
(Disponível no Amazon Prime Video em 11/11/2024.)
A sensação que se tem é de que este Summerland, no Brasil Onde Fica o Paraíso, produção britânica de 2020, foi feito sob medida para comover os espectadores. E a diretora e autora do roteiro original Jessica Swale conseguiu o que queria. Não há como as pessoas de bem, sensíveis, não se comoverem com a história de Alice Lamb e do garoto Frank.
Quase toda a ação se passa nos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Crianças de Londres eram levadas, aos milhares, para pequenas cidades do interior, onde ficariam a salvo dos constantes bombardeios da Luftwaffe, a força aérea nazista.
Entre a nova leva de garotos londrinos que chega ao vilarejo da região de Kent em que se passa a história, está Frank (o papel de Lucas Bond), garoto aí de uns 12 anos, ainda criança mas quase adolescente, quase adolescente mas ainda criança. E acontece de ele ser mandado para a casa de Alice Lamb (Gemma Arterton), uma solteirona solitária, mal-humorada, sempre de cara fechada para todos na cidadezinha, que as crianças chamam de bruxa e espiã nazista.
Não é de forma alguma uma espiã nazista, mas mexe com bruxas, entre muitas outras coisas. Alice é uma estudiosa do folclore das Ilhas Britânicas, os mitos, as lendas. Absolutamente workaholic, o dia inteiro envolvida com pesquisas e com a redação de mais uma tese universitária, a mulher tenta como pode se recusar a receber o garoto. Como simplesmente não havia outro jeito, todas as famílias do lugar já estavam com seus pequenos refugiados dos bombardeios nazistas, o garoto vai para a casa dela – mas a mulher, de início, simplesmente se recusa sequer a cozinhar para ele.
E o garoto, que foi retirado de sua casa, de sua mãe – o pai estava na guerra, na R.A.F, a real força aérea –, de sua escola, de seus amigos, de seu meio, é um doce, meu Deus do céu…

Uma pessoa antipática, de maus bofes, grosseira, coração de pedra… que, com o tempo, é claro, é óbvio que vai se afeiçoar à criança, derreter-se toda por ele.
Já vimos isso algumas vezes no cinema, né? Claro, claro, várias vezes, na verdade. Como, para dar apenas um exemplo, O Trem Italiano da Felicidade/Il Treno dei Bambini, da diretora Cristina Comencini, lançado quatro anos após este Summerland, em 2024.
Mas as pessoas se emocionam mundo afora com a história de Alice e Frank. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, Summerland estava com 78% de aprovação no Tomatometer, ou seja, entre os doutos críticos de cinema, e de 73% no Popcornmeter, entre os mortais comuns assistidores de filmes. No IMDb, o filme tinha, quando escrevo este comentário, nota 7 em 10, média da avaliação de quase 10 mil leitores.
E, se é absolutamente previsível, desde bem no início, que o coração de pedra de Alice vai se derreter por Frank, a trama engendrada pela diretora Jessica Swale vai surpreender fortemente o espectador quando ele chega aos 66 minutos do filme que dura 99. É quase uma reviravolta à la thrillers, à la filmes de mistério, à la Harlan Coben.


Uma mulher séria demais, brava, que detesta crianças
Summerland tem um rápido intróito e um epílogo passados em 1975 – o ano e o local da ação, Kent, aparecem em um letreiro na abertura do filme, que não tem créditos iniciais.
No intróito, vemos uma senhorinha aí de uns 70 e poucos anos – interpretada pela simpática Penelope Wilton, de, entre tantos outros filmes e/séries, Downton Abbey e O Exótico Hotel Marigold – escrevendo à máquina. A atriz é simpática, mas a mulher que ela interpreta, não. Rejeita, com raiva, o que acabou de escrever, tira o papel da máquina, joga fora, bota outro, cara fechada.
A cara fica bravíssima quando vozes infantis a chamam na soleira da porta: – “Mrs. Lamb!”, dizem uma garotinha e um garotinho simpáticos. (Os nomes dos atores mirins escolhidos para esta rápida sequência são Nina Beagley e Eden Lawrence.)
– “O que vocês querem?”, diz a senhora brava.
– “Estamos pedindo donativos”, diz o garotinho, sorridente.
– “Bom para vocês”, diz ela, e começa a virar as costas.
– “É para os idosos”, diz a garotinha, sorridente.
– “Sabem como podem ajudar uma idosa? Dando o fora daqui.”
Na língua de Shakespeare, Penelope Wilton-Alice Lamb diz “bugger off”, que é um jeito de mandar embora mais apropriado para uma discussão de estivadores no cais do porto do que com crianças.
A câmara da diretora de fotografia Laurice Rose mostra os rostos lindos dos garotinhos em close-up, enquanto somem os sorrisos e surge expressão de absoluto espanto.
Corta – tomada da porta sendo batida na cara deles. Corta – novo close-up dos rostinhos dos dois, que se entreolham. Corta – novo close-up do rosto da velha senhora, como se a câmara estivesse sobre a máquina de escrever. Alice Lamb olha para o papel com uma expressão de raiva. E retoma o texto que estava escrevendo.
Funde com nova tomada, close-up do rosto que evidentemente é da mesma mulher, 30 e poucos anos antes. Estamos ali por 1943, 1944, e Alice Lamb, interpretada por Gemma Arterton, está com um cigarro na boca, escrevendo à máquina. A expressão do rosto é séria, tensa, concentrada.
A Alice Lamb de uns 40 e poucos anos não estava, de forma alguma, preparada para ter um garoto dentro de sua casa.
Não creio que seja necessário avançar mais no relato da trama. Até porque, como já foi dito, há uma grande, imensa reviravolta na história, e qualquer menção ao que acontece na segunda metade do filme seria um baita de um spoiler.

No ótimo elenco, duas jovens e dois veteranos
Nascida em 1986 em Kent, a mesma região de sua personagem Alice Lamb, Gemma Christina Arterton começou na carreira aos 21 anos, em 2007, e nestes últimos 17 anos atuou em nada menos que 65 filmes e/ou séries de TV. Participou de aventuras para grandes platéias (Fúria de Titãs, Principe da Pérsia: As Areias do Tempo), fez o papel título de uma adaptação do romance Tess of the d’Urbervilles em uma série, trabalhou com diretores importantes como Stephen Frears (O Retorno de Tamara), Neil Jordan (Byzantium: Uma Vida Eterna), Richard Curtis (Os Piratas do Rock).
Quando vi O Retorno de Tamara/Tamara Drewe, em 2011, anotei que Gemma Arterton parecia estar em fabulosa ascensão: “Além de bonita e gostosa, é segura de si: num dos especiais do DVD de O Retorno de Tamara, ela divide uma entrevista com o veterano Stephen Frears, e fala tanto quanto ele, e de maneira muito mais desembaraçada – Frears, mais acostumado ao outro lado das câmaras, não se mostra à vontade nessas jogadas de marketing, escolhe cuidadosamente as palavras, enquanto Gemma Arterton, com a segurança da juventude e a tranquilidade dos atores, fala à vontade. Vai ser difícil segurar essa moça.”
Exatamente como a atriz que escolheu para o papel central de Summerland, Jessica Swale é jovem – nasceu em Reading, perto de Londres, em 1982. Tornou-se conhecida na cena artística inglesa primeiro como dramaturga – é autora de cinco peças de teatro. A primeira delas, Blue Stockings, de 2013, estreou no Shakespeare’s Globe de Londres, e deu à autora uma indicação ao prêmio de melhor promessa da dramaturgia do Evening Standard.
É autora também de cinco adaptações de obras literárias para o teatro, inclusive os grandes clássicos Longe Deste Insensato Mundo, de Thomas Hardy, e Razão e Sensibilidade, de Jane Austen.
Summerland foi apenas o segundo filme que Jessica Swale dirigiu, após um curta-metragem lançado dois anos antes, em 2018, Leading Lady – também estrelado Gemma Arterton. E a atriz também trabalhou em uma das peças da autora, Nell Gwynn.
Interessante: uma sólida parceria.

Gugu Mbatha-Raw (à direita na foto acima) faz o papel de Vera, a terceira personagem mais importante da história, depois de Alice e do garoto Frank. Vera havia sido a grande paixão da vida de Alice, e a abandonara, quando as duas ainda eram bem jovens, porque tinha o desejo fortíssimo de ter um filho. Gugu Mbatha-Raw, bela e talentosa, é filha de um médico negro sul-africano e de uma inglesa branca; nascida em Oxford, em 1983, tem mais de 50 títulos na filmografia, iniciada em 2005. Entre as 30 indicações a prêmios que já recebeu há uma ao Bafta. Não me lembrei disso enquanto via o filme, mas ela já havia me impressionado em Versões de um Crime/The Whole Truth (2016).
É obrigatório registrar que o elenco de Summerland tem, além das jovens Gemma Arterton e Gugu Mbatha-Raw e da veterana Penelope Wilton, outro grande nome do cinema britânico, Tom Courtenay, o inesquecível jovem estudante Pasha que depois da Revolução Comunista de 1917 se torna um dos comandantes do Exército Vermelho no Doutor Jivago (1965) de David Lean. Aqui, Tom Courtenay – de Little Dorrit (2008), O Quarteto (2012), Um Golpe Perfeito (2012), 45 Anos (2015) – interpreta Mr. Sullivan, o sério, abnegado diretor da escola do lugarejo.
(Não consigo me impedir de registrar aqui uma historinha que o IMDb conta entre as curiosidades sobre Tom Courtenay. Na época do lançamento de Doutor Jivago, David Lean e o elenco foram recebidos no Palácio de Buckinham, e a Rainha Elizabeth notou que o ator parecia tímido. Consta que ela teria comentado: “Olhem só para ele… E pensar que ele acabou de liderar uma revolução!”)

Não entrei em sintonia com o filme. Acontece, uai…
Ao meu lado, Mary se emocionou com a história, gostou bastante de Summerland, que tinha sido sugerido a ela por uma cinéfila de carteirinha, a Tâmara, nossa amiga que, não por acaso, havia sido dona de vários cinemas em Belo Horizonte, inclusive o Belas Artes de lá.
E Mary notou que eu não me entusiasmei com o filme.
Pois é.
Aconteceu aquela coisa tão absolutamente comum: às vezes a gente simplesmente não entra em sintonia com o filme, por melhor que ele seja.
Não entrei em sintonia com este Summerland.
Achei um tanto cansativa toda essa evidente vontade dos realizadores de deixar o espectador emocionado.
Não consegui compreender o estilo todo artificial, antinatural, caricatural com que Gemma Artertron interpreta essa Alice Lamb.
Achei forçado, antinatural, antilógica, toda aquela coisa de Alice espalhar pelas paredes da casa fotos, com setinhas entre elas, como se fosse uma detetive de filme ou série de TV.
Não consegui compreender como foi que toda aquela imensa quantidade de coisas pessoais de Frank – entre as quais muitas fotos, que revelam o que não vou revelar aqui porque seria um gigantesco spoiler – de repente foi parar na casa de Alice, ali quando o filme chega a uns dois terços da narrativa. Quem mandou? Quando? Por quê? Como?
Para mim, então, é assim: eis aí um filme cheio de boas intenções, todo absolutamente certo nos valores que defende. Mas não falou comigo. Nossos anjos da guarda não se entenderam. Fazer o quê? Acontece, uai.
Anotação em novembro de 2024
Onde Fica o Paraíso/Summerland
De Jessica Swale, Reino Unido, 2020.
Com Gemma Arterton (Alice Lamb)
Lucas Bond (Frank),
Gugu Mbatha-Raw (Vera),
Penelope Wilton (Alice Lamb idosa), Tom Courtenay (Mr. Sullivan, o diretor da escola), Dixie Egerickx (Edie, a garotinha quefica amiga de Frank), Siân Phillips (Margot Corey), Amanda Root (Mrs Lawrence), Jessica Gunning (Mrs Bassett), David Horovitch (Albert), Martina Laird (Vera idosa), Amanda Lawrence (Muriel), David Ajao (funcionário), Rakhee Thakrar (Mrs Evans), Fergal McElherron (Mr Kearney), Sally Scott (Miss Poskitt), Toby Osmond (Frank adulto), Joshua Riley (Freddie), Nimmy March (Mrs Darling), Aoibhine McFlynn (Cassie), Nina Beagley (garota da abertura), Eden Lawrence (o garoto da abertura)
Argumento e roteiro Jessica Swale
Fotografia Laurice Rose
Música Volker Bertelmann
Montagem Tania Reddin
Casting Shaheen Baig
Desenho de produção Christina Moore
Figurinos Claire Finlay-Thompson
Produção Guy Heeley, Adrian Sturges, Quickfire Films, British Film Institute, Embankment Films, Shoebox Films, Iota Films. Produtora executiva Gemma Arterton (& outros).
Cor, 99 min (1h39)
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