(Disponível no YouTube em 11/2024.)
O Solar de Dragonwyck, de 1946, a estréia na direção do grande Joseph L. Mankiewicz, abrange um amplo leque de temas, de gêneros. É um filme de época: a ação se passa a partir de 1844, no vale do Rio Hudson, ao Norte de Nova York; os guias o classificam como drama, romance, mistério, thriller. Tem até um pé no sobrenatural – mas talvez seu tema principal seja a diferença entre as classes sociais, o que os esquerdistas chamam de luta de classes.
É uma produção de primeira da 20th Century Fox, assinada pelo próprio Darryl F. Zanuck, um dos mais poderosos produtores de Hollywood. A trilha sonora é de um grande mestre, Alfred Newman; o roteiro é do próprio Mankiewicz (1909-1993). “o mais inteligente dos diretores de Hollywood”, segundo o estudioso Jean Tulard. Baseia-se no livro que havia sido lançado dois anos antes, em 1944, de Anya Seton, uma autora de romances históricos, ou, como ela mesma preferia dizer, segundo a Wikipedia, “romances biográficos”, escritos após intensa pesquisa sobre a época a ser retratada.
A protagonista da história, Miranda Wells, a jovem filha de um colono, pequeno fazendeiro, é interpretada por Gene Tierney, aquela beleza faiscante, dois anos apenas após ter feito Laura, o maravilhoso clássico de Otto Preminger. O latifundiário milionário dono do solar de Dragonwyck do título brasileiro – um castelo gigantesco, mais impressionante até mesmo que a Manderley de Rebecca de Alfred Hitchcock (1940) – é feito por um Vincent Price ainda galã antes de ficar carimbado como figura dos filmes de terror. O pai da protagonista Miranda, Ephraim Wells, sujeito trabalhador, rígido, cristão abnegado, é o papel do grande, imponente Walter Huston, o pai de John, avô de Anjelica.
O elenco tem até a curiosidade de contar com Jessica Tandy, essa atriz que minha geração e as mais novas conheceram a partir de Os Pássaros (1963) e depois como a doce senhorinha de Conduzindo Miss Daisy (1989) e Tomates Verdes Fritos (1991). Estava em seu sétimo filme, ainda em papel pequeno, secundário, embora importante – ela faz uma aia do solar.
A jovem de repente vai viver num castelo de ricos
Por tudo isso, seria de se esperar um bom filme. Não é. Não me pareceu bom quando o vi antes – em 1999, conforme verifiquei agora. Na época, não escrevi nada além da ficha técnica básica, e dei 2 estrelas em 4. Tinha me dado vontade de rever para escrever sobre ele aqui no + de 50 Anos, e a revisão confirmou que não é um filme bom.
Mas é o tal negócio. É um Mankiewicz, portanto merece respeito. Assim, antes de ficar falando da minha opinião, vou tentar apresentar um bom resumo da história e registrar informações.
A Wikipedia traz uma sinopse detalhada que me parece boa. Vou usar alguns trechos dela como base, acrescentando um monte de pitacos meus.
Logo após os créditos iniciais, um letreiro informa o quando e o onde: “Uma estrada perto de Greenwhich, Connecticut. Maio de 1844”.
Uma moça corre através do campo, entre ovelhas. Algo pouquíssimo usual havia acontecido: chegara uma carta!
Miranda Wells (o papel de Gene Tierney, “uma garota de fazenda criada por pais rigorosos, religiosos”, que “sonha acordada com uma vida romântica e de luxo”, segundo descreve a Wikpedia, leva a novidade correndo, esbaforida, para sua mãe, Abigail (Anne Revere). A carta é de Nicholas Van Ryn (Vincent Price), um riquíssimo proprietário de terras em Hudson, Nova York, que se diz um parente distante de Abigail. Ele pergunta se ela e seu marido permitiriam que uma de suas filhas fosse morar com a família dele em Dragonwyck, para se tornar dama de companhia de sua filha de oito anos de idade, Katrine (Connie Marshall).
A irmã mais jovem de Miranda, Tibby (Jane Nigh), logo diz que não tem interesse algum em ir morar longe do pai e da mãe. Morar em um castelo de uma família riquíssima parece ser tudo o que Miranda quer – a questão é saber se o pai, Ephraim Wells (o papel, repito, de Walter Huston), vai permitir.
Ephraim fica muito em dúvida se deveria atender ao pedido do ricaço e à evidente vontade da filha. Mas acaba permitindo.
Miranda fica absolutamente fascinada com Nicholas Van Ryn e tudo que o cerca – e o cercam 200 anos de propriedade de terras a Leste do Rio Hudson em mãos da família, uma riqueza inimaginável, e várias dezenas e dezenas de fazendeiros que trabalham em suas terras e são obrigados a pagar a ele parte da colheita e do que recebem com a venda do restante.
O termo usado para os proprietários de terras como Nicholas, e citado várias vezes longo dos 103 minutos do filme, é patroon, e o sistema é chamado de rent, aluguel. Esse mesmo sistema foi usado em diversos lugares do mundo, e ainda é até hoje. No Brasil o termo para quem trabalha para o patroon é meeiro – o agricultor reparte os rendimentos com o dono das terras; este apenas fornece o terreno, e o meeiro entra com o trabalho, os equipamentos e os insumos necessários para o cultivo.
A relação entre o patroon Nicholas e os agricultores que trabalham em suas terras, os rentistas, será um tema de grande importância na trama.
Só não será mais importante, claro, que a relação entre Miranda e aquele admirável mundo rico que ela fica conhecendo.
Histórias fantasmagóricas sobre uma maldição
Provavelmente por estar tão fascinada por aquele admirável mundo rico, e especificamente por Nicholas Van Ryn, Miranda não acha absolutamente estranhas as relações entre ele e sua mulher, Johanna (Vivienne Osborne), e as do casal com sua filha única, a garotinha Katrine.
É tudo muitíssimo esquisito naquela mansão, naquela família. Marido e mulher não demonstram uma gota de afeição, de proximidade. Nicholas trata Johanna como se ela fosse uma visita, uma pessoa distante dele – e Johanna trata o marido como se ele fosse, mais do que o seu todo-poderoso e exigente patrão, o seu rei, o seu soberano. E os dois não têm qualquer tipo de relação com a filhinha de oito anos.
É tudo muito, muito esquisito.
Até a governanta, Magda (Spring Byington), é extremamente esquisita.
Um tanto como a intolerável governanta de Manderley em Rebecca, Mrs. Danvers (Judith Anderson), essa Magda se esforça para deixar a recém-chegada inquieta, atemorizada, pouco à vontade. E conta para ela histórias do além, envolvendo Azilde, a bisavó de Nicholas.
Em uma das salas de estar do castelo, há um gigantesco retrato de Azilde, que, segundo Nicholas conta para Miranda em sua primeira noite ali, havia se casado com o seu bisavô em Nova Orleans, em 1743. Trouxera exatamente para aquela sala um cravo, que adorava tocar. Morreu jovem, logo depois que o filho dela nasceu.
Ainda naquela primeira noite de Miranda em Dragonwyck, depois que primeiro Johanna e depois Nicholas se retiram para seus aposentos, Magda enche os ouvidos da jovem – e os do espectador – com histórias de Azilde:
– “Ela nunca o amou. Nunca o desejou”, diz a governanta para a moça criada numa fazenda simples de colono trabalhador. Ele queria o filho deles. Ele o separou dela. Ele a proibiu de cantar e tocar. Ele partiu seu coração e levou-a a…”
Ela não completa a frase. Mas continua: – “Ela rezou para que um desastre caísse sobre os Van Ryn. E jurou que quando isso acontecesse, ela viria cantar e tocar. Ela se matou neste aposento. Neste cravo.”
E mais: – “É claro que eu mesma nunca ouvi Azilde cantar. O que os criados dizem é que nunca vou ouvir. Mesmo quando ela tocar, eu deveria dizer se ela tocar, a senhorita não vai ouvir, pois não tem o sangue dos Van Ryn. Mas ele vai ouvir, e Katrine também.”
A governanta diz isso para Miranda – e mais algumas frases fortíssimas, como “Um dia você vai desejar com todo o seu coração nunca ter vindo para Dragonwyck” – quando estamos com apenas 25 minutos dos 103 de duração do filme.
Mais adiante, Katrine, e depois Nicholas, vão ouvir uma voz e um cravo que parecem estar sendo tocadas pela infeliz bisavó Azilde lá do além. Exatamente como Magda havia dito, Miranda não ouvirá nada, já que aquele som é para infernizar para sempre os herdeiros do marido de Azilde que ela amaldiçoou. Graças ao bom Deus, nós, os espectadores, também não temos sangue dos Van Ryn nas veias. Mas, ao contrário de Miranda, nós ouvimos o som fantasmagórico.
Os agricultores pobres se revoltam contra o sistema
Manifestações do além – mas, aqui na Terra, problemas bem palpáveis, bem reais. Inicia-se ali na propriedade de Nicholas Van Ryn – assim como, presume-se, em diversos outros lugares dos Estados Unidos – um movimento de não aceitação daquele sistema de patrão e meeiros. Um movimento anti-rent, como o define a Wikipedia.
Junto dos rentistas, meeiros, está um médico, o dr. Jeff Turner (o papel de Glenn Langan), um tipo simpático, até bonitão. Quando bate o olho em Miranda, naquela beleza magnética toda, o dr. Turner, é claro, fica de boca aberta e queixo caído – tanto quanto o tenente detetive Mark McPherson (Dana Andrews) fica diante do mero retrato de Laura-Gene Tierney na parede da sala dela no filme maravilhoso de Preminger.
Já na primeira sequência em que os dois ficam se conhecendo o espectador presume que ali haverá coisa. É óbvio que haverá. Nicholas Van Ryn é um milionário, um latifundiário, explorador de lavradores, enquanto o dr. Turner é um sujeito honesto, um defensor dos fracos e oprimidos. Ali haverá coisa – mas vai demorar bastante. Miranda demora bastante para aprender as coisas, mesmo as mais óbvias.
Bem. Acabei usando bem pouco o detalhado texto da Wikipedia com a trama do filme, e contando as coisas do meu jeito. Melhor assim – para mim, pelo menos, que curto relatar as histórias.
Agora, uns poucos registros – e outras opiniões.
Inicialmente, o plano era que Ernst Lubitsch dirigisse o filme. Gregory Peck chegou a ser escalado para o papel de Nicholas Van Ryn. Lubitsch ficou doente e abandonou o projeto – e por isso Gregory Peck também cascou fora.
O filme foi rodado entre fevereiro e maio de 1945, ainda durante, portanto, a Segunda Guerra Mundial. Só foi lançado, no entanto, em abril de 1946. Nos créditos finais, ficou uma referência aos bônus de guerra vendidos pelo governo.
Em seu roteiro, Mankiewicz fez alterações no final da história. No livro de Anya Seton, pelo que mostra a sinopse na Wikipedia, há todo um episódio envolvendo um barco a vapor no Rio Hudson, que pega fogo – coisa que simplesmente não existe no filme.
Além disso, no final do livro, há um novo casamento – algo que no filme fica apenas com uma insinuação.
O roteiro é elogiadíssimo. Mas tem furos graves
Eis o que diz o livro The Films of 20th Century Fox: “Um estranho melodrama, passado no Vale do Hudson no século XIX, sobre um elegante mas demente dono de terras (Vincent Price) que se esforça para subjugar seus inquilinos e mantém suas vastas propriedades de uma maneira feudal. (Em seguida, em uma frase que faço questão de pular, o livro revela fatos que são spoilers – e ainda comete um erro factual.) O filme se beneficia de cenários e atmosfera cheios de estilo, e representa o primeiro trabalho de Joseph L. Mankiewicz como diretor, sobre o excelente roteiro dele próprio.”
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Drama de época feito para arrepiar, passado em uma mansão sombria perto do Hudson, com bom elenco mas uma apresentação apenas episódica. Estréia de Mankiewicz na direção; ele também fez o roteiro, a partir da história de Anya Seton.”
O Guide des Films de Jean Tulard, que é bastante econômico na distribuição de estrelas, da 3 no total de 4 para Le Château du Dragon, que é como o filme foi lançado na França. Depois de uma sinopse longa, para seus padrões, ele diz: “Um filme ‘gótico’ com proprietário inquietante (Vincent Price não se dá com nuances), castelo lúgubre, servente corcunda, música fascinante. O primeiro filme – bem sucedido – de Mankiewicz.”
Pois é. Na minha opinião, o filme tem alguns problemas – e exatamente no roteiro, algo que é um dos pontos fortes do grande Mankiewicz. Acho muito ilógico, muito fora de propósito, como Miranda demora tanto para perceber que Nicholas Van Ryn, não é flor que se cheire – para dizer o mínimo, de forma muito bondosa. Ou, já que o livro sobre os filmes da Fox usa o adjetivo, um demente. Um mau caráter, um alucinado total. OK, dá para entender que a moça estava apaixonada, e a paixão é cega, como se diz, mas mesmo assim…
Achamos, tanto a Mary quanto eu, que há furos desse tipo na história. O principal deles é o seguinte: Nicholas escreve para a mãe de Miranda pedindo que uma das duas filhas vá para Dragonwyck para ser a dama de companhia da filha, a pobre garotinha Katrine. Katrine aparece em umas três ou quatro sequências, no máximo – e depois simplesmente desaparece! Não se fala mais da menina!
E ainda tem a coisa absolutamente ilógica que é Miranda ao fim abrir mão da herança que era dela por direito. Um absurdo sem tamanho.
Anotação em novembro de 2024
O Solar de Dragonwyck/Dragonwyck
De Joseph L. Mankiewicz, EUA, 1946.
Com Gene Tierney (Miranda Wells),
Vincent Price (Nicholas Van Ryn),
Walter Huston (Ephraim Wells, o pai de Miranda), Anne Revere (Abigail Wells, a mãe de Miranda), Glenn Langan (dr. Jeff Turner), Spring Byington (Magda, a governanta de Dragonwyck), Connie Marshall (Katrine Van Ryn, a filha de Nicholas), Vivienne Osborne (Johanna Van Ryn, a mulher de Nicholas), Henry Morgan (Bleecker), Jessica Tandy (Peggy O’Malley, a aia de Miranda), Trudy Marshall (Elizabeth Van Borden), Reinhold Schunzel (conde De Grenier), Jane Nigh (Tabitha), Ruth Ford (Cornelia Van Borden), David Ballard (Obadiah), Jane Nigh (Tabby Wells, irmã de Miranda), Scott Elliott (Tom Wells, irmão de Miranda), Boyd Irwin (Tompkins), Maya Van Horn (condessa De Grenier), Keith Hitchcock (Mr. MacNabb), Francis Pierlot (médico), Betty Fairfax (Mrs. MacNab), Douglas Wood (prefeito), Steve Olsen (vendedor), Gertrude Astor (enfermeira), Charles Waldron (pastor), Grady Sutton (funcionário do hotel)
Roteiro Joseph L. Mankiewicz
Baseado no romance de Anya Seton
Fotografia Arthur Miller
Música Alfred Newman
Montagem Dorothy Spencer
Direção de arte Lyle Wheeler, J. Russell Spencer
Coreografia Arthur Appel
Figurinos Rene Hubert
Produção Darryl F. Zanuck, 20th Century Fox
P&B, 103 min
R, **
Título na França: “Le Château du Dragon”. Em Portugal: “O Castelo de Dragonwyck”.
Um filme com produção cuidada e que parte de um plot aliciante (tipo REBECCA) mas que não se sustenta e que é uma verdadeira seca. Ao menos, Gene está linda de morrer