Czarina / A Royal Scandal

Nota: ★★½☆

(Disponível no YouTube em 10/2023.)

“Deliciosa bobagem”, sentenciou a Mary, assim que terminamos de ver A Royal Scandal, no Brasil Czarina – e não pode haver definição mais perfeita para a comédia de 1948 de Otto Preminger e Ernst Lubitsch, não necessariamente nessa ordem.

Europeus de fala alemã, colegas ainda no cinema entre guerras, Lubitsch e Preminger são gigantes, figuras fundamentais do cinema mundial – mas o filme que assinaram juntos para a 20th Century Fox apenas três anos após a derrota da Alemanha nazista é sem dúvida alguma uma bobagem. Bobagem, mas deliciosa. Deliciosa, sim, mas bobagem.

A czarina do título brasileiro é, naturalmente, obviamente, Catarina, a Grande, A Mãe de Todas as Rússias (1729-1796), que reinou por 34 anos, de 1762 até sua morte. Uma das personalidades mais fascinantes da História, Catarina foi e continua sendo retratada diversas vezes pelo cinema. Só em 1934 Hollywood produziu dois filmes sobre ela, um deles, A Imperatriz Vermelha, com Marlene Dietrich no papel central. Em 2019, a fantástica Helen Mirren, inglesa descendente de russos, a interpretou na minissérie de quatro episódios Catarina, A Grande. (Volto a falar dos vários filmes sobre a monarca mais adiante.)

Aqui, Catarina é interpretada por Tallulah Bankhead (na foto abaixo), uma atriz que, segundo alguns críticos, Pauline Kael entre eles, era muito maior do que os papéis que recebeu dos estúdios de Hollywood.

A principal característica do filme, me parece, é que ele tem muito pouco, mas bem pouco mesmo, a ver com a verdade histórica. A trama, criada pelos roteiristas Edwin Justus Mayer e Bruno Frank, com base na peça teatral The Czarina, de Lajos Biro e Melchior Lengyel, é uma fantasia, uma ficção, inspirada apenas na fama de Catarina como uma devoradora de homens, uma mulher de apetite sexual insaciável, e na existência de um oficial chamado Alexei, um dos muitos amantes dela.

Czarina é uma sátira ferina, virulenta da corte russa – e dos modos russos de uma maneira geral.

Em 1939, o ano do início da Segunda Guerra Mundial, Ernst Lubitsch havia satirizado a União Soviética em Ninotchka. Neste filme de 1948, quando os ex-aliados EUA e URSS já estavam em plena guerra um contra o outro, ainda que fria, ele satiriza a Rússia czarista.

Não sei se na época o filme foi visto assim, mas agora ele dá a sensação de que tem de fato a ver com a Guerra Fria. Nenhum russo gostaria de ver seu país representado daquela forma tão absolutamente esculachada. Josef Stálin, que, dizem, gostava de cinema, deve ter xingado Preminger, Lubitsch, Tallulah Bankhead e demais envolvidos na produção e seus ascendentes com todos os palavrões das línguas russa e georgiana.

Um elenco respeitável, um monte de gente boa

O filme abre no momento em que Catarina, furiosa, está expulsando do seu palácio, aos gritos de “diabo velho! ladrão! barrigudo”, o até então comandante da Guarda Imperial, Variatinsky (Don Douglas).

Toda a sequência de abertura é uma beleza.

O espectador não vê Catarina, ainda. A câmara do diretor de fotografia Arthur Miller (1895-1970, um destacado profissional, responsável pela fotografia de 147 títulos, 3 Oscars e outras duas indicações ao prêmio, homônimo do grande dramaturgo) mostra um corredor do palácio imperial, e a voz que berra xingamentos vem dos aposentos da czarina.

O que vemos é Variatinsky saindo – sendo saído – para o corredor, enquanto as damas de companhia da imperatriz fogem do corredor como baratas quando a luz é acesa. Vemos também que a porta se entreabre, e sai por ela uma mochila do agora ex-comandante da Guarda Imperial. Fica claro, desde essa primeira sequência, que o sujeito que comandava a guarda tinha acesso aos aposentos da czarina.

Uma jovem dama de companhia entra em um quarto onde estão diversas colegas e começa a contar as novidades – mas logo um funcionário do palácio diz a ela que sua excelência, o chanceler, a está chamando. E então a condessa Anna vai até a sala de trabalho do homem que é o braço direito da Mãe de Todas as Rússias, contar para ele os fatos.

A condessa Anna é o papel da jovem e linda Anne Baxter (na foto abaixo), 25 aninhos de idade, um ano depois de seu Oscar como melhor atriz coadjuvante por O Fio da Navalha e três anos antes de sua indicação ao Oscar pelo papel título de A Malvada/All About Eve.

E o chanceler Nicolai Ilyitch é o papel de Charles Coburn (1877-1961), o excelente ator de tantas pérolas dos anos 30 a 50, como, só para dar uns poucos exemplos, Que Papai Não Saiba/Vivacious Lady (1938), Em Cada Coração um Pecado/Kings Row (1942), O Diabo Disse Não/Heaven Can Wait (1943), O Inventor da Mocidade/Monkey Business (1952), Os Homens Preferem as Louras/Gentlemen Prefer Blondes (1953).

Bem no início da narrativa, aparece Vincent Price, no papel do marquês de Fleury, o embaixador francês que o chanceler Nicolai quer que Catarina trate muito bem – e que só será recebido por ela bem no final da narrativa. Vincent Price (1911-1993), presente em nove de cada dez filmes de terror produzidos por Hollywood nos anos 1940 e 1950, aqui aparece como um galã.

Tallulah Bankhead como a Czarina Catarina, a Grande. Charles Coburn como o chanceler Nicolai Ilyitch, que sabe de absolutamente tudo o que está acontecendo na Rússia. Anne Baxter como a condessa Anna Jaschikoff, a jovem dama de honra preferida pela soberana. Vincent Price como o marquês francês bonitão que, no final do filme, faz charme para Catarina, uma mulher que não aguenta ver um homem bonitão sem crau nele.

Um belo elenco. Completado por William Eythe no papel do tenente Alexei Chernoff, jovem e bonitão, que surge diante de Catarina A Comedora de Todos os Homens da Rússia logo depois que ela enxota o até então amante e comandante da Guarda Imperial.

Os diálogos têm dose pesadea de inteligência e ironia

Bem, mas aí comecei a falar dos atores e deixei de lado a ação.

Eu dizia que o chanceler Nicolai chamou a condessa Anna para saber dela os detalhes da queda de Variatinsky.

A sequência é especialmente deliciosa. Os diálogos espertos, escritos com doses pesadas de inteligência e ironia, são valorizados pela jovem Anne Baxter e o velho Charles Coburn.

Anna: – “Excelência, há meses que Variantinsky tolera tudo: críticas, insultos, vidros de tinta, chinelos, vasos e até enfeites maravilhosos. É uma pena.”

O chanceler: – “É verdade. Afinal, Variatinsky é um homem primitivo, e jogar todos esses objetos maravilhosos nele… Certamente ele não apreciou.”

Anna: – “Hoje, certamente não. Não estou exagerando. Variatinsky chegou a contestar Sua Majestade. Aí ela ficou realmente furiosa. Chamou-o de alguma coisa que eu nunca tinha ouvido.”

O chanceler: – “Ainda bem, pequena Anna.”

Anna: – “Consultei o dicionário. Depois ele a chamou de uma coisa que nem no dicionário encontrei. E quando as palavras faltaram, Sua Majestade pegou o cavaleiro de porcelana e…”

O chanceler: – “Aquela coisa monstruosa que Frederico, o Grande, lhe deu?”

Anna: – “Isso! E atirou nele!”

O chanceler: – “Ótimo! Até furiosa ela demonstra ter extremo bom gosto.”

Anna: – “Isso não é nada, Excelência.”

O chanceler: – “Não me diga que Variatinski atirou algo nela.”

Anna: – “Pior ainda. De repente ele empurrou Sua Majestade, e pela primeira vez na história da Rússia uma imperatriz ficou estatelada no chão.”

Há dois grandes complicadores na trama

Daí a pouco – após uma sequência em que o chanceler Nicolai recebe a visita do embaixador da França recém-chegado de Paris – irrompe no palácio o tal tenente Alexei Chernoff, jovem e bonitão. Tinha cavalgado três dias e três noites, sem parar, para falar com a czarina. Queria contar algo de fundamental importância, que o espectador nunca fica sabendo direito o que era. O que ele queria dizer não interessa. Interessa que ele é jovem e bonito, e Catarina, naquele momento, está sem amante e sem comandante da Guarda Imperial.

O espectador pode perfeitamente imaginar o que vai acontecer.

Em questão de horas, o tenente é promovido pela czarina sucessivamente a capitão, major, coronel e general.

Completam a trama dessa bobagem deliciosa dois complicadores, pois é necessário haver complicações, ou a comédia que satiriza os russos ficaria simples demais. A primeira é que o tenente depois general Alexei Chernoff era primo e noivo da condessa Anna, a favorita da czarina. Esta só ficará sabendo disso já bem depois da metade dos 94 minutos de duração do filme.

A segunda é que há uma grande conspiração de nobres e generais para derrubar a czarina e colocar um deles no trono. Haviam tentando chamar Variantski para participar do golpe – sem sucesso. Agora, vão querer atrair o tenente, digo, o general Alexei Chernoff.

Lubitsch começou a dirigir, mas passou para Preminger

Não conhecia esse William Eythe que faz Alexei Chernoff – nem o achei bonitão, mas isso não importa nada, já que as personagens interpretadas por Tallulah Bankhead e Anne Baxter, elas, sim, belas, acharam.

William Eythe, nascido na Pensilvânia em 1918, morreria com apenas 38 anos, em 1957, por doença no fígado. Sua filmografia teve apenas 23 títulos – alguns importantes, como Consciências Mortas/The Ox-Bow Incident e A Canção de Bernadette/The Song of Bernadette, ambos de 1943, e Uma Asa e Uma Prece/Wing and a Prayer, de 1944.

Otto Preminger, nascido em 1905, em Wiznitz, então Império Áustro-Húngaro, estreou na direção em 1931, com Die Große Liebe – o único filme que faria em sua língua natal. O segundo, Canção Fascinadora/Under Your Spell (1936), uma comédia musical, já seria realizada nos Estados Unidos, para onde ele emigrou, fugindo do nazismo, assim como diversos outros realizadores da Alemanha, da França e de diversos outros países europeus.

Entre tantos deles, Ernest Lubitsch e Billy Wilder. Billy Wilder, nascido apenas um ano após Preminger, em 1906, e também em cidade do Império Áustro-Húngaro, Sucha, viria a dirigir o conterrâneo e colega em um filme sobre um campo de prisioneiros aliados na Alemanha nazista, Stalag 17, no Brasil O Inferno Nº 17 (1953); Preminger, que parecia gostar de eventualmente trabalhar como ator, assim como John Huston, interpretou – com brilhantismo – o nazista comandante do campo.

Tanto Wilder quanto Preminger aprenderam muito com o berlinense Ernst Lubitsch, quase 15 anos mais velho do que eles – o homem do famoso The Lubitsch Touch nasceu em 1892, e começou a carreira no cinema alemão como ator ainda em 1913. Já havia dirigido umas duas dezenas de filmes quando emigrou para os Estados Unidos, ainda nos anos 1920, antes da onda dos realizadores e atores europeus que fugiram do nazismo nos anos 1930. Em 1923 foi recebido na Warner Bros; em 1928 assinou contrato com a Paramount, onde fez vários grandes filmes, entre eles A Oitava Esposa de Barba-Azul (1938) e Ninotchka (1939) – e, nos dois, Billy Wilder foi um dos roteiristas.

Em 1938 Lubitsch levou seu toque de inteligência e elegância para a 20th Century Fox, onde estava quando começou a dirigir o que viria a ser este Czarina/A Royal Scandal.

Era, a rigor, a refilmagem de Paraíso Proibido/Forbidden Paradise, que Lubitsch havia dirigido ainda no período do cinema mudo, em 1924, com base na mesma peça teatral de Lajos Biró e Melchior Lengyel – só que com uma adaptação um tanto diferente. Eis a sinopse do IMDb de Paraíso Proibido: “Alexei salva a Czarina de conspiradores e é recompensado com seu amor. Ele abandona sua namorada Anna, mas descobre que a monarca também é infiel. Alexei se torna líder de uma tentativa de revolução contra a monarca.”

Catarina era interpretada pela grande estrela Pola Negri. Alexei, que naquela versão tinha o sobrenome de Czerny, era o papel de Rod La Rocque, e o chanceler era interpretado pelo galã Adolphe Menjou.

Lubitsch ficou doente com as filmagens desta segunda versão da história já iniciadas, e passou a tarefa para Otto Preminger. Nos créditos, Lubitsch aparece apenas como produtor, e Preminger como o diretor.

Há pelo menos 17 filmes e/ou séries sobre Catarina   

É sem dúvida impressionante o número de filmes sobre a princesa Sophie de Anhalt-Zerbst do Reino da Prússia do Sagrado Império Romano, que se casou em 1745 com o czar Pedro III e assumiu o trono em 1762, depois que o marido foi deposto em um golpe com a participação dela própria. A Wikipédia lista nada menos de 17 títulos.

Em 1920 houve um alemão, Katharina die Große; Lucie Höflich interpretou Catarina, num épico com a participação de 4 mil extras e 500 cavalos!

Em 1924 houve o já citado Paraíso Proibido/Forbiden Paradise. E em 1934 vieram dois filmes de Hollywood, A Rainha Imortal/The Rise of Catherine the Great, com Elizabeth Bergner como Catarina e Douglas Fairbanks Jr. como o grão-duque Pedro, e o já citado A Imperatriz Vermelha/The Scarlet Empress, com Marlene Dietrich, no auge da fama, da beleza, da sensualidade. O conde Alexei era interpretado por John Lodge.

Catherine Zeta-Jones foi Catarina em um filme para a TV de 1995, Catarina: Entre o Amor e o Poder/Catherine The Great. A minissérie com Helen Mirren, Catarina, A Grande, de 2016, se concentrou nos últimos anos do reinado da czarina.

Eis o que diz o livro The Films of 20th Century Fox sobre o filme de Lubitsch e Preminger:

“Catherine the Great da Rússia (Tallulah Bankhead), sempre amorosa, se engraça por um jovem oficial (William Eythe), a quem mima e promove. (…) O filme é na verdade um veículo para a florida atuação de Bankhead, mas também dá oportunidades para Charles Coburn como o chanceler real e Vincent Price como o embaixador que é seduzido por Catherine. Era para o filme ser dirigido por Lubitsch, mas ele se retirou por doença e indicou Preminger para realizá-lo. Bom como ficou, esse material estilístico teria ficado ainda melhor com o famoso toque Lubitsch.”

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4: “Comédia de costumes sobre Catherine the Great da Rússia promovendo o preferido soldado Eythe para alto posto; começado por Lubitsch, ‘terminado’ por Preminger. Refilmagem de Forbidden Paradise (1924) de Lubitsch.”

O filme não foi incluído na edição brasileira de 1001 Noites no Cinema, de Pauline Kael. No original, a prima donna da crítica americana diz mais ou menos o seguinte:

“Tallulah Bankhead deu a essa farsa sexual sobre Catherine the Great um tipo de baixo brilho, mas não chega a ser um grande veículo para ela. (Infelizmente, pobre como é, ainda assim é um dos poucos papéis quase decentes que ela ganhou.) Ela faz maravilhas com alguns poucos diálogos, e o ótimo jovem ator William Eythe (ele morreu aos 38 anos) tem alguns esplêndidos momentos cômicos com ela. O elenco inclui Charles Coburn, Anne Baxter, Vincent Price, Sig Rumann e Mischa Auer. O roteiro, que é prejudicado por brincadeiras e piadas idiotas, é de Edwin Justus Mayer; dirigido por Otto Preminger. 20th Century-Fox.”

Cada pessoa tem direito a sua opinião. Acho que o filme tem bastante do Lubitsch touch – e ótimas brincadeiras e piadas.

Anotação em outubro de 2023

Czarina/A Royal Scandal

De Otto Preminger (e, não creditado, Ernst Lubitsch), EUA, 1948.

Com Tallulah Bankhead (Czarina Catarina, a Grande),

Charles Coburn (chanceler Nicolai Ilyitch),

Anne Baxter (condessa Anna Jaschikoff),

William Eythe (tenente Alexei Chernoff)

e Vincent Price (marquês de Fleury, o embaixador francês), Mischa Auer (capitão Sukov), Sig Rumann (general Ronsky), Vladimir Sokoloff (Malakoff), Mikhail Rasumny (o general bêbado), Grady Sutton (Boris),  Don Douglas (Variatinsky), Egon Brecher (Wassilikow), Eva Gabor (condessa Demidow)

Roteiro Edwin Justus Mayer, Bruno Frank

Baseado na peça “The Czarina”, de Lajos Biro e Melchior Lengyel

Fotografia Arthur Miller

Música Alfred Newman

Montagem Dorothy Spencer

Direção de arte Lyle Wheeler, Mark-Lee Kirk

Figurinos Rene Hubert

Produção Ernst Lubitsch, 20th Century Fox.

P&B, 94 min (1h34)

**1/2

 

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