Romance na Itália / Viaggio in Italia

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 10/2023.)

Há alguns pontos sobre Viaggio in Italia, de 1954 – o quarto dos seis filmes de Roberto Rossellini com Ingrid Bergman, então sua mulher – que são absolutamente fascinantes, na minha opinião. O primeiro deles é que, embora realizado por um dos criadores do neo-realismo, Viaggio in Italia não é um filme neo-realista.

O neo-realismo italiano, surgido logo ao final da Segunda Guerra Mundial, o país destroçado, reduzido à pobreza, tinha como uma de suas características básicas mostrar a dureza da vida dos pobres, da classe trabalhadora. “Seus filmes recorriam a argumentos episódicos e a um estilo semidocumental, com uso de locações e de atores amadores ao lado de profissionais, para retratar o duro cotidiano de uma Itália em reconstrução”, sintetiza o livro … ismos – Para Entender o Cinema, de Ronald Bergan.

Há o uso de locações em Viaggio in Italia, é verdade. Há muitas tomadas rodadas não em estúdio, e sim em locações, ao ar livre, como dita um dos mandamentos do neo-realismo – Katherine Joyce, a protagonista da história, interpretada por Ingrid Bergman, em visita à região de Nápoles, passeia por locais como o Templo de Apolo em Pompéia, o Museu Arqueológico Nacional e as catacumbas dos cristãos em Nápoles.

Mas não há absolutamente nada a ver com o duro cotidiano das classes trabalhadoras. Viaggio in Italia narra exatamente o que está no título – especificamente, uma viagem de carro à região de Nápoles de um riquíssimo casal inglês, Katherine e Alex Joyce. Alex é interpretado pelo  russo da São Petersburgo imperial tornado astro de Hollywood George Sanders.

Katherine e Alex vão a Nápoles para tratar da venda de uma propriedade que haviam herdado de um tio. Viajam em trajes caríssimos em um carro milionário, um Bentley Mk.VI coupé 1950 – e, embora casados havia oito anos, aquela é a primeira vez em que passam vários dias apenas os dois, longe dos costumeiros encontros sociais. Homem de negócios, workaholic, Alex se queixa diversas vezes de que está entediado. Uma mulher romântica, sensível, Katherine tinha sugerido que fizessem a viagem de carro, e não de avião, para conhecer melhor os lugares.

Os dois vão se desentender ao longo da viagem – e se desentender feio. Motivo pelo qual é ridículo, grotesco o título que os exibidores brasileiros escolheram, Romance na Itália. Não se mostra um romance; muito ao contrário, o que vemos é um casamento que vai ruindo, caindo aos pedaços, na nossa frente.

Um casamento que vai ruindo. Um casal riquíssimo que parece rumar inexoravelmente para o divórcio. Não pode haver coisa menos neo-realista do que o tema de Viaggio in Italia.

Ainda sobre o título do filme, preciso registrar que ele foi lançado comercialmente no Brasil com esse título descabido de Romance na Itália, e é assim que ele consta do Dicionário de Cineastas de Rubens Ewald Filho e do Dicionário de Filmes de Georges Sadoul. É também com este título que ele está no YouTube, em uma cópia restaurada com o apoio de várias organizações, entre elas a Cinemateca de Bolonha. No entanto, ele já aparece em outras fontes – como o IMDb – com o título de Viagem à Itália.)

O filme influenciou a nouvelle vague

O segundo ponto que considero fascinante é que Viaggio in Italia foi um fracasso na época de seu lançamento – tanto de crítica quanto de público.

Foi só com o passar do tempo que o filme foi reavaliado – e passou a ser unanimemente considerado uma obra-prima. Bem… A rigor, melhor seria dizer quase unanimemente.

Leonard Maltin destacou essa característica em sua resenha. Ele deu 3 estrelas em 4 ao filme, e escreveu: “Belo, meditativo relato do casal Bergman e Sanders tentando reconciliar sua relação vacilante enquanto dirigem através da Itália. Recebeu críticas horrorosas quando lançado, mas foi redescoberto (e rotulado de obra-prima) pelos realizadores e críticos franceses.”

Interessante é que o grande crítico e estudioso francês Jean Tulard diz exatamente o contrário ao final do verbete sobre Voyage en Italie em seu prodigioso Guide des Films: “Um grande filme muito admirado desde seu lançamento. O cume da obra de Rossellini.”

Há vários outros críticos que dizem a mesma coisa, que é o melhor de todos os filmes do reverenciadíssimo realizador. E parece que, ao dizer que o filme é “très admiré dès sa sortie”, mestre Tulard se enganou.

Eis o que diz a Wikipedia em inglês:

“O filme terminou de ser feito em 1953, mas só depois de 18 meses houve acerto para a distribuição na Itália. Ele foi lançado em 1954 com o título Viaggio in Italia e 105 minutos de duração. As receitas na bilheteria e a recepção crítica foram pobres. O filme havia sido dublado para o Italiano, e atualmente é usado como exemplo das dificuldades ‘monstruosas’ da dublagem. Em abril de 1955, uma versão de 88 minutos, em Inglês, foi lançada na França como L’Amour Est le Plus Fort. Houve pouco interesse pelo filme nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, apesar de ter sido feito em Inglês com atores importantes nos papéis centrais. Uma versão americana, com 80 minutos, teve um lançamento limitado em 1955 com o título Strangers. Na Grã-Bretanha, uma versão cortada, de 70 minutos, foi lançada em 1958 com o título The Lonely Woman.”

E a Wikipedia prossegue:

Journey to Italy foi mal nas bilheterias e foi largamente um fracasso na crítica. Teve, no entanto, uma profunda influência sobre os realizadores da New Wave (a forma inglesa de Nouvelle Vague, claro) nos anos 1950 e 1960. Seis décadas mais tarde, o crítico John Patterson descreveu: ‘Críticos franceses dos Cahiers du Cinéma – gente como Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, François Truffaut e Claude Chabrol – viram nele o momento em que o cinema poético amadureceu e ficou indiscutivelmente moderno. Journey to Italy é assim uma fonte da New Wave francesa. Um filme convulsionado por temas como esterilidade, petrificação, gravidez e eternidade, ele encontrou eco em obras-primas da Nouvelle Vague assombradas pela morte como Le Boucher de Chabrol e La Chambre Verte de Truffaut. O realizador Martin Scorsese fala sobre o filme e suas impressões sobre ele em seu próprio filme My Voyage to Italy’.”

Achei muito interessantes essas informações de que o crítico John Patterson cita O Açougueiro (1970), de Claude Chabrol, e O Quarto Verde (1976), de François Truffaut, como filmes influenciados por Viaggio in Itália. E da lembrança de que Scorsese deu ao seu documentário sobre o cinema italiano um título diretamente ligado à obra do mestre Rossellini.

E tem mais. Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, diz que O Desprezo (1963) de Godard e A Hora do Amor (1971) de Ingmar Bergman também mostram influência de Viaggio in Italia:

“Roberto Rossellini fez este estudo de um casamento em crise, com Ingrid Bergman e George Sanders; na melhor sequência do filme, o casal visita Pompéia e vê dois corpos petrificados que acabavam de ser desenterrados (das cinzas do vulcão Vesúvio) se abraçando. Um filme influente (há ecos dele tanto em Contempt de Godard quanto em The Touch de Bergman), que é estragado por banalidade e falta de jeito. Roteiro de Rossellini e Vitaliano Brancati; fotografia por Enzo Serafin.”

“Marred by banality and clumsiness.” Essas palavras de Dame Kael não permitem que se diga que Viaggio in Italia é considerado unanimemente uma obra-prima.

A história se baseia em um romance de Colette

O terceiro ponto que considero fascinante em relação ao filme é o fato – do qual pouco se fala – de que a trama se baseia em um livro de Colette, a escritora francesa nascida em 1873 e que morreu – incrível coincidência – exatamente em 1954, o ano de lançamento de Viaggio in Italia.

O romance de Colette foi lançado em 1934; chama-se Duo, e conta a história de um casal em viagem pelo Sul da França.

O Guide des Films de Jean Tulard, o verbete de Pauline Kael, o de Leonard Maltin, o do Dicionário de Filmes de Georges Sadoul, o do livro 1001 Filmes para Ler Antes de Morrer – nenhum deles fala da obra de Colette. O próprio filme não cita a escritora nos créditos.

Estranho, esquisito…

A informação está no IMDb – e também no verbete sobre o filme na Wikipedia em inglês:

“O filme originalmente deveria ser uma adaptação do romance Duo da escritora francesa Colette; Rossellini, no entanto, não conseguiu comprar os direitos do romance, e foi forçado a criar um roteiro que difere suficientemente do livro. Rossellini e seu co-autor, Vitaliano Brancanti, também aparentemente usaram roteiro intitulado “New Vine”, de Antonio Pietrangeli, que descrevia o relacionamento de um casal inglês visitando Nápoles em um automóvel Jaguar.”

Citei o 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer – e aí há um detalhe interessante. Viaggio in Italia não está na edição brasileira do livro – pelo menos não está na edição que eu tenho, a primeira, pela Sextante, de 2008. Mas está no original, segundo o IMDb, que traz o texto. A explicação para a ausência do filme na edição brasileira pode estar no fato de que alguns filmes da edição original – assinada por Steven Jay Schneider – foram retirados para que fossem introduzidos mais filmes produzidos no Brasil.

Eis aqui trechos do que diz o livro 1001 Movies You Must See Before You Die:

“O Maestro italiano Roberto Rossellini tinha um repertório profundo e comovente de grandes filmes, mas este pequeno filme sobre fragilidade e mediocridade humanas pode ser sua conquista culminante. É uma simples história de um casal que está junto há muito tempo forçado a empreender uma viagem para a Itália para tratar de uma herança, cuja vida conjugal lentamente se rompe durante a viagem, até (aqui o texto revela o final, o que considero um spoiler e corto fora). Essa é a história por trás do filme, e é a bem sucedida credibilidade da história que eleva o filme à grandeza.”

Bem mais adiante, o texto conclui: “É uma gloriosa declaração de amor e humanidade.”

Um filme, afinal de contas, sobre incomunicabilidade

Em 1949, Ingrid Bergman, então casada com o médico sueco Aron Lindström, com quem havia tido uma filha, Pia Lindström, deixou a família nos Estados Unidos e foi para a Itália filmar Stromboli sob a direção de Rossellini, por sua vez casado com Marcella De Marchis e pai de dois filhos. O romance entre a estrela sueca e o diretor italiano – mais o anúncio, bem rápido, de que ela ficou grávida – foi um dos maiores escândalos da história de Hollywood. Os jornais falavam do caso sem parar; políticos e religiosos faziam discursos e sermões condenando a sueca imoral. Os estúdios fecharam as portas para ela. Ingrid só voltaria a filmar nos Estados Unidos 20 anos após sua ida para a Europa, em Flor de Cacto/Cactus Flower (1969), uma bobagem danada.

Depois do final do seu casamento com Rossellini, em 1957, Ingrid trabalhou em várias produções americanas – mas filmadas na Europa.

Durante os sete anos e alguns meses de relacionamento, Ingrid e Roberto tiveram três filhos – as gêmeas Isabella e Isotta e Roberto.

O casal inglês de Viaggio in Italia, Katherine e Alex, não tem filhos. Creio que não se fala, no filme, sobre os motivos da ausência de filhos – se é uma opção do casal, se um deles é estéril. Mas uma das coisas que mais me impressionaram no filme foi como Katherine observa a quantidade de mulheres grávidas nas ruas de Nápoles. Ela passeia com seu carrão com volante no lado direito pelas ruas cheias de gente, e a câmara do diretor de fotografia Enzo Serafin mostra mulheres barrigudas que vão ter menino, como diz a canção dos Secos & Molhados. São várias, várias, várias tomadas de mulheres grávidas. Katherine as observa com olhar de espanto, inquietação.

“Um filme convulsionado por temas como esterilidade, petrificação, gravidez e eternidade”, como diz o crítico John Patterson.

Um filme de um dos criadores do neo-realismo que no entanto não é neo-realista. Que foi um fracasso de público e crítica ao ser lançado, mas com o tempo passou a ser considerado uma obra-prima. Que pouco gente registra ser baseado ou no mínimo inspirado em um romance de Colette.

Três características interessantíssimas.

Chego agora, finalmente, a um quarto ponto que considero fascinante em Viaggio in Itália.

Não vi uma única menção a isso – e, no entanto, salta aos olhos que a história contada por Roberto Rossellini tem tudo a ver com o cinema de Michelangelo Antonioni.

Um homem e uma mulher ricos, cheios da grana, super bem vestidos, carrão milionário. Um homem e uma mulher que sempre viveram rodeados de gente e que, quando pela primeira vez passam um bom tempo só os dois, têm imensa dificuldade de conviver, de conversar, de se comunicar.

Georges Sadoul usou a palavra exata para definir o que acontece entre Alex e Katherine – e usou com aspas, não sei por quê. “Uma espécie de diário íntimo, uma meditação sobre a ‘incomunicabilidade’ de um casal determinado.”

Incomunicabilidade. Esse era o termo usado pelos críticos para definir um dos temas centrais da obra de Antonioni – incomunicabilidade. A trilogia A Aventura, A Noite, O Eclipse é exatamente sobre isso – e ficou conhecida assim mesmo, a trilogia da incomunicabilidade.

Mestre Sadoul usou a palavra em sua definição de Viaggio in Italia – mas não citou Antonioni. Ninguém, dos autores que pesquisei sobre o filme, cita Antonioni.

Viaggio in Itália, na minha opinião, é o filme italiano mais antonionesco fora os assinados pelo mestre Michelangelo Antonioni.

         Anotação em outubro de 2023

Romance na Itália/Viaggio in Italia

De Roberto Rossellini, Itália-França, 1954.

Com Ingrid Bergman (Katherine Joyce),

George Sanders (Alex Joyce)

e Maria Mauban (Marie), Anna Proclemer (a prostituta), Paul Muller (Paul Dupont), Anthony La Penna (Tony Burton), Natalia Ray (Natalie Burton), Jackie Frost (Betty), María Martín (Judy)

Roteiro Vitaliano Brancati, Roberto Rossellini, Colaborou Antonio Pietrangeli

Baseado em romance de Colette (não creditada)

Fotografia Enzo Serafin

Música Renzo Rossellini

Montagem Jolanda Benvenuti

Direção de arte Piero Filippone

Figurinos Fernanda Gattinoni

Produção Adolfo Fossataro, Alfredo Guarini, Roberto Rossellini, Italia Film, Junior Film, Sveva Film, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.).

P&B, 85 min (1h25)

***1/2

2 Comentários para “Romance na Itália / Viaggio in Italia”

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