(Disponível na HBO Max em 2/2024.)
Violência, corrupção. Muita violência, muita corrupção, em doses gigantescas, amazônicas, jupiterianas. No meio de um oceano infinito de violência e corrupção, cinco personagens centrais tomados por angústia, dor, sofrimento – e, por trás disso tudo, o recorrente problema de relações entre pais e filhos tumultuadas, pavorosas, traumatizantes. Não é um universo alegre, positivo, o que mostra a Segunda Temporada da série True Detective, lançada pela HBO em 2015.
Um mundo pesado, torto, infeliz, habitado por criaturas profundamente amarguradas, angustiadas. Creio que esse é o principal fio que une as quatro temporadas de True Detective, uma série diferente de quase todas as outras, já que cada temporada se encerra em si mesma, não havendo qualquer ponto de contato entre a trama de uma com as das outras. Os personagens de cada temporada não aparecem nas outras, nem mesmo de passagem. Uma história não tem absolutamente nada a ver com as demais. Nem sequer os locais em que os eventos se passam são os mesmos. A primeira é ambientada no Sul, na Louisiana. Nesta segunda temporada aqui, tudo acontece na Califórnia, em Los Angeles e arredores; a quarta temporada, que estreou no início de 2024, com Jodie Foster como a detetive protagonista da história – que vem sendo elogiadíssima – se passa no Alasca.
As três primeiras temporadas – lançadas em 2014, 2015 e 2019 – saíram da cabeça do mesmo sujeito, Nic Pizzolatto, criador e principal roteirista. Estranhamente, ele não participou da quarta; nesta última, há, segundo o IMDb, a seguinte referência: “baseado na série True Detective, criada por Nic Pizzolatto”.
Textos sobre True Detective em inglês a definem como “anthology series”. O “anthology” aí, usado como adjetivo, define o que nós chamamos de filmes de episódios, de esquetes, de histórias diferentes, em geral feito por vários diretores, como Nova York, Eu Te Amo, Paris, Eu Te Amo, Contos de Nova York, os clássicos europeus Boccaccio ’70, Nós, As Mulheres, As Bruxas, Os Sete Pecados Capitais, O Amor aos 20 Anos.
E é isso mesmo: é uma série de histórias diferentes. Me ocorreu que, mais que exatamente uma série, True Detective é assim uma marca registrada que funciona como uma guarda-chuvas para, até agora, quatro minisséries independentes.
Cinco personagens centrais; três são policiais
Na primeira temporada, a de 2014, os dois protagonistas eram os detetives interpretados por Matthew McConaughey e Woody Harrelson – que, nesta segunda temporada, trabalharam como produtores executivos. Um elo de ligação entre as duas – um dos poucos.
Para esta segunda temporada aqui, a imaginação de Nic Pizzolatto criou cinco protagonistas – os papéis de Colin Farrell. Rachel McAdams, Taylor Kitsch, Vince Vaughn e Kelly Reilly. São personagens ricos, complexos, muito bem construídos e maravilhosamente interpretados por esses bons atores.
Eles vão sendo apresentados para o espectador em ações paralelas, ao longo do primeiro dos oito episódios, cada um com cerca de 60 minutos. Só no finalzinho do primeiro e comecinho do segundo episódio as vidas de todos os cinco passam a ser interconectadas.
Quero falar sobre alguns dos personagens centrais da temporada – que para mim são tão importantes, ou mais, do que a trama policial propriamente dita. Mas uma sinopse é sempre necessária, e então aqui vai uma, tirada da Wikipedia, com, é claro, pitacos meus.
Um policial da patrulha rodoviária, veterano da guerra do Afeganistão, Paul Woodrugh (Taylor Kitsch) encontra um corpo com sinais de tortura à beira de uma estrada. Revela-se que o morto é Ben Caspere, o city manager de Vinci, uma das dezenas de cidades que pertencem ao Condado de Los Angeles. (Falo sobre o que é city manager logo adiante.)
Há uma disputa sobre a quem cabe a investigação do crime: a chefia de Polícia da cidade de Vinci quer o caso para si, e nomeia o detetive Raymond Velcoro (Colin Farrell, na foto acima). A promotoria quer o caso para as autoridades estaduais, e nomeia a detetive da divisão de investigação criminal do Condado de Ventura Ani Bezzerides (o papel de Rachel McAdams). Acaba que as autoridades concordam em que a investigação ficará a cargo daqueles três policiais, Ray Velcoro, Ani Bezzerides e Paul Woodrugh.
Frank Semyon (Vince Vaughn), um mezzo empresário, dono de nightclubs, mezzo gângster, era muito próximo da vítima, e havia investido milhões em um projeto de ferrovia supervisionado, na área de Vinci, por Ben Caspere. Com a morte do sócio na empreitada, Semyon perde praticamente toda a sua fortuna, e por isso começa sua própria investigação sobre o assassinato.
Três policiais, um dublê de empresário e gângster. A quinta personagem central da história é a mulher de Frank Semyon, Jordan – que na pele de Kelly Reilly, aquela inglesa de beleza fulgurante.
Devo dizer que não conhecia a figura de um city manager. Pelo que deu para entender, o city manager, gerente administrativo de uma cidade, às vezes chamado de chefe administrativo, é uma espécie assim de primeiro-ministro, o sujeito de que fato põe a mão na massa e governa, enquanto o prefeito reina.
E é bom registrar desde logo que não existe, entre as 88 cidades que compõem o Condado de Los Angeles (o maior dos Estados Unidos, com 9,8 milhões de habitantes, mais do que 40 dos 51 Estados), uma chamada Vinci. Vinci é um nome fictício – mas uma rápida busca no Google mostra que o roteirista Vic Pizzolatto criou Vinci com base em uma cidade bastante real da região de Los Angeles, Vernon. Volto a isso mais adiante.
Um homem que a vida tratou mal – e que trata mal a vida
O primeiro protagonista que ficamos conhecendo é o detetive Ray Velcoro – o papel de Colin Farrell, e, a rigor, o personagem principal da série. Nós o vemos levando o filho único, Chad, até a escola. Tenho dificuldade em calcular a idade de crianças e adolescentes, mas diria que Chad está aí com uns 13 anos. (Não achei a idade de Trevor Larcom, o jovem ator que faz o papel do garoto.) É tímido, fechado, bem gordinho – e parece muito evidente que é vítima de bullying dos colegas na escola.
Ray é absolutamente, loucamente apaixonado pelo filho – mas, como tantos pais que amam os filhos, e tentam protegê-los, e fazer o melhor por eles, faz muita besteira. A rigor, essa última frase aí está errada: Raymond Velcoro faz mais besteira que quase todos os pais que amam os filhos e tentam fazer o melhor por eles.
E ele é reincidente, recorrente, como a temporada irá nos mostrando ao longo de seus primeiros episódios. O espectador vai vendo que a vida tratou muito mal esse sujeito que era um bom policial, em Los Angeles, quando mais jovem – e que ele, em retorno, também tratou muito mal a si mesmo e à vida.
Quem avisa amigo é: a rigor, vem aí spoiler.
Ahnn… Vou falar aqui de fatos fundamentais da vida do principal personagem da série – mas a questão é que isso, a rigor, a rigor, é spoiler. Não é que revele os fatos da trama policial, de forma alguma – mas são informações que os realizadores demoram a entregar. Então registro aqui o aviso que costumo fazer: se o eventual leitor chegou até aqui, mas ainda não viu a Segunda Temporada de True Detective, deveria parar de ler – e primeiro ver a série. Esta Segunda Temporada é muito boa, é extremamente bem realizada em todos os quesitos, merece ser vista.
Três policiais com sérios problemas na vida pessoal
Cerca de 12 ou 14 anos antes dos “dias de hoje” – os dias em que se passam os principais eventos da trama, a partir do assassinato do city manager corrupto Ben Caspere –, Gena (Abigail Spencer), casada havia pouco com o competente, bom policial Raymond Velcoro, foi atacada por um estuprador.
O garoto Chad nasceria uns nove meses depois do estupro.
Ray acabou obtendo, de um empresário metido em coisas fora da lei, um tal Frank Semyon, o nome e a foto do sujeito que seria o estuprador. Ray foi atrás da cara e o matou. O casamento com Gena começou a acabar por ali – e, nos “dias de hoje”, era coisa do passado. Gena havia se casado de novo – e não gostava da forma obsessiva com que Ray se relacionava com Chad. Estava recorrendo à Justiça para distanciar o pai do filho, diminuir o tempo em que os dois podiam estar juntos.
O que, para Ray, obviamente era a pior coisa que poderia haver.
Comparados aos problemas terríveis, horrendos de Ray, até que os da detetive Antigone Bezzerides-Rachel McAdams não eram tão graves. Mas, diabo, não eram pequenos.
Que espécie de pai dá para suas duas filhas os nomes das personagens da mitologia e da tragédia gregas, Antígona e Atenas?
Bem… Eliot Bezzerides, interpretado por um David Morse de cabelão imenso, é uma espécie de guru new age com mistura de alguma coisa hindu, um velho hippie que nos tempos modernos tem sucesso ao adaptar o papo mais furado da contracultura dos anos 60 a estes nossos tempos horrendos. Perto de tantos outros personagens da série – criminosos, assassinos, corruptos –, até que não é dos piores. Mas foi um pai pouco atento às filhas, um pai ausente. Antigone, que todos chamam de Ani, sofreu abusos quando jovem, antes de virar uma boa policial. Mas Athena (Leven Rambin) acabou virando uma atriz de filmes que fingem que não são mas são, sim, pornôs.
E então temos o policial da patrulha rodovíária Paul Woodrugh, o papel Taylor Kitsch (na foto acima), de quem jamais tinha ouvido falar.
Paul Woodrugh não tem idéia de quem foi seu pai. A mãe, Cynthia, era dançarina de cabaré e puta. Ela sempre diz que a gravidez a fez perder a carreira. Quando ele a visita, no trailer em que vive, os dois discutem, brigam. Há uma sequência em que os dois se xingam que é uma coisa apavorante, chocante.
Cynthia é interpretada por Lolita Davidovich, uma atriz muito interessante, que andava sumida – bem, eu, pelo menos, não via filmes com ela desde A Face Oculta da Lei, de 2002.
Como se não bastasse o trauma de ter uma mãe que reclama do fato de ele existir, Paul tem um problema sério: não admite a sua própria homossexualidade. Luta desesperadamente contra ela.
Três policiais carregados de problemas pesados – com a tarefa de resolver um assassinato misterioso que leva a um mundo de podridão.
É uma bela série esta aqui. (Na foto abaixo, Vince Vaughn, que faz o empresário/gângster Frank Semyon, e Kelly Reilly, como Jordan, a mulher dele.)
A corrupção em uma cidade californiana inspirou a série
E então a cidade fictícia de Vinci se baseia em uma cidade muito real, Vernon! Muito interessante saber disso.
Eis o que diz uma reportagem assinada por Abigail Tracy no site da respeitada revista Forbes em 2015, na época do lançamento desta Segunda Temporada de True Detective:
“Localizada apenas algumas milhas ao Sul de Los Angeles, Vernon tem um passado cheio de prevaricação pública, maquinações políticas e negócios sombrios. Durante um século, a impropriedade política tomou conta da cidade californiana, chamando a atenção da Forbes bastante tempo atrás.
“Em 2007, Evan Hessel, da Forbes, escavou sobre o passado corrupto de Vernon. Ele relatou a história da cidade como uma máquina política incrivelmente bem azeitada dirigida por duas famílias – os Malburgs e os Malkenhorsts. Essas duas famílias controlavam o governo da pequena cidade por anos. Por mais de três décadas Leonis C. Malburg foi o prefeito de Vernon, e Bruce Malkenhorst teve o caro de administrador e diretor executivo da empresa de energia da cidade, a Vernon Light and Power, e um punhado de outros cargos importantes. Outros candidatos não conseguiam se eleger e os salários dos líderes locais disparavam. As famílias dirigiram a cidade por décadas, até que a lei os pegou.
“Em 2011, um deputado estadual da Califórnia, John Perez, fez Vernon passar por uma série de reformas. Diversos altos funcionários da Prefeitura foram indiciados por sob a acusação de corrupção. (…)”
A reportagem conta que a publicação L.A. Weekly levantou pontos da série que a ligam à cidade de Vernon. A torre de água que aparece na tela com a inscrição “City of Vinci” é exatamente a que existe em Vernon. O prédio da Vernon Light and Power também aparece na tela. Assim como a cidade real, a fictícia Vinci é descrita como uma cidade industrial.
Para encerrar, uma característica interessante: os oito episódios desta Segunda Temporada da marca registrada True Detective foram realizados por nada menos de seis diretores diferentes! John Crowley e Justin Lin dirigiram dois episódios, cada, e Daniel Attias, Janus Metz, Jeremy Podeswa e Miguel Sapochnik dirigiram um episódio cada.
O fantástico é que não se notam estilos diferentes em cada episódio. Não, de forma alguma, Bem ao contrário, tudo parece obra de uma mesma pessoa, ou de um grupo bem coeso. Fascinante.
Anotação em fevereiro de 2024
True Detective – A Segunda Temporada
De Nic Pizzolatto, criador, roteirista, EUA, 2015
Direção John Crowley (2 episódios), Justin Lin (2 episódios), Daniel Attias (1 episódio), Janus Metz (1 episódio), Jeremy Podeswa (1 episódio), Miguel Sapochnik (1 episódio)
Com Colin Farrell (detetive Ray Velcoro),
Rachel McAdams (detetive Ani Bezzerides),
Taylor Kitsch (patrulheiro Paul Woodrugh),
Vince Vaughn (Frank Semyon),
Kelly Reilly (Jordan Semyon),
e Chris Kerson (Nails, capanga de Frank), Ritchie Coster (prefeito Austin Chessani), Christopher James Baker (Blake Churchman, o capanga de Frank que trai), Afemo Omilami (chefe de polícia Holloway), Michael Irby (detetive Elvis Ilinca, parceiro de Ani), Timothy V. Murphy (Osip Agronov, o milionário russo), Yara Martinez (Felicia, a gerente do bar que Ray frequenta), Adria Arjona (Emily, a namorada de Paul), W. Earl Brown (detetive Teague Dixon, nomeado para trabalhar com Ray), Michael Hyatt (Katherine Davis, a oficial honesta da Promotoria), Leven Rambin (Athena Bezzerides, a irmã de Ani), David Morse (Eliot Bezzerides, o pai de Ani e Athena), Lolita Davidovich (Cynthia Woodrugh, a mãe de Paul), Trevor Larcom (Chad Velcoro, o filho de Ray), Abigail Spewncer (Gena Brune, a ex-mulher de Ray), Vinicius Zorin-Machado (Tony Chessani, o filho do prefeito), Fred Ward (Eddie Velcoro, o pai de Ray), Rick Springfield (dr. Irving Pitlor, o dono da clínica), Lera Lynn (a cantora do bar), Andy Mackenzie (Ivar), Alain Uy (Ernst Bodine), Jon Lindstrom (Jacob McCandless), Christopher Eccleston (Ted Connelly)
Roteiro Nic Pizzolatto (criador), Scott Lasser (2 episódios)
Fotografia Nigel Bluck
Música T Bone Burnett
Montagem Alex Hall, Chris Figler, Byron Smith,
Casting Libby Goldstein, Junie Lowry-Johnson
Desenho de produção Alex DiGerlando,
Figurinos Alix Friedberg
Produção Picture Entertainment, Parliament of Owls, Passenger, Anonymous Content, Neon Black.
Cor, cerca de 480 min (8h).
***1/2
Olá, Sérgio
Trevor Larcom nasceu em 2004 e completou recentemente 20 anos de idade.
Como sempre uma ótima resenha!