Nota:
(Disponível na Netflix em 8/2023.)
As Nadadoras, co-produção Reino Unido-EUA de 2022, dirigido pela jovem Sally El Hosaini, é daquela categoria de filmes que são ao mesmo tempo bons e importantes. Grande cinema e também belo, necessário documento. Conta – com uma profusão de belíssimas imagens e sequências magistrais – a história de duas jovens irmãs sírias. Uma história impressionante, apaixonante, exemplar e, por mais fantástica que seja, verdadeira.
É interessante que a diretora Sally El Hosami – também co-autora do roteiro, juntamente com Jack Thorne – e os produtores não tenham usado o aviso tradicional “Baseado em fatos reais”, “Baseado em uma história real” na abertura do filme. Este é um selo bom de marketing, um forte apelo para grande parte do público, este escriba aqui inclusive – mas o filme o dispensou.
Ao final, no entanto, As Nadadoras faz como é de praxe nos filmes baseados em histórias reais, e, em letreiros, informa o que aconteceu com os personagens da história depois dos fatos mostrados na tela. As informações são fascinantes – e vêm acompanhadas de dados e números capazes de chocar um frade de pedra.
É possível que algumas pessoas se lembrem do nome de uma das duas irmãs que são as protagonistas desta história incrível – Yusra Mardini foi citada pela imprensa do mundo todo, inclusive e talvez em particular da brasileira, e faz pouco tempo, em 2016. Mary e eu não nos lembrávamos dela. Para nós, portanto, a história foi totalmente nova, e em muitos momentos surpreendente – embora haja também coisas previsíveis.
É sempre melhor – eu creio muito nisso – ver um filme sem conhecer muito da história que vai ser contada. A emoção é maior, o prazer de ver a história se desenrolar diante de nós é maior. Nestes meus comentários aqui, procuro sempre relatar apenas o que aparece no começo das histórias – para deixar o eventual leitor que ainda não viu o filme com vontade de vê-lo, e para que quem já viu se lembre e possa comparar suas lembranças e opiniões com as minhas.
No caso específico da história das irmãs Yusra e Sara Mardini, vou radicalizar um pouco. Vou sugerir desde já ao eventual leitor que caiu neste site depois de uma busca no Google e ainda não viu o filme que pare por aqui, e primeiro veja este belo The Swimmers.
Na abertura e no fim, momentos felizes
Não dá para saber, é claro, se a autora e diretora Sally El Hosami teve essa intenção, mas The Swimmers parece ter sido estruturado como uma peça em três atos – ou um concerto em três movimentos. Só que, bem ao contrário do que acontece nos concertos – um movimento mais lento, mais suave no meio, entre uma abertura e um final bem mais rápidos, lépidos e fagueiros, um andante entre dois allegros –, o filme tem momentos felizes no começo e no fim. E, no centro, um drama pesado, denso, um horror que parece sem fim, sem saída, sem luz no fim do túnel, o pior dos mundos, o inferno.
O filme abre com uma sequência em torno de uma bela, muito bem cuidada piscina de um clube, em que crianças, em especial, se divertem, enquanto os adultos lagarteiam ao sol em cadeiras ao redor dela. Um letreiro informa: “2011 – Um subúrbio de Damasco, Síria”.
As pessoas se divertem em torno e dentro da piscina, e, sobre as tomadas feitas de fora e dentro da água, vão rolando os créditos iniciais.
Duas garotas brincam na água – veremos que são as irmãs Yusra e Sara.
Logo a seguir as vemos chegando em casa, uma bela casa, ampla, confortável. Há uma festa-teoricamente-surpresa para Yusra, que aniversaria. Um número grande de convidados, um clima de muita descontração e alegria.
Também não dá para garantir, é claro, se foi intencional, mas tudo indica que sim, que o filme, muito propositadamente, abre com aquelas sequências mostrando uma vida confortável, tranquila, de pessoas de classe média, sem véus, hijabs, chadores, niqabs, burqas para deixar um tanto assustados, perplexos, no mínimo surpresos os espectadores. Porque, para a maior parte das pessoas que virem o filme nos Estados Unidos, na Inglaterra, nos países da Europa Ocidental, na América Latina, no Japão, na Austrália, aquelas imagens não parecem ser da Síria.
E é compreensível. Para boa parte do mundo, Oriente Médio, Síria, especificamente, aquilo é associado a pobreza, miséria, seca, aridez, habitações ruins, violência, bombas, guerras.
A família Mardini que o início de As Nadadoras nos mostra poderia perfeitamente ser uma família classe média alta, de vida tranquila, em um bairro agradável de Toronto, Atlanta, Milão, Viena, São Paulo, Melbourne.
É um espanto, quase um oxímoro.
Yusra é focada, aplicada; Sara parece mais descontraída
Ezzat Mardini (o papel de Ali Suliman) havia sido nadador. Dedicado, sério, dos bons, dos melhores – chegou a pensar em concorrer na Olimpíada pela Síria. Não tinha rolado, mas ele se dedicou com afinco a treinar as duas filhas mais velhas, Sara e Yusra, na natação. (Abaixo delas havia ainda uma terceira garota, caçula, rapa do tacho, uns oito ou dez anos mais nova que Yusra, a do meio.)
O filme vai nos mostrando, em rápidas pinceladas, quem são as garotas Sara e Yusra. Pinceladas rápidas: bem no começo da narrativa, há um salto de quatro anos no tempo, e estamos em 2015, quando a instabilidade política, os conflitos armados, a guerra da Síria vão chegando cada vez mais perto do dia-a-dia da família Mardini.
De forma simplificada, é assim: Yusra é focada, centrada, aplicada; CDF, a gente dizia, nos anos 60 e 70 – nem sei se as gerações mais novas conhecem o termo. Sara é mais cabeça fresca, mais festeira, mais descontraída.
Isso aí é uma simplificação, um reducionismo tosco. Veremos que a personalidade de Sara é bem mais complexa do que isso. Desde bem o início mostra-se que ela, muito mais que Yusra, tem curiosidade sobre o que está acontecendo ao redor dela, no país, no mundo.
Yusra é interpretada por Nathalie Issa; Sara, por Manal Issa. O sobrenome comum parece ser absoluta e mera coincidência – Nathalie é libanesa, de dezembro de 1998; Manal é descendente de libaneses, nascida no interior da França, em 1992.
As duas jovens atrizes estão ótimas, maravilhosas.
Para fugir do inferno da guerra, uma viagem infernal
É muito bem elaborado, no roteiro, a coisa de a violência, a guerra virem chegando perto da família Mardini. A sequência em que as garotas estão nadando em uma belíssima piscina oficial coberta, e um bombardeio vem chegando, é extraordinariamente bem realizada.
Me impressionou muito essa coisa de a violência vir chegando perto do bairro da família. O cotidiano dos Mardinis que o filme mostra no início é de fato de uma família classe média de qualquer cidade ocidental – até que a guerra vai chegando perto.
O filme não se preocupa em ficar explicando para o espectador os acontecimentos históricos. Não precisava, não cabe ao filme fazer isso: os realizadores contam com que as audiências estão cansadas de saber que, nos últimos anos, a Síria é o epicentro de uma guerra sem fim.
E então as duas irmãs, com o apoio do primo D.J. Nizar (Ahmed Malek), começam a planejar a fuga do inferno.
A princípio, Ezzat, o baba, é contra: tentar entrar na Europa Ocidental como refugiado – concorrendo com centenas de milhares de pessoas do Oriente Médio, da África – traz todo tipo de risco, de perigo, de ameaça.
A situação na Síria vai ficando cada vez mais infernal – e o baba, homem bom, pai abnegado, não tem mais como se opor. Pede dinheiro emprestado como pode, e entrega para as filhas uma pequena fortuna em euros.
Começa o segundo ato, o segundo movimento. É o mais longo do filme, ocupa aí eu diria que uns dois terços dos 134 minutos de duração – e é extremamente doloroso de se ver.
Forma-se forte solidariedade entre os que fogem
Algumas características chamam muito a atenção, nesse que é o trecho mais longo do filme, o miolo, o segundo movimento da sinfonia. Uma delas é o fato de que muitos dos que fogem de seus infernos rumo à Europa Ocidental são da classe média, gente que vivia bem, que estudava – e que tinha muito dinheiro na mão, para pagar os diferentes tipos de coiotes, ali chamados de “smugglers”, contrabandistas.
Sara, Yusra, seu primo Nizar – um estudante de engenharia mecânica –, todos falam bem o Inglês. Assim como Emad (James Krishna Floyd), o afegão, ou Shada (Nahel Tzegai), a jovem da Eritréia que quer chegar com o filho bebê ao Reino Unido.
Não são camponeses miseráveis, trabalhadores manuais sem treinamento algum. São gente de classe média, com dinheiro no banco – como aqueles parentes e amigos que cada um de nós conhece bem, que deixa de lado seu diploma de Engenharia ou Direito neste triste país de Terceiro Mundo para lavar pratos ou privadas de ricos no Primeiro.
Outra característica é a solidariedade, a fraternidade, a união entre os desesperados candidatos ao status de refugiados.
Frank Capra, o mais humanista dos diretores de cinema, ele mesmo um emigrante, que deixou sua Sicília natal aos seis anos de idade quando a família decidiu fazer a América, aplaudiria de pé o trabalho da moça Sally El Hosaini em criar aquele ambiente de solidariedade entre aqueles infelizes seres humanos forçados a abandonar sua terra natal.
A terceira característica especialmente impressionante é o brilho com que foram realizadas as dramáticas sequências em que um grande grupo de pessoas se aglomera num frágil, absurdo bote inflável na tentativa de chegar da Turquia à Grécia – e portanto à Europa.
É muito, mas muito, mas muito impressionante o talento, o brilho com que aquelas sequências foram pensadas, ensaiadas, filmadas, montadas.
Olha, pode até parecer exagero, mas é algo assim tão brilhante quanto a sequência inicial de O Resgate do Soldado Ryan/Saving Private Ryan, a obra-prima de Steven Spielberg de 1998 que nem tenho coragem de rever para escrever sobre e botar aqui neste site.
Sara foi presa, acusada de “contrabando de pessoas”
As Nadadoras é o segundo longa-metragem de Sally El Hosaini. A moça nasceu em 1976 no interior do País de Gales, filha de uma galesa e um egípcio; passou parte da infância no Cairo, mas fez os estudos do básico no País de Gales. Antes de se dedicar ao cinema, deu aula de Literatura Inglesa em um colégio de moças no Iêmen e trabalhou para a Anistia Internacional.
Seu primeiro longa-metragem – com roteiro original escrito por ela –, My Brother the Devil, de 2012, foi sobre dois irmãos adolescentes, filhos de imigrantes egípcios, enfrentando os perigos de uma Londres tomada por gangues de jovens. O filme foi muito bem recebido pela crítica, participou de vários festivais mundo afora e recebeu 10 prêmios, fora outras 16 indicações. Em 2014, Sally El Hosaini foi escolhida por Danny Boyle, de Quem Quer Ser Um Milionário?, para ser um dos dois diretores de uma série de que foi um dos criadores, Babylon, co-produzida pelo Channel 4 britânico e pela Sundance TV.
Vou registrar aqui as informações que aparecem ao final do filme, antes dos créditos finais. Acho que elas são importantes demais. Claro que, de alguma maneira, são spoilers; assim, se algum eventual leitor que não viu ainda o filme chegou até aqui, não deve ler o que vai abaixo. (Na foto acima, Sara e Yusra no lançamento do filme no Festival de Toronto.)
“O resto da família Mardini atravessou o mar para a Europa mais tarde, naquele ano (2016). Eles agora vivem em Berlim.
“Sara Mardini voltou a Lesbos para ajudar os refugiados que chegam a cada dia.
“Yusra Mardini competiu na Olimpíada de Tóquio de 2020. Ela escolheu nadar pela Equipe Olímpica de Refugiados.
“Ela é atualmente uma Embaixadora da Boa Vontade da ACNUR (a agência das Nações Unidos para acolhimento de refugiados) e uma voz dos refugiados de todas as partes do mundo.
“Em 2018, Sara e outros colegas foram presos pelas autoridades gregas acusadas de ‘contrabando de pessoas’ por ajudar refugiados em Lesbos.
“A Human Rights Watch classificou as acusações de ‘motivadas politicamente’ e a Anistia Internacional disse que elas são ‘injustas e sem base’. Se for condenada, ela terá que cumprir 20 anos de prisão.
“5,7 milhões de sírios se transformaram em refugiados desde 2011.
“Há cerca de 30 milhões de refugiados em todo o mundo. Metade tem menos de 18 anos.”
Como se vê, quando o filme foi lançado, em 2022, a Justiça grega ainda não havia julgado Sara Mardini pela acusação absurda de participar de “contrabando de pessoas”. Em entrevistas para divulgar o lançamento de As Nadadoras, Yusra Mardini e a diretora Sally El Hosaini disseram ter a esperança de que o caso de Sara chamasse a atenção da opinião pública mundial. A Anistia Internacional reuniu milhares de assinaturas em uma petição pela liberdade de todos os acusados.
Sara passou cerca de 100 dias detida na Grécia; foi solta sob fiança, em dezembro de 2018.
Em janeiro de 2023, um tribunal grego anulou as acusações contra 24 trabalhadores humanitários da organização não-governamental Emergency Response Center International (ERCI), que atuou na ilha de Lesbos, de 2016 a 2018 – entre eles Sara Mardini. A decisão dos juízes foi baseada na existência de erros no indiciamento e porque algumas acusações haviam prescrito. Ainda assim, os voluntários não foram completamente inocentados e deveriam continuar sob investigação pelas autoridades gregas.
Mundo doido.
Anotação em agosto de 2023
As Nadadoras/The Swimmers
De Sally El Hosaini, Reino Unido-EUA, 2022
Com Nathalie Issa (Yusra Mardini),
Manal Issa (Sara Mardini),
Ahmed Malek (Nizar, o primo), Matthias Schweighöfer (Sven, o treinador alemão), Ali Suliman (Ezzat Mardini, o pai), James Krishna Floyd (Emad. o refugiado afegão), Nahel Tzegai (Shada, a refugiada da Eritréia), Victoria Valcheva (Kostana), Roderick Hill (Viktor), Dritan Kastrati (Vadim)
Argumento e roteiro Sally Dl Hosami, Jack Thorne
Fotografia Christopher Ross
Música Steven Price
Montagem Iain Kitching
Casting Shaheen Baig
Desenho de Produição Patrick Rolfe
Figurinos Molly Emma Rowe
Produção Tim Bevan, Tim Cole, Eric Fellner, Ali Jaafar, AZ Celtic Films, Working Title Films. Distribuição Netflix.
Cor, 134 min (2h14)
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