Alemanha, Ano Zero / Germania Anno Zero

Nota: ★★★☆

(Disponível no YouTube em 10/2023.)

Alemanha, Ano Zero, que Roberto Rossellini lançou em 1948, é um dos filmes mais tristes, mais desesperançados que já vi.

Tudo é péssimo, dificílimo, impossível, na vida das famílias alemãs logo após o final da Segunda Guerra Mundial. Tudo é desolação, falta, privação, em meio aos prédios em ruínas após os meses de bombardeios dos Aliados.

As muitas, muitíssimas tomadas das ruínas – filmadas in loco, em Berlim – são fortíssimas, acachapantes, apavorantes.

A família do protagonista da história, o garoto Edmund (o papel de Edmund Moeschke), de uns 12, 13 anos, mora amontoada com diversas outras em um edifício destruído pela metade.

Não há nenhum tipo de saída à vista. Não há luz alguma no final do túnel. É só desesperança.

Alemanha, Ano Zero é a terceira parte da que é chamada de Trilogia da Guerra de Rossellini. E consegue ser um filme ainda mais desolador que o primeiro, Roma, Cidade Aberta, lançado em outubro de 1945, poucos meses após a rendição da Alemanha. Roma, Cidade Aberta narra a resistência de um grupo de italianos contra a ocupação nazista da cidade milenar entre setembro de 1943 e julho de 1944. Ali havia a ameaça permanente da prisão dos resistentes pela Gestapo – e prisão significava as mais bárbaras torturas imagináveis. Mas havia luta, e havia a expectativa de vitória. Basicamente o mesmo pode-se dizer do segundo filme da trilogia, Paisà, de 1946, sobre a campanha ela liberação da Itália do fascismo, entre julho de 1943 até quase o final de 1944.

Para o garoto Edmund e sua família, depois do fim da guerra, não há expectativa de nada. É só desesperança.

Além de expor a duríssima situação histórica, social, da Alemanha em ruínas no pós-guerra, o filme tem um toque pessoal do realizador que ajuda a dar a ele essa sensação geral e absoluta de desconsolo, desesperança. Os créditos iniciais, em que é dito que o filme foi “idealizado, produzido e dirigido por Roberto Rossellini”, concluem com esta frase, acima da assinatura do autor: “Questo film è dedicato alla memoria di mio figlio Romano”.

Marco Romano Rossellini era o mais velho dos sete filhos que o realizador teria com três mulheres diferentes. Filho de Marcella De Marchis, tinha apenas 9 anos de idade quando morreu de peritonite em agosto de 1946, dois anos, portanto, antes do lançamento de Alemanha, Ano Zero.

Assim, ao realizar este filme Rossellini estava sob o impacto de uma das piores dores que pode haver no mundo, a perda de um filho.

Um filme que dá absoluta atenção aos detalhes

O roteiro é de Roberto Rossellini, “baseado em uma idéia de Basilio Franchina”. Eis a sinopse da trama no Guide des Films de Jean Tulard:

“Na Alemanha devastada do pós-guerra, uma família está à deriva: pai doente, filho que se esconde por ter sido da SS, filha que se prostitui. Apenas Edmund, uma criança, parece se acomodar com a miséria de seu tempo: ele assegura assim a subsistência dos seus. Mas, sob a influência de um professor nazista, ele (aqui o Guide dá uma informação que é um grande spoiler). Depois ele perambula pelas ruas, entre os destroços, e acaba (mais um spoiler: a sinopse revela o que acontece na última sequência do filme).”

A sinopse do Petit Larousse des Films – um guia que apresenta ótimas sinopses, bem escritas – praticamente repete as do Guide de Jean Tulard:

“Nas ruínas de Berlim do imediato pós-guerra, sob ocupação aliada, o jovem Edmund provê, por diversos tráficos, as necessidades de um pai enfermo, um irmão mais velho ex-SS que se esconde, uma irmã quase prostituta. Aconselhado por um antigo professor nazista, Edmundo…”

Assim como o Guide, o Larousse entrega o final.

Já que usei as sinopses dos dois guias, transcrevo também as considerações que eles fazem sobre o filme.

O Larousse diz: “Na linha do neo-realismo de Rome, Ville Ouverte e Paisà, Rossellini descreve o calvário de uma criança jogada nas ruas, vítima dos efeitos da guerra e da ideologia nazista. Edmund é a vítima de uma situação que ele não pode compreender como a inconsequência e a imaturidade dos adultos. Dando a mesma importância a cada detalhe, tanto nas notas fortes quanto nas fracas, a direção eleva a observação do cotidiano mais sórdido ao nível de uma alegoria crística.”

Não vi nada relativo a Cristo no filme, mas a avaliação do Larousse me parece bem boa. É isso mesmo: Alemanha, Ano Zero é um filme que dá absoluta atenção a detalhes – e cada vez mais me parece que são os pequenos detalhes que fazem um grande filme.

O Guide des Films diz:

“O tema deste filme é de ordem sociológica? Sim, porque é uma observação da decomposição da sociedade alemã depois do esmagamento do nazismo. Mas o personagem de Edmund, (aqui vai uma palavra que é brutal spoiler, que naturalmente não reproduzo) e vítima, culpado e aparentemente incapaz de experimentar ou de manifestar um sentimento de culpabilidade (…), apresenta ao espectador uma questão que é de ordem ética: essa criança não paga com sua inocência explorada o mal desejado e aceitado por tantos outros? Este filme recebeu o primeiro prêmio e o prêmio de melhor roteiro no festival de Locarno de 1948.”

Imagens impressionantes, apavorantes

Transcrevo o verbete sobre o filme do britânico Film Guide da revista Time Out, embora ache que não consegui compreender muito bem o que ele quer dizer.

“Uma longa tomada de abertura através das ruínas de Berlim sob a ocupação em 1945 é ao mesmo tempo documentário e uma viagem alucinante por uma cidade da idade da pedra, a perfeita ilustração de que filme realista pode também forjar fantasia. Isso acende para a história de um garoto de 13 anos de idade que trabalha no mercado negro, vende souvenirs de Hitler por goma de mascar e que… (spoiler, spoiler). Um filme de terror que se recusa a provocar.”

Na minha opinião, as muitas tomadas dos prédios em ruínas – as da abertura e todas as demais, que ocupam boa parte dos 71 minutos de duração do filme – são impressionantes, apavorantes, difíceis de esquecer.

Só vim a ver o filme agora, depois de velho – e, por uma dessas coincidências de que é feita a vida, poucos dias depois de iniciada a guerra  pavorosa de Israel contra o Hamas, na represália aos brutais ataques terroristas perpetrados pelo grupo palestino no dia 7 de outubro de 2023.

Muitos, muitos anos antes eu havia visto tomadas bastante parecidas da Berlim em ruínas no filme A Mundana/A Foreign Affair – e elas me impressionaram demais. Jamais as esqueci. O filme é de 1948, exatamente o mesmo ano deste Alemanha, Ano Zero aqui. Quando escrevi sobre o filme de Billy Wilder depois de revê-lo, em setembro de 2013, já lá se vão dez anos, comecei o comentário assim:

A Foreign Affair, de Billy Wilder, no Brasil A Mundana, foi lançado em 1948, apenas três anos após o fim da Segunda Guerra. Nos créditos iniciais, aparece a seguinte frase: “A large part of this picture was photographed in Berlin”. A Foreign Affair foi um dos primeiros filmes que tiveram uma larga parte rodada em Berlim após o final da guerra. Talvez tenha sido até mesmo o primeiro. Está certíssimo de se orgulhar deste fato, a ponto de avisar o espectador nos créditos iniciais.”

As tomadas das ruinas de Berlim mostradas nos dois filmes são sem dúvida alguma impressionantes, acachapantes, inesquecíveis.

E é fantástico, incrível, como são parecidas com as que vemos hoje na TV e nas fotos dos jornais das cidades na Faixa de Gaza em ruínas pelos bombardeios israelenses.

São imagens que ameaçam a nossa esperança – quem sabe nossa ilusão – de que quem sabe o ser humano não seja, afinal, uma invenção que deu errado.

No auge da Guerra Fria, o maravilhoso comunista Pete Seeger escreveu a canção que a alemã antinazista Marlene Dietrich – que aliás interpreta a personagem a que se refere o título brasileiro do filme de Billy Wilder – gravou em três línguas diferentes, inglês, alemão e francês, e que, no estribilho, faz a pergunta: “Oh, when will they ever learn?”

Passaram-se seis décadas, e não aprendemos nada.

Será que vai dar tempo de a humanidade aprender, antes que o planeta se torne definitivamente inabitável?

Anotação em outubro de 2023

Alemanha, Ano Zero/Germania Anno Zero

De Roberto Rossellini, Itália-França-Alemanha, 1948

Com Edmund Moeschke (Edmund Köhler, o garoto),

e Ernst Pittschau (Herr Koehler, o pai), Ingetraud Hinze (Eva, a irmã), Franz-Otto Krüger (Karl-Heinz, o irmão), Erich Gühne (o professor), Hans Sangen (Herr Rademaker), Babsi Schultz-Reckewell (a filha de Rademacher), Karl Krüger (o médico), Alexandra Manys (a amiga de Eva)

Roteiro Roberto Rossellini

Baseado em uma idéia de Basilio Franchina

Diálogos Roberto Rossellini, Carlo Lizzani, Max Colpet. Versão italiana Sergio Amidei

Fotografia Robert Juillard       

Música Renzo Rossellini

Montagem Eraldo Da Roma

Direção de arte Piero Filippone

Produção Roberto Rossellini, Tevere Film, SAFDI.

Union Générale Cinématographique (UGC). Deutsche Film.   

P&B, 71 min (1h11)

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