(Disponível na Netflix em 11/2023.)
Nyad, produção americana de 2023, é uma beleza, uma maravilha de filme – por um monte de razões. A começar do fato de que conta uma bela, atraente história que é literalmente incrível, inacreditável. Parece coisa de roteirista extremamente criativo, com a mente aditivada por poderosos alucinógenos – e no entanto é tudo verdade. Aconteceu, quase tintim por tintim. Tanto que volta e meia aparecem no filme cenas do que aconteceu na vida real, imagens de telejornais.
O roteiro – assinado por Julia Cox – se baseia no livro autobiográfico da personagem-título, Diana Nyad. Quem gosta de esportes, lê sobre esportes certamente sabe quem é. Em maiúsculas, como nos cartazes do filme, NYAD parece uma sigla, talvez New York Art Department. Náiade, na mitologia grega é a ninfa das águas – conforme a garotinha Diana Nyad ouviu dos pais até cansar, e o filme lembra ao espectador bem rapidamente. (Bem, lembra para os muito letrados, e informa para a imensa maior parte dos mortais.)
Destinada pelo próprio nome a nadar, Diana Nyad – nascida em Nova York, em 1949 – tornou-se uma das maiores maratonistas da natação mundial. Em 1978, aos 28 anos falhou, não conseguiu realizar uma façanha que até então ninguém jamais em tempo algum havia conseguido, e abandonou a prática do esporte. Como muitos atletas, passou a partir daí a ser comentarista de emissoras de TV.
Até que, em 2011, aos 60 anos de idade, resolveu tentar de novo. É quando a ação do filme começa – na época em ela toma a decisão de novamente tentar realizar, com o dobro da idade que tinha antes, a façanha até então inédita, impossível, de nadar de Cuba até a Flórida.
Uma história incrível, inacreditável – contada com brilhantismo, talento saindo pelo ladrão em todos, todos os quesitos técnicos e artísticos.
Annette Bening – essa atriz de beleza absolutamente perfeita, estrondosa, que não muito tempo atrás havia me maravilhado como Gloria Grahame em seus últimos meses, no lindo e triste Estrelas de Cinema Nunca Morrem – teve, creio, a melhor interpretação de sua carreira. E olha que a carreira da moça é esplendorosa – cinco dezenas de filmes em 37 anos até aqui, 2023; 56 prêmios, 127 indicações no total, inclusive quatro ao Oscar.
Se o Oscar não fosse essa caixinha de surpresas maior que o futebol, daria para apostar muitas fichas em que ela receberá uma quinta indicação por sua interpretação de Diana Nyad, essa mulher absolutamente extraordinária.
A vida dessa mulher – e essa é mais uma das razões pelas quais o filme é uma beleza – serve como uma coletânea de livros de auto-ajuda, como anos de cursos de conselheiros motivacionais. E é uma coisa abençoada ver que ela – uma mulher avassaladoramente egocêntrica, umbigo do mundo – precisou fracassar quatro vezes na tentativa de conquistar o maior feito possível de uma nadadora maratonista para afinal concluir que a vida é um esporte de equipe.
O livro autobiográfico de Diana Nyad que é a base do roteiro tem o título de Find a Way. Uma olhada bem rápida no Google indica que ele não foi editado no Brasil. Find a way, com mil perdões de quem está exaustíssimo de saber, é encontre um caminho. Poderia ser, em linguagem coloquial, dê um jeito.
O filme mostra que o caminho que Diana Nyad encontrou foi o da amizade, da solidariedade, do trabalho em equipe.
(Quem chamou a atenção para como isso é importante foi a Mary, que sonhou estar escrevendo o lead de um texto sobre o filme. Às vezes acho que meus textos aqui deveriam ser assinados por nós dois…)
Jodie Foster faz a amiga-irmã da atleta
Vixe! Há tantos aspectos interessantes em Nyad para serem destacados logo de uma vez, no começo do texto, que ainda nem registrei que o filme tem Jodie Foster, além de Annette Bening.
Meu Deus, Jodie Foster… Que maravilhosa atriz, que grande diretora, que mulher admirável…
Annette Bening é de 1958 (de Topeka, Kansas). Em 2023, ano de lançamento do filme, estava, portanto, com 65 anos. Idade perfeita para interpretar Diana Nyad entre os 60 e os 64 anos – esse é o período da vida da atleta depois comentarista de esporte e autora mostrado no filme.
Jodie Foster é quatro anos mais nova, de 1962 (de Los Angeles, Califórnia), e estava com 61 anos.
Mulheres maduras, vividas, experientes – interpretando mulheres maduras, vividas, experientes.
Jodie Foster faz o papel de Bonnie Stoll, a maior amiga de Diana, a pessoa em que Diana mais confia – e a quem pede ajuda quando, aos 60 anos, decide voltar a treinar nas piscinas para depois tentar a travessia Cuba-Flórida.
A roteirista Julia Cox bolou uma forma interessante, esperta, de contar para o espectador, bem no iniciozinho do filme, qual era a relação entre Diana e Bonnie. Esta prepara uma festa surpresa para os 60 anos daquela, e, na festa, apresenta Diana para uma moça que era absoluta fã da atleta. Confesso que demorei um pouquinho para perceber que a intenção de Bonnie era a de ver se rolava algum caso entre a amiga e a moça.
Diana fala bastante dela mesma para a moça – aliás, toda a sequência da festa, quando o filme está apenas começando, realça, enfatiza o quanto Diana é egocêntrica, ególatra, como se sente o umbigo do universo.
A uma pergunta da moça sobre como Diana e Bonnie se conheceram, e se elas são… (a frase fica inconclusa), responde: – “Ah, não. Somos as melhores amigas. Tivemos um namoro rápido séculos atrás, mas…”
Admiro bastante esse tipo de coisa. Uma conversa normal, bem no início de um filme – e, sem que pareça artificial, proposital, uma personagem dá para o espectador uma informação fundamental. Quando estamos com exatos 7 dos 121 minutos de Nyad, ficamos sabendo do básico sobre Diana e Bonnie. Sim, tiveram um namoro rápido, séculos atrás, mas faz muito tempo que são as melhores amigas. Best friends, como Diana-Annette Benning fala com a moça que Bonnie havia apresentado a ela imaginando que talvez aí rolasse um namoro, ou no mínimo algumas trepadas. Amigas-irmãs – essa é a expressão que gosto de usar.
Ao decidir tentar de novo, Diana quer que sua best friend, sua amiga-irmã, seja a treinadora.
Interessante: em nenhum momento do filme – a não ser que eu não tenha percebido – é dito qual é a profissão de Bonnie, do que vive. Mas fica bastante claro que ela não é uma treinadora de atletas, de nadadores. A princípio, acha a idéia de Diana de tentar novamente a travessia Cuba-Miami, agora aos 60 anos de idade, uma arrematada loucura – e demora a aceitar o papel de treinadora.
Embora, na verdade, pelo que vemos ao longo do filme, Bonnie não vá atuar exatamente como a coach, a treinadora de Diana. Seu papel, a rigor, é a de diretora geral de produção. A ela caberá dirigir tudo, escolher e coordenar as diversas pessoas que serão fundamentais na equipe de apoio à atleta – o navegador, o capitão do barco (no caso específico, a capitã), o nutricionista, o socorrista, o especialista em tubarões… Dirigir e coordenar tudo, absolutamente – inclusive a própria atleta – ao longo dos vários dias em que Diana nada os 165 quilômetros entre Cuba e a Flórida.
164 km cheios de correntes, tempestades, tubarões…
Logo na abertura, vemos o que seria uma reportagem de televisão sobre Diana Nyad. E ficamos sabendo que lá atrás, em meados dos anos 1970, a moça tinha batido o recorde mundial da travessia da ilha de Capri a Nápoles. Nadara 51 km através do Lago Ontário. Em 6 de outubro de 1976, havia nadado 28 milhas em torno da ilha de Manhattan em pouco menos de 8 horas.
E aí vemos imagens da noite de 5 de setembro de 1979, em que Diana foi ao Tonight Show, do apresentador Johnny Carson, um dos programas de maior audiência da televisão norte-americana
– “Quero fazer uma travessia de 60 horas. Dois dias e meio. De Cuba à Flórida”, diz a voz da jovem Diana Nyad, enquanto vemos imagens do programa de televisão.
Em vários momentos do filme, imagens da vida real, de telejornais, se misturam às do filme – e esta é uma característica marcante, maravilhosa de Nyad. A justaposição das imagens da vida real com as encenadas para reproduzir aqueles eventos é feita com a mais incrível perfeição técnica – e o resultado é belo e emocionante.
De Cuba à ilha mais ao Sul da Flórida, Key West, são 103 milhas, ou 164 km, em linha absolutamente reta.
Tudo na vida é relativo, e então 164 km são, ao mesmo tempo, uma bobagenzinha, uma coisinha minúscula – e uma imensidão sem fim. Para os norte-americanos que lotavam navios e aviões para passar alguns dias de férias na ilha paradisíaca, até o finalzinho de 1958, era um pulinho. Para os cubanos que tentavam fugir em balsas, barquinhos, qualquer coisa que navegasse, da nova ditadura que se estabeleceu em Cuba a partir de 1959, após derrubar a ditadura anterior, era uma travessia gigantesca.
Agora, nadar 164 km…
É o equivalente a pouquinho menos que quatro maratonas – a maratona são 42 km.
Ou atravessar 3.280 vezes uma piscina olímpica.
Só que, diferentemente de uma piscina olímpica, naquele trecho ali entre o Golfo do México e o Oceano Atlântico, há fortes correntes marítimas, água viva, vespas-do-mar, tempestades, muitas vezes furacões. Ah, sim, e tubarões. Tubarões aos montes.
Não poderia haver ninguém melhor para fazer o filme
É preciso fazer o registro: a Associação Mundial de Nadadores em Mar Aberto não reconhece o feito de Diana Nyad. Transcrevo o que informa a revista Veja:
“O impasse ocorre porque Nyad não teria aderido a todos os protocolos exigidos por uma ultramaratona em mar aberto. Um ponto discutido é que ela pede que seu recorde seja registrado como “sem assistência”; porém, além de usar uma roupa especial, a equipe de apoio da nadadora a ajudou a selar parte de seu traje em determinado ponto. Mas o x da questão que incomoda o grupo é que o trajeto não foi completamente filmado – 9 horas da travessia não foram registradas.”
Este belo filme, esmeradamente realizado, foi dirigido por duas pessoas de quem jamais tinha ouvido falar, Jimmy Chin e Elizabeth Chai Vasarhelyi. São jovens – ele é de 1973, ela é de 1977 e 1978, estranhamente não se sabe ao certo –, são americanos descendentes de chineses e são um casal.
Elizabeth e Jimmy têm em comum, além de dois filhos, a ligação com o documentário, a experiência como documentaristas, e documentaristas com vivência no mundo do esporte – o que explica como souberam aproveitar tão bem as imagens de filmes de telejornais, e como conseguiram ser tão convincentes, competentes, na recriação das diversas fases da imensa maratona aquática de Diana Nyad.
A ligação de Jimmy Chin, em especial, com os esportes é profunda, antiga. Foi um alpinista profissional e esquiador – e depois se tornou fotógrafo e diretor.
Em 2015, o casal dirigiu o documentário de longa-metragem Meru – o Centro do Universo, sobre três alpinistas escalando o Monte Meru, no Himalaia. A linha abaixo do título original, Meru, era “Acredite no Impossível”. Poderia perfeitamente figurar abaixo do título Nyad.
Meru obteve quatro prêmios e 14 indicações. No Sundance, o Festival de Cannes do cinema independente, venceu o Prêmio da Audiência.
Em 2018 o casal lançou Free Solo, outro filme sobre alpinismo – a tentativa de um sujeito chamado Alex Honnold de ser a primeira pessoa a escalar sozinho El Capitan, na Califórnia. O filme foi um tremendo sucesso; além de ganhar o Oscar de Melhor Documentário de longa-metragem e sete Primetime Emmys, teve, no primeiro fim de semana, a melhor bilheteria de um documentário em toda a História.
É – sem dúvida não poderia haver ninguém melhor do que esse casal para fazer um filme sobre Diana Nyad.
Além de saber fazer filme, essa moça Elizabeth Chai Vasarhelyi demonstra que sabe argumentar. Quando confrontada com a questão de que o recorde de Diana Nyad não é oficialmente aceito pela Associação Mundial de Nadadores, ela respondeu que o filme que ela e o marido fizeram não é sobre um recorde esportivo. “É sobre uma mulher com mais de 60 anos de idade que percebeu que sua vida não tinha chegado ao fim, mesmo que o mundo tenha decidido que ela não existia mais.”
Tornada muito mais feia do que é para ficar parecida com essa incrível Diana Nyad, Annette Benning brilha quando fala as palavras que com toda certeza são exatamente as que a atleta disse:
– “Só quero dizer três coisas. Um: nunca, nunca desistam. Dois: nunca somos velhos demais para correr atrás dos nossos sonhos. E três: parece que é um esporte solitário, mas nós não somos nada sem uma equipe.”
Anotação em novembro de 2023
Nyad
De Jimmy Chin & Elizabeth Chai Vasarhelyi. EUA, 2023
Com Annette Bening (Diana Nyad).
Jodie Foster (Bonnie Stoll)
e Rhys Ifansv (John Bartlett, o navegador), Anna Harriette Pittman (Diana adolescente), Belle Darling (Diana aos 5 anos), Pearl Darling (Diana aos 5 anos), Erica Cho (Luke Cosgrove), Luke Cosgrove (Luke Tipple), Jeena Yi (Angel Yanagihara), Karly Rothenberg (Dee Brady, a capitã do barco), Ethan Jones Romero (Nico), Eric T. Miller (Jack Nelson, o treinador de Diana adolescente), John Solo (Aris Nyad), Garland Scott (Jon Rose), Marcus Young (Marcus, o mergulhador), Tisola Logan (Anna), Marcella Acuña Báez (Suzanne), Lilo Grunwald (Nina), Anne Marie Kempf (Candace)
Roteiro Julia Cox
Baseado no livro autobiográfico “Find a Way”, de Diana Nyad
Fotografia Claudio Miranda
Música Alexandre Desplat
Montagem Christopher Tellefsen
Casting Valerie Daniella, Hernandez Oloffson, Avy Kaufman
Desenho de produção Kara Lindstrom
Figurinos Kelli Jones
Produção Andrew Lazar, Teddy Schwarzman, Black Bear Pictures, Mad Chance, SPG3 Entertainment, Zurich Avenue.
Cor, 121 min (2h01)
***1/2
Que beleza de resenha. Digna do filme. Beijo.