umas três ou quatro notas musicais.
(Consta que virou uma onda usar a mesma buzina chata, pentelha, irritante do carro de Vittorio Gassman, depois que o filme estourou nas bilheterias.)
O motorista do carrinho esporte, um sujeito aí de uns 40 anos, que mais tarde veremos se chama Bruno, procura um telefone e um lugar que venda cigarros. Não acha nada – não há bar aberto, não há coisa nenhuma aberta. Roma é uma cidade fantasma. Mais tarde será dito que aquele dia é Ferragosto.
Cinema é cultura, e um filme italiano bem mais recente, Almoço em Agosto, no original Pranzo de Ferragosto, de 2008, já havia me ensinado o que é aquilo. Ferragosto é um feriado italiano comemorado no dia 15 de agosto, verãozão. Originalmente, estava relacionado à celebração do meio do verão e o fim do trabalho de colheita nos campos. Com o tempo, a Igreja Católica passou a adotar essa data para comemorar a assunção da Virgem Maria. Atualmente, Ferragosto é um feriado em que milhões de italianos saem de suas cidades natais.
Bruno finalmente pára seu carro para tomar água em uma torneira na rua. Do outro lado da rua, num prédio de apartamentos, ele vê um vulto perto da janela – uma alma viva em Roma, afinal! Grita para ele, explica que precisa dar um telefonema. A figura de um rapaz de cabelos castanhos claros chega mais perto da janela – Bruno e o espectador ficarão sabendo que ele é Roberto, um jovem estudante de Direito, que está se preparando para os exames.
Roberto (o papel de Jean-Louis Trintignant) convida Bruno para subir até o apartamento, para dar o telefonema. Bruno sobe, telefona – mas a pessoa que ele procurava não está. Bruno está sujo, mexeu com o motor do carro, válvulas – Roberto pergunta se ele não quer se lavar no banheiro, ele aceita, é claro. Despedem-se, Roberto chega a fechar a porta – mas Bruno volta, pergunta se o rapaz vai passar o feriado inteiro estudando, que absurdo, vamos ali tomar uma, e tal e coisa.
Saem os dois no Lancia Aurelia B24 em disparada pelas ruas de Roma, passam diante de uma Praça de São Pedro onde não há sequer um fiel – provavelmente até o papa está fora, descansando no feriadão em Castelgandolfo ou algum outro canto –, andam e andam e andam à procura de algum lugar aberto, e como está tudo fechado mesmo, que tal ir até o vilarejo fulano, só a uns poucos quilômetros dali?
Duas pessoas opostas, antípodas, que o destino quis juntar num carro esporte
Estamos com uns dez minutos de filme. Os dados básicos já foram lançados, expostos: temos aí duas pessoas opostas, antípodas, cujos caminhos quis o destino que se cruzassem, num quente, sonolento, deserto feriadão de Ferragosto. Roberto é um jovem tímido, retraído, fechado, temeroso; Bruno é um sujeito alegre, conversador, falastrão, à vontade, brincalhão, aventureiro. Roberto nunca teve uma namorada sequer; Bruno é um mulherengo contumaz. Até fisicamente são dessemelhantes: Roberto é bem mais baixo, tem os cabelos claros. Bruno é alto, cabelos negros.
(A diferença de idade entre Gassman, que faz Bruno, e Trintignant, que faz Roberto, é bem menor que a de seus personagens. Gassman é de 1922; estava, portanto, com 40 anos; Trintignant é de 1930, apenas oito anos mais jovem, estava com 32, mas aparentava bem menos – parecia ter uns 25, no máximo.)
Roberto quer (embora no fundo, no fundo, não queira tanto) voltar logo para casa, para os livros de Direito, para a segurança, longe das aventuras – e, numa bela sacada dos três roteiristas, o próprio Dino Risi e mais Ettore Scola (sim, sim, o grande Scola) e Ruggero Maccari, o espectador ouve algumas frases que Roberto fala para si próprio, dentro de sua cabeça, ao longo de todo o filme. Frases do tipo: Eu não deveria ter convidado essa pessoa para subir até aqui, não sei quem ele é. Mas esse cara é louco, estou nas mãos de um louco. Eu quero é voltar para casa, como vou fazer para voltar para casa?
E Bruno saca o que Roberto está pensando. Por diversas vezes, depois que a voz em off de Roberto exprime suas dúvidas, Bruno o questiona: Você quer desistir, quer voltar pra casa? E Roberto, o tímido, o fresco, o verde, o jovem inexperiente, temeroso de tudo, nunca tem coragem de dizer a verdade.
E lá vão eles em frente, sempre em frente, no carrinho esporte que buzina aquela buzina insistente, chata, pentelha, e corre acima da velocidade máxima permitida, e ultrapassa os outros carros nas estradas de uma Itália que, naquele início dos anos 60, uma década e meia após a absoluta miséria e destruição deixadas pela Guerra, se reconstrói, e vê surgirem sinais e mais sinais de uma prosperidade econômica inesperada.
Um cinema que influenciou praticamente tudo o que viria depois
Nos anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra, ainda na década de 40, e ao longo dos anos 50 e início de 60, pipocava talento no cinema italiano. Firmavam-se e/ou surgiam grandes realizadores, roteiristas, atores, atrizes, diretores de fotografia. O neo-realismo italiano, como em geral costuma ser com os ditos movimentos artísticos, nunca foi propriamente um movimento, uma coisa organizada, coesa, orquestrada; eram artistas de origens diferentes, estilos diferentes, propósitos diferentes – mas, visto de longe, aquela quantidade grande de cineastas, atores e técnicos, a rigor mais semelhantes às hordas de Spartacus, dava a aparência de que eram parecidas com as organizadíssimas centúrias de Crassus, com perdão pela imagem que vem a partir do grande espetáculo que Stanley Kubrick criaria em 1960.
Porque, apesar de todas as diferenças, eles tinham pontos em comum: faziam filmes em preto-e-branco, enquanto as cores já invadiam diversas outras filmografias; escapavam dos estúdios, dos sets, e filmavam boa parte das cenas, se não todas, na rua, a céu aberto; e, sobretudo, focalizavam a vida das classes baixas, os pobres, os operários, as pessoas de vida dura, sofrida, num país arrasado por décadas de fascismo e por uma guerra brutal – e tinham, todos, um imenso encantamento com o socialismo, a utopia de uma sociedade mais justa e igualitária.
Assim, mesmo que, a rigor, a rigor, o neo-realismo italiano seja mais exatamente uma simplificação didática, uma descrição genérica, um máximo divisor comum (ou seria um mínimo múltiplo comum?) do que propriamente um “movimento”, foi um período que estabeleceu o cinema italiano como um dos melhores, senão o melhor do mundo. O neo-realismo italiano influenciaria profundamente quase tudo o que viria depois – a nouvelle-vague francesa de Godard, Truffaut, Chabrol, o novo cinema inglês de Tony Richardson, Lindsey Anderson, Richard Lester, o cinema novo brasileiro de Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, o cinema independente americano de John Cassavetes, e mais tarde a bobagem do Dogma 95 dinamarquês e o belo novo cinema iraniano dos anos 90.
(Todos eles, também, é claro, mais símbolos, rótulos, do que propriamente “movimentos” organizados, coordenados, coesos – quer, por exemplo, coisa mais diferente de Godard que Truffaut?)
Os pobres, os trabalhadores, eram bons, os ricos eram maus
Mas, de qualquer maneira, os fatos incontestáveis são que a) o cinema italiano era dos melhores, se não o melhor do mundo; e b) no final dos anos 50, início dos anos 60, o neo-realismo já era. Cada realizador estava se aprofundando em seu próprio estilo – e, meu Deus do céu e também da terra, bota realizador nisso, incluindo os veteranos e os mais jovens, os novatos de então: Visconti, Antonioni, Fellini, De Sica, Rossellini, Monicelli, Petri, Germi, Risi, Bolognini, Bellocchio, Scola…
Uma característica, sim, parecia ainda unir a todos, ou quase todos: a simpatia pelos pobres, os menos afortunados, aqueles que herdariam a terra quando se chegasse ao paraíso socialista. Para quase todos os cineastas italianos – já disse isso aqui algumas vezes, e repito até prova em contrário –, era, e continuaria sendo ainda por décadas, como se só os pobres, os da classe operária e os camponeses, fossem dignos, justos, honestos; como se os ricos, ou mesmo os não ricos, mas que estavam um pouco acima da linha da pobreza, fossem todos corruptos, corruptores, decadentes, exploradores, ou ruins da cabeça ou doentes do pé.
Michelangelo Antonioni, naquela rodada dos anos 50 para 60, falava dos ricos. Logo depois de O Grito, de 1957 – sobre as angústias existenciais de um homem do povo, um operário –, fez sua trilogia, A Aventura, A Noite, O Eclipse, sobre as angústais existenciais de pessoas das classes médias para cima, as dificuldades de comunicação entre os casais, a alienação que sentiam em relação ao trabalho, aos deveres, ao mundo exterior.
Falar de problemas dos ricos! Audácia do bofe! Levou cacete de Deus e o mundo, os roteiristas de Il Sorpasso inclusive.
Ao som de Modugno, Bruno-Gassman dá uma gozada em Antonioni
O falastrão, aventureiro, bon-vivant Bruno e o tímido, recatado, inexperiente Roberto estão bem no começo de suas viagens pelas estradas italianas, aí com menos de 20 minutos de filme, quando Bruno saca um disco e pede para Roberto botar pra tocar.
(E aqui faço um rapidíssimo parênteses. Me lembro do cartucho e da fita cassete nos carros, naqueles antiquíssimos tempos pré-CD e pré-iPod, mas acho que nunca vi um toca-discos. Pois o Lancia Aurelia B24 de Bruno tem um toca-discos, que toca compactos-simples, aqueles disquinhos de vinil de 7 polegadas, que no Brasil eram 33 rpm e na Itália 45, 45 giri.)
Entre uma buzinada e outra, uma ultrapassagem (um sorpasso) e outra, uma gozação com uma família pobre ali e outra com um ciclista acolá, Bruno discursa para Roberto a respeito de uma canção de Domenico Modugno:
– “Esta música é mística, faz a gente pensar. A música! E do Modugno eu gosto sempre. Essa me deixa louco. Porque parece uma coisa de nada, mas nela tem tudo. A solidão, a incomunicabilidade, e aquela outra coisa que está tão na moda (faz uma pausa, tenta se lembrar da palavra), a alienação, como nos filmes de Antonioni. Viu O Eclipse?”
Como tantas pessoas que falam mais que a boca, Bruno não faz de fato perguntas, não está interessado em ouvir a resposta. Da boca do tímido Roberto chegam a sair as palavras: – “Sim, é um filme…” –, mas, antes que ele pudesse encontrar um adjetivo, Bruno já prosseguia seu monólogo:
– “Eu dormi o tempo todo. Tirei uma boa soneca. (Rápida pausa.) O Antonioni é um grande diretor.”
Não poderia haver Il Sorpasso sem Gassman e Trintignant
As cenas em que Bruno roda pelas ruas de uma Roma deserta foram filmadas num dia 15 de agosto, o dia do feriado de Ferragosto. Dini Risi conta isso na entrevista que deu já bem velhinho, e que está no DVD de Il Sorpasso lançado no Brasil pela Versátil, a boa distribuidora que faz edições caprichadas de muitos filmes europeus e também de clássicos do cinema americano que as majors – Columbia, Fox, MGM, Warner, Universal – não têm interesse em colocar no mercado, por considerar que a vendagem será pequena. O DVD traz essa interessante entrevista com Dino Risi e também uma com Vittorio Gassman, o grande ator, um dos ícones do cinema italiano.
O ator que Vittorio Gassman vê da rua, perto da janela do apartamento, logo no início do filme, não é Jean-Louis Trintignant. Trintignant foi escolhido bem em cima da hora do início das filmagens – e era necessário que as cenas de Roma deserta fossem filmadas no 15 de agosto, o Ferragosto. Então puseram um dublê no apartamento para fazer aquela cena, e também algumas outras, em que os dois estão no carrinho esporte percorrendo as ruas vazias de Roma. Trintignant chegou e se integrou à equipe uns poucos dias depois.
Não poderia haver Il Sorpasso com outros atores que não Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant. Gassman nasceu para ser o Bruno deste filme (embora tenha também nascido para ser diversos outros personagens que interpretou com maestria), e Trintignant nasceu para ser o Roberto criado por Risi. Tudo bem, qualquer outro ator seria inimaginável para fazer o Jean-Louis Duroc de Um Homem, Uma Mulher e Um Homem, Uma Mulher 20 Anos Depois, mas muito provavelmente Trintignant não seria o ator perfeito para o filme de Lelouch de 1966 se já não tivesse antes deixado uma marca forte na memória das pessoas como Roberto.
Gassman, sob a direção de Dino Risi, faria 12 anos mais tarde, em 1974, outro personagem marcante, o capitão Fausto Consolo de Perfume de Mulher. Os americanos, na sua eterna mania de achar que filme feito fora das fronteiras do Império é como se não existisse, refariam Perfume de Mulher, e Al Pacino teria um belo desempenho no papel originalmente criado pelo grande ator italiano. Mas, devo dizer, é preciso dar graças a Deus pelo fato de os americanos não terem tido coragem de tentar refilmar Il Sorpasso. Bem, também não foi necessário – Dennis Hopper aparentemente se inspiraria nele para criar seu Easy Rider.
Nos créditos iniciais, um claro crime de propaganda enganosa
O nome de Jean-Louis Trintignant aparece em lugar errado nos créditos iniciais de Il Sorpasso. Na verdade, os créditos iniciais são mentirosos – há propaganda enganosa, ali. Apesar de o filme ser uma co-produção Itália-França, os créditos iniciais claramente visavam ao mercado italiano. Assim, aparecem com destaque imenso os nomes de Vittorio Gassman e de Catherine Spaak (na foto). E o de Trintignant aparece depois, com importância bem menor. A razão disso é puramente comercial: embora já tivesse feito 16 filmes, o ator francês certamente era, na época, bem menos conhecido do público italiano do que Catherine Spaak.
Catherine Spaak aparecer com grande destaque, antes do de Trintignant, é de fato propaganda enganosa. A jovem atriz só surge na tela bem perto do final do filme, quando faltam aí uns 25, 20 minutos para o desfecho. Aparece em poucas sequências – mas, credo em cruz, quando aparece, a tela resplandece. Como era estupidamente bela Catherine Spaak. Que deusa!
Quatro anos depois, ela estaria de novo ao lado de Vittorio Gassman, no hilariante O Exército de Brancaleone, de Mario Monicelli.
E Gassman ainda brilharia em filmes de um dos roteiristas de Il Sorpasso, Ettore Scola – O Terraço, A Família, O Jantar e, sobretudo, Nós Que Nos Amávamos Tanto/C’eravamo Tanto Amati, outro filme que marcaria época, que mexeria com a cabeça de gerações, assim como Il Sorpasso e Easy Rider. Em Nós Que Nos Amávamos Tanto, o personagem de Gassman, Gianni Perego, comete o crime inominável de ficar rico (é verdade que com meios escusos), e Scola, coração eternamente socialista, para gozar a vida de rico de Gianni Perego, faz ironia com… claro, Michelangelo Antonioni. Ora, onde já se viu diretor de cinema italiano retratar rico como gente, e não como corrupto, ruim da cabeça e doente do pé?
Mas Nós Que Nos Amávamos Tanto, embora seja um pouco da mesma história, é outra história, e, embora este texto já esteja imenso até mesmo para os meus padrões, ainda falta falar sobre o título que os distribuidores brasileiros escolheram para Il Sorpasso, este belo filme.
Um título que toma partido – e eu tomo o outro partido, o oposto
Os distribuidores brasileiros fizeram julgamento moral. Tomaram partido. Coisa estranha.
Para comparar: Il Sorpasso no original italiano, Le Fanfaron na França. La Escapada na Espanha. A Ultrapassagem em Portugal, a tradução literal do título italiano. The Easy Life, a boa vida, nos Estados Unidos – o que é correto. Há momentos em que o filme de fato faz lembrar Os Boas Vidas/I Vitelloni, a obra de Fellini de 1953.
Mas Aquele que Sabe Viver?
Tomaram partido.
Entre o rapaz tímido, recatado, quase incapaz de se abrir para a vida, que até então era estudioso, e o falastrão, aventureiro, mas também irresponsável, mau pai, mau marido, incapaz de se prover, que sobrevive de expedientes, de pequenos empréstimos daqui e dali, pequenos golpes, os distribuidores brasileiros resolveram que bom é o segundo. Quem sabe viver – decidiram – é Bruno, o personagem de Gassman.
A rigor, a simpatia maior que o filme demonstra é de fato por Bruno. O co-roteirista Scola, então jovem, e portanto provavelmente mais xiita, jamais simpatizaria com um jovem burguês que estuda Direito. Não teria também muitos motivos para simpatizar com um playboy quarentão, mas este, ao menos, não estava tão umbilicalmente ligado às classes opressoras do proletariado quanto um futuro advogado.
Aparentemente, Dini Risi não era tão rigidamente socialista, comunista, quanto Scola e a imensa maioria de seus colegas. Risi fez muitas comédias – seu maior interesse, parece, era fazer rir, e não tanto denunciar as injustiças e antecipar as delícias do paraíso socialista que estava por vir.
Eu, pessoalmente, tenho plena certeza de que, se tivesse visto o filme quando era jovem, com o coração socialista de quando era jovem, também acharia, como os distribuidores brasileiros do filme, que aquele que sabe viver é o que não se prende às convenções pequeno-burguesas, o rebelde, ainda que sem causa e com um belo e caro carro esporte.
Hoje, velhinho, acho Bruno um irresponsável, um bandidinho, sobretudo um mau pai – o que para mim é um sério crime. Não acho que ser irresponsável, bandidinho, mau pai, seja sinônimo de aquele que saber viver. Hoje acho que aquele que sabe viver é o que estuda, o que rala, o que aprende, o que quer ser alguma coisa diferente de um irresponsável, bandidinho, mau pai, malandro. Hoje, velhinho, prefiro quem estuda a quem faz de seu maior orgulho o fato de não ter estudado. Não tenho qualquer simpatia por rebeldes sem causa, ou por quem finja que se rebela contra tudo isto que está aí mas na verdade só quer mesmo é os privilégios que os outros têm, ou tinham.
Aquele que Sabe Viver/Il Sorpasso
De Dino Risi, Itália-França, 1962
Com Vittorio Gassman (Bruno), Jean-Louis Trintignant (Roberto)
e também Catherine Spaak (Lilly), Luciana Angiolillo (a ex-mulher), Claudio Gora (Bibi), Linda Sini (tia Lidia), Barbara Simon, Lilly Darelli, Mila Stanic, Nando Angelini (Amedeo), Luigi Zerbinati (o comendador), Franca Polesello (a mulher do comendador), Edda Ferronao (a moça em Civitavecchia)
Argumento e roteiro Dino Risi, Ettore Scola e Ruggero Maccari
Fotografia Alfio Contini
Música Riz Ortolani
Músicas incidentais: “Quando Quando Quando” (Tony Renis-Alberto Testa), com Emilio Pericoli; “Guarda come dondolo” (Carlo Rossi-Edoardo Vianello), com Edoardo Vianello; “Vecchio Frak” (Domenico Modugno), com Domenico Modugno; “St. Tropez Twist” (Mario Cenci-Peppino Di Capri), com Peppino Di Capri
Produção Incei Film, Cecchi Gori Pictures, Fair Film, Sancro Film. DVD Versátil.
P&B, 105 min
***1/2
Que maravilha de filme! Quantas saudadades!
Um filme que nunca esquecerei.
Acrescento que quanto a Michelangelo Antonioni detestei os filmes que vi dele e foram muito poucos.
Em especial “Blowup” que vi mais do que uma vez na tentativa de perceber alguma coisa.
Conclusão – uma série de disparates.
Filmes em que pessoas locomovem-se em alta velocidade possuem um enorme apelo emocional. Creio que deriva da paixão atávica do ser humano pela liberdade, que as rodovias, as ruas desertas (‘rota 66’), as montanhas selvagens, evocam. O cinema explorou e explora exaustivamente essa paixão, que extravasar para música que sugerem a velocidade proibida a nós, bípedes implumes. Isso vale até para cenas como a trágica corrida de bigas em Ben Hur. Quero crer que a paixão popular por dirigir em alta velocidade e/ou perigosamente, foi influenciada por inúmeros filmes fascinantes, como este. O cinema dá vida a essa paixão e a reforça, criando assim um círculo vicioso que nos diz: a liberdade tem um preço.
“BLOW-UP” uma série de disparates?
Essa não, caro Zé Luís!
Quanto a esta “Ultrapassagem” revi-o recentemente e continua “fresco que nem uma alface”. São assim os bons filmes, incólumes
à passagem do tempo.
Hêhê… Nessa discussão entre o Rato e o José Luís sobre o Blow Up, é como a gente diz aqui: vocês que são brancos que se entendam… Mas, falando sério: por uma imensa coincidência, ando querendo rever Blow Up. Com um medo danado, é bem verdade. Como aquele medo de reencontrar a colega mais bela do ginásio 40 anos depois…
Um abraço aos dois.
Sérgio
Sérgio:
Vá em frente e se apaixone outra vez!
Uma delicia de filme. Um de meus momentos mágicos no cinema é a cena em que Bruno dança
(encoxando) a esposa do grande empreiteiro e,
quando ela percebe “o volume” em suas coxas,
o cafajeste solta a pérola: “…Modestamente…” E como amávamos
a deliciosa belga Catherine Spaak…
Sergio,sem pretender defender Bruno, acho que o final de sua bela crítica está um tanto mal humorado, azedo. Bruno é um farrista irresponsável – sem dúvida, pernicioso para sua família – mas divertido socialmente, como
tantos que conhecíamos, inclusive em nosso
círculo familiar. É fácil criticá-los, por seu descompromisso, imprevidência, etc., mas
há um certo romantismo perdido nesses perfis,
que não existem mais, pois hoje conduziram seu desconforto com a sociedade burguesa para a autodestruição pelas drogas.
Finalmente, sobre Antonioni, e a crise existencial e de comunicação de seus filmes:
Adoro. Da mesma forma como adoro Walter Hugo Khouri (por que seus filmes não saem em DVD?). Blow up não atinge a excelência de
Eclipse ou a Noite, mas também é ótimo, e um
documento sobre a Londres dos Beetles. Reveja
sem medo, porque pelo menos há os seios de
Vanessa Redrave, deslumbrante nos seus vinte
e poucos anos.
Caro Mário, obrigado pela mensagem. Acho que você tem razão: posso ter exagerado ao descer tanto o pau no Bruno.
Sobre o Walter Hugo Khoury (que, aliás, também preciso rever): uma empresa chamada Cinemagia lançou uma caixa com os DVDs de Noite Vazia, As Amorosas e O Corpo Ardente.
E, sim, vou rever Blow Up. Tem a deusa Vanessa jovcm, claro, Jane Birkin rapidamente – e aquela seqüência lindíssima do tênis sem bola. Vou rever.
Um abraço.
Sérgio
Tão bom quanto o filme é o final do seu texto, corajosamente dizendo do desencanto com o sonho socialista. Sim, poucos são homens o bastante para assumir o equívoco. E você terminou o texto lindamente, falando de rebeldes sem causa que querem viver do suor alheio. Ufa! Fiquei mais fã ainda do seu blog. O filme é maravilhoso, dois homens lindos de morrer e… triste demais, aquela energia e alegria do Bruno era toda falsa, o bom mesmo é o pé no chão e muito cuidado com a vida. Pena que quem é assim não faz sucesso algum com as mulheres jovens. Você soube que o Scola se aposentou?
Só agora em 2016 “caí” nesse post sobre um filme que adoro e posso dizer que nunca concordei tanto com uma análise. Principalmente sobre o título do filme no Brasil. Bravo.
Por favor, alguem sabe me dizer com precisao aonde foram filmadas as cenas na praia, o local exato? Obrigado.
Esta página do IMDb, com as localizações da filmagem, pode ajudar, Charles:
http://www.imdb.com/title/tt0056512/locations?ref_=tt_dt_dt
Um abraço.
Sérgio
Meu filme favorito. Parabéns pelo excelente
artigo. Adoro o cinema italiano dos anos 1950, 1960 e 1970. Outro grande filme dos anos 1960 é Seduzida e Abandonada, de Pietro Germi.
Otimo filme mostrando uma Italia ainda decadente e pobre apos a 2da gerra com Carros tipicos de um pais emergente e empobrecido
Com veiculos rebuscados.
Uma cidade vazia no mes de agosto que perdura ate hoje no verao na Europa Latina
Exelente papel dos dois protagonista e logico
Uma propaganda enganosa com uma Atriz que so aparece alguns minutos com uma bellissima cara e Xero Talento
Sim, gostei de sua análise, mas gostaria de te dizer sobre como eu entendí o filme, Eu assisti esse filme em seu lançamento, se não me falha a memória, no cine Majestic, em são Paulo, e não vi uma vez só. Duas ou três. E recentemente eu o assiti novamente.
Entendí Il sorpasso (A ultrapassagem) como o único título possível. Nada a ver com as ultrapassagens automobilísticas de Bruno no filme. Ultrapassagem, a meu ver, tem um sentido muito mais profundo. O que está em jogo, no filme, é, na realidade uma batalha entre o romântico, o bom rapaz (Roberto, responsável, estudioso, amoroso) e o cafajeste (Bruno, que faz uma atrás da outra). O Risi havia percebido que o romantismo (de minha geração e por certo de sua própria geração) seria ULTRAPASSADO pelo cafajestismo, e rodou um filme premonitório, pois isso veio de fato a acontecer! O nome brasileiro do filme diz muito sobre isso e o fato de, como vc bem analisou, os brasileiros haverem escolhido Bruno em detrimento de Roberto denota essa mudança. A chegada da Lei de Gerson, do frio, o repúdio à bondade, à gentileza. É assim que vi! E por isso considero esse filme um dos melhores de todos os tempos
Maravilha de análise a sua, Cyro! Muitíssimo obrigado por ter enviado!
“Il Sorpasso” de fato é uma maravilha. Seu comentário me deu vontade de ver o filme de novo.
Um abraço!
Sérgio.
Pode parecer “cliché” mas o filme mudou a minha vida sem precisar de terapia. Quebrei a redoma da timidez e introspecção e sai para a vera vida vivida. Serei sempre eternamente grato ao Risi.