Uma Aventura na Noite / Somewhere in the Night

Nota: ★☆☆☆

(Disponível no YouTube em 2/2023.)

Joseph L. Mankiewicz é um dos maiores diretores do cinema americano. Sua obra não é das mais vastas, numerosas – são 22 títulos, lançados entre 1946 e 1972 –, mas inclui muitos grandes, excelentes filmes, como A Malvada/All About Eve (1950) e A Condessa Descalça (1954).

Roteirista maravilhoso, dono de um texto brilhante, povoou seus filmes com diálogos magníficos, inteligentes, afiados. Jean Tulard o definiu como “o mais inteligente dos diretores de Hollywood”.

Assim, fica difícil acreditar que este Somewhere in the Night, no Brasil Uma Aventura na Noite, seja um filme de Mankiewicz. Lançado nos Estados Unidos em maio de 1946, foi seu segundo filme como diretor, e ele assina o roteiro, ao lado de Howard Dimsdale, que se baseia em uma história de Marvin Borowsky, adaptada por Lee Strasberg.

Ver o nome de Lee Strasberg (1901-1982) como autor da adaptação da história original, para que ela então fosse roteirizada por Mankiewicz e esse outro nome que eu não conhecia, me surpreendeu bastante. Não sabia que o grande professor de atuação, um dos criadores do famosérrimo Actors Studio de Nova York, responsável pela formação de Marlon Brando, Paul Newman, James Dean, Dustin Hoffman, Al Pacino, entre tantos outros, havia mexido com roteiros. E depois vi que de fato ele só fez isso neste filme aqui.

E o grande problema do filme é exatamente o argumento, a história, a trama. A história não faz sentido algum!

É um policial, um noir – e muitos filmes noir têm mesmo trama confusa, enevoada, nublada. Mas não é que este Somewhere in the Night tenha uma trama confusa. A trama simplesmente não pára de pé. Não faz sentido. É, como muitíssimo bem definiu a crítica do filme no New York Times, assim que ele estreou na cidade, no Cine Roxy, “a large-sized slice of hokum” – um grande pedaço de besteira.

Adorei ver essa definição. Me senti aliviado: ah, então não fui só eu, não fomos só a Mary e eu.

“A large-sized slice of hokum”. Hokum, no ótimo Exitus, é bobagem, tolice, absurdo.

Uma grande, uma enorme besteira.

Um homem ferido na  guerra e com amnésia 

Começa com um homem que havia estado desacordado, inconsciente, começando a abrir os olhos. Está num hospital de campanha, uma enfermaria militar atulhada de feridos, no Havaí, durante a Segunda Guerra Mundial – e não sabe quem é, onde está. Uma vítima de amnésia. E bastante ferido: o braço esquerdo está imobilizado, a cabeça está quase toda enfaixada, há arames na sua mandíbula.

Ouve as pessoas o chamarem de George Taylor – então supõe que seja mesmo um tal de George Taylor. O ator que o interpreta é John Hodiak.

Passa para um bom hospital, ainda no Havaí. E logo está em um hospital melhor ainda, na Califórnia.

Mary ficou bastante intrigada com o fato de que o protagonista da história sofreu amnésia, não se lembra de absolutamente nada – mas não se esqueceu como ler e escrever. Nem desaprendeu a enganar todo mundo ao fingir que não está com amnésia. Mas vamos em frente.

O Exército americano o dispensa, com agradecimentos e medalhas por bravura nas batalhas de que não faz a menor idéia. O soldado que o comunica sobre sua dispensa menciona que uma bolsa dele havia sido encontrada – será que ele gostaria que o Exercito a despachasse para seu antigo endereço, o Hotel Martin, em Los Angeles? Solícito, o militar consulta umas fichas e “Você vai voltar a se hospedar ali?” Pronto: agora George Taylor sabe que morava em Los Angeles, no Hotel Martin.

George Taylor vai ao Hotel Martin, em Los Angeles, vestindo sua vistosa farda, medalhas no peito, e pergunta ao funcionário se George Taylpr, que estivera hospedado naquele hotel uns três anos atrás, havia deixado algum endereço. O funcionário consulta os livros, não acha nada. O desmemoriado pergunta se eles têm um quarto vago – e assina no livro de registros, para absoluto espanto do funcionário: “George Taylor”.

Nosso herói vai então ao local que o militar havia indicado, onde ele havia deixado uma pasta. Lá dentro, ele encontra um revólver e um bilhete, escrito no papel timbrado de um salão de massagens e sauna chamado The Elite Baths: “Caro George, depositei US$ 5 mil em seu nome no (banco tal, agência tal). Esta carta servirá para identificar você. Me procure quando tiver alta. Seu amigo, Larry Cravat”.

George Taylor começará então, a partir do tal The Elite Baths, o que será uma longa, penosa procura por Larry Cravat, um sujeito que poderia – assim ele crê – contar quem, afinal de contas, ele mesmo é, o que fazia na vida…

Assim que começa sua busca por Larry Cravat, passa a ser perseguido por pessoas que ele não sabe quem são – nem por que estão o perseguindo.

Em seu caminho vão surgir, entre outros, uma bela cantora de nightclub, Christy (o primeiro papel de Nancy Guild), o dono daquele e de outros nightclubs, Mel Phillips (Richard Conte), um tenente de polícia, Donald Kendall (Lloyd Nolan), uma mulher misteriosa, Phyllis (Margo Woode), e um sujeito muito esquisito que se apresenta como adivinho, vidente, Anzelmo (Fritz Kortner|) e tem um capanga fortão que dá uma brutal surra em George Taylor. Quem interpreta o capanga Hubert é Lou Nova, um sujeito que, li isso depois, era um lutador de boxe.

Vai surgir ainda um velhinho, Conroy (Houseley Stevenson), internado como caso perdido em um hospício, que é assassinado por alguém ligado ao tal Anzelmo. Como invade o hospício para falar com Conroy, e chega lá quando ele acabava de ser esfaqueado, George, é claro, vai se tornar o principal suspeito do crime.

Tinha que ter uma mulher na história, e então…

Falo um pouquinho de Christy, o female interest do filme, e depois passo a palavra para os outros.

Female interest. É uma regra de ouro de Hollywood que os filmes têm que ter um personagem feminino para interessar às platéias. E então criou-se o personagem de Christy – interpretado por essa atriz tão bela quanto rápida em sua passagem pelo cinema: Nancy Guild (1925-1999) fez apenas oito filmes e três séries de TV.

Quando o filme está com 18 dos 108 minutos de duração, George Taylor, fugindo de dois sujeitos mal encarados, em um nightclub diante da casa de sauna e massagem, entra no primeiro aposento que não está fechado, nos fundos do lugar. É o camarim em que uma moça muito bonita se maquiava diante de um grande espelho.

– “Você esqueceu de bater”, diz Christy ao desconhecido. Para, dali a bem pouco, dizer outra frase ótima, igualmente cheia de ironia: – “Daqui a uns dois minutos, um segurança vai chegar aqui sem qualquer senso de humor. Ele é uns 30 centímetros maior que você em todas as direções.”

Pois bem. No dia seguinte, depois de ser duramente espancado pelo capanga do tal Anzelmo, e não podendo voltar para o hotel porque seus perseguidores estariam lá esperando por ele, George Taylor vai procurar abrigo justamente no belíssimo apartamento de Christy. (Cantora de nightclub em filme ruim ganha bem, né? comentou a Mary, com um sarcasmo parecido com aquela frase sobre os 30 centímetros maior em todas as direções.)

E, um ou dois dias depois disso, Christy confessa para o patrão Mel Phillips: – “I’m nuts about the guy”. Sou louca pelo cara.

É. De fato, “não é do mesmo nível das obras posteriores de Mankiewicz”, conforme sentenciou Leonard Maltin – que, no entanto, disse que o filme é um “drama satisfatório de Hodiak com amnésia tentando descobrir sua verdadeira identidade” – e deu 2.5 estrelas em 4 para o hokum.

“A narrativa joga a lógica ao vento cortante”

Hokum. Aqui vai a crítica publicada pelo New York Times no dia 13 de junho de 1946, assinada por Bosley Crowther:

“Aparentemente, Joseph L. Mankewicz, que dirigiu e foi um dos quatro que escreveram (ou é creditado pela autoria de) a nova atração do Roxy, Somewhere in the Night, é um admirador ardente de Alfred Hitchcock, porque neste filme, o primeiro que ele dirige, manifesta uma impressionante imitação do estilo melodramático e granulado de Hitchcock. Suas imagens são nítidas e realistas em sua representação de episódios bizarros, seus personagens são apresentados vigorosamente e o movimento do conjunto é rápido e tenso. Enquanto mera encenação melodramática, este filme da Twentieth Century-Fox é bom. Mas a história…”

Interrompo o texto para registrar que Bosley Crowther se equivocou ao dizer que este foi o primeiro filme dirigido por Mankiewicz. O primeiro foi Dragonwyck, no Brasil O Solar de Dragonwyck, filmado e concluído entre fevereiro e maio de 1945, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, portanto, e lançado nos cinemas dos Estados Unidos em 10 de abril de 1946.

Este Somewhere in the Night foi filmado e concluído entre novembro de 1945 e janeiro de 1946, e estreou em 30 de maio de 1946.

E é agora que o texto de Bosley Crowther chega no ponto de que eu mais gostei:

“Mas a história é um grande pedaço de besteira, começando com a proposição de que um veterano seria liberado de um hospital naval sofrendo de amnésia. E desse dúbio ponto de partida, a narrativa joga a lógica ao vento cortante ao contar os esforços sinistros desse veterano para descobrir quem ele é. Com base na suposição de que tal homem conseguiria suportar as durezas que tem pela frente, imediatamente ele começa a seguir uma trilha fina de pistas auto-reveladoras, A probabilidade de tais mistérios titânicos revelaram quem ele é parece logicamente remota. Contudo, a maior indiferença dos autores parece ter sido encontrar uma explicação razoável para a trama progressivamente complicada. Quanto mais o cavalheiro sem lembranças persegue seu passado misterioso e se confronta com vários personagens bizarros e brutais, mais ele – e o espectador – ficam confusos. Aparentemente o diretor e seus associados conseguem juntas as peças mais para o fim, mas este escritor aqui ainda está completamente perplexo. Quem era quem, e quem levou o tiro?”

Diacho! Eu gostaria de ter escrito esse texto!

“A confusão louca história inspira apatia”

Ah, meu… Vou continuar a traduzir-transcrever a crítica, porque ela é boa demais!

“John Hodiak interpreta o veterano apagado de maneira sombria e desesperada, e Nancy Guild, cujo nome é apresentado como uma rima com “wild” (selvagem), é a moça que ele encontra. Seu papel é o de uma cantora de nightclube, e dá a ela poucas oportunidades de atuar, a não ser sentar-se ao piano e resmungar junto do pescoço de Mr. Hodiak. Fritz Kortner é o mais maligno de um bando de personagens cruéis, e o lutador de boxe Lou Nova faz um capanga idiota. Lloyd Nolan, Richard Conte, Josephine Hutchinson e vários outros são competentes como vários peões. Suas atuações são interessantes: é uma pena que eles tenham tantas coisas turvas e inconclusivas a fazer. Depois de um tempo, a confusão louca da história inspira uma completa apatia.”

E a crítica termina com a seguinte deliciosa informação:

“The Copacabana Revue, com Desi Arnaz e sua orquestra, Lee Sherman e Beatrice Seckler, George Prentice, Peter Lind Hayes e The Copa Girls são a atração que acompanha Somewhere in the Night no Roxy”

Meu, que fantástico: o nova-iorquino ou o turista iam ao cine Roxy e assistiam a um filme (horroroso, é verdade) e também a um show com a orquestra de Desi Arnaz e mais todas aquelas atrações importadas do Copacabana, o nightclub bacanérrimo!

É. Às vezes não dá para evitar a sensação de que este mundo já foi melhor. Mesmo com um filme tão ruim quanto Somewhere in the Night.

Anotação em fevereiro de 2023

Uma Aventura na Noite/Somewhere in the Night

De Joseph L. Mankiewicz, EUA, 1946

Com John Hodiak (George Taylor)

e Nancy Guild (Christy),

Lloyd Nolan (tenente da polícia Donald Kendall), Richard Conte (Mel Phillips, o dono de nightclubs), Josephine Hutchinson (Elizabeth Conroy), Fritz Kortner (Anzelmo, o falso vidente), Margo Woode (Phyllis), Sheldon Leonard (Sam), Lou Nova (Hubert, o capanga de Anzelmo), John Russell (capitão marinheiro), Houseley Stevenson (Conroy, o velhinho no asilo), Paula Reid (enfermeira), Mary Currier (Miss Jones), Charles Marsh (o funcionário do hotel). Jack Davis (Dr. Grant), Louis Mason (Irmão Williams)

Roteiro Howard Dimsdale, Joseph L. Mankiewicz

Adaptação Lee Strasberg

Baseado no conto “The Lonely Journey”, de Marvin Borowsky

Fotografia Norbert Brodine

Músicas David Buttolph

Diretor musical Emil Newman

Montagem James B. Clark

Direção de arte James Basevi, Maurice Ransford

Figurinos Kay Nelson

Produção Anderson Lawler, 20th Century Fox.

P&B, 108 min (1h48)

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