O Salário do Pecado / The Naked Street

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube.)

Não é uma bela sociedade, um belo país com instituições respeitáveis o que é mostrado em The Naked Street, no Brasil O Salário do Pecado, uma produção da United Artists de 1955 hoje um tanto – ou bastante – obscura. Muito, muitíssimo ao contrário. É uma realidade de deixar com muita vergonha os americanos que acham que o American Way of Life e os United States of America são a melhor coisa do mundo.

Com muita vergonha – e/ou muita raiva.

O diretor não tem fama, reconhecimento. Jamais tinha ouvido falar em Maxwell Shane. Mas o filme tem no elenco Farley Granger, de dois grandes filmes de Alfred Hitchcock, Festim Diabólico/Rope (1948) e Pacto Sinistro/Strangers on a Train (1951), e de um filme de outro grande mestre, Luchino Visconti, Sedução da Carne/Senso (1954).

Tem ninguém menos que o gigante Anthony Quinn – e, diabo, confesso que não consigo entender por que motivos marqueteiros o nome de Farley Granger vem antes do de Anthony Quinn nos créditos iniciais e nos cartazes do filme, já que este último tinha uma filmografia muito maior que o outro, na época do lançamento do filme, era no mínimo, no mínimo tão famoso quanto, e seu papel é ainda mais importante do que o do outro.

(Vai um detalhinho interessante aí. Uma coincidência incrível. Como já foi dito, Farley Granger foi escolhido para estrelar um filme de Luchino Visconti, e isso, cacete, conta muitos pontos para ele. Exatamente no mesmo ano, 1954, um ano antes de os dois se encontrarem neste The Naked Street aqui, Anthony Quinn também trabalhou na Itália, com outro dos maiores cineastas da História: ele foi Zampano, o saltimbanco que compra por algumas liras e alguns quilos de comida a Gelsomina interpretada por Giulietta Masina no filme do marido dela, Federico Fellini, A Estrada da Vida/La Strada, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.)

Bem. Mais ainda do que ter Anthony Quinn e Farley Granger, um ano depois de terem atravessado o Atlântico para trabalhar sob a direção de um mestre italiano, este The Naked Street tem Anne Bancroft.

Anne Bancroft! Sete anos antes de impressionar o mundo inteiro no papel da mulher que, na vida real, domou a fera Helen Keller e transformou as duas em case importante no tratamento de crianças cegas e surdas. em O Milagre de Anne Sullivan/The Miracle Worker (1962). Doze anos antes de mostrar as coxas maravilhosas e seduzir o filho do casal de amigos em A Primeira Noite de um Homem/The Graduate (1967). Trinta e dois anos antes de deixar apaixonados todas as pessoas que amam livros e literatura ao interpretar a escritora americana avançada, liberal, que se corresponde com um livreiro inglês todo sisudo, circunspecto, em Nunca te Vi, Sempre te Amei/84 Charing Cross Road (1987).

Anna Maria Louise Italiano, nascida no Bronx, Nova York, em setembro de 1931, não tinha ainda completado 24 ridículos aninhos de idade quando interpretou a moçoila Rosalie Regalzyk, filha de imigrantes do Leste Europeu criada no Brooklyn, Nova York – e, meu Deus do céu e da Terra, como era linda!

Linda, jovem demais – mas não uma iniciante. De forma alguma. Anne Bancroft começou muito cedo, em 1951, e trabalhou feito louca. Desde a estréia e até este The Naked Street, esteve em nada menos 21 séries de TV e/ou filmes– inclusive um ao lado de uma outra promissora jovem atriz, Marilyn Monroe, no fascinante Almas Desesperadas/Don’t Bother to Knock (1952).

A jovem irmã do gângster fica grávida

A jovem Rosalie Regalzyk, a personagem de Anne Bancroft, fica grávida – e esse fato, a rigor, é o que desencadeia tudo o que virá a seguir na trama criada por Leo Katcher e roteirizada por ele e pelo diretor Maxwell Shane.

É também uma mostra de coragem dos realizadores. No cinema americano, em especial dos anos 1930 aos 1950, em que esteve em vigência o Código Hays, o conjunto de normas de autocensura aceito pelos estúdios, não era usual falar em jovens que tinham relações sexuais antes do casamento e ficavam grávidas.

Mais ainda: a virgindade das moças era uma questão importantíssima. Moça tinha que casar virgem, e pronto – era uma lei que todo mundo tinha que respeitar. Nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil. Esse absurdo só cairia em desuso em meados dos anos 1960, com a revolução sexual, o feminismo, a contraculturas, a mudança ampla geral e irrestrita dos costumes.

Rosalie era a única irmã de Phil Regal, o protagonista da história, interpretado por Anthony Quinn. Ter mudado o sobrenome para tirar dele o traço de Europa Oriental não chegava a ser crime, mas, se fosse, seria o menorzinho da imensa, gigantesca série de crimes praticados por Phil Regal. O cara era um gângster violento, sanguinário, sem um pingo de piedade, que mandava os capangas executarem seus inimigos ou os empregados deles sem pestanejar – o filme começa com dois empregados de Phil botando gasolina em um sujeito e acendendo um fósforo. Aquele tipo de gângster bem comum nos policiais de Hollywood – e na vida real -, que eram conhecidos dos policiais e dos promotores públicos, mas não deixavam rastros, pistas que pudessem levá-los à cadeia.

Criminoso impiedoso, Phil, no entanto, babava-se por sua mãe, uma senhora deliciosa, afável, simpática, ótima cozinheira, a mãe perfeita (o papel de Else Bäck) e por sua jovem irmã Rosalie. Todos os domingos, religiosamente, saía de seu riquíssimo apartamento em Manhattan para jantar com a mãe e a irmã no Brooklyn, onde havia crescido e iniciado sua extremamente bem-sucedida carreira de crimes.

No primeiro domingo mostrado no filme, Phil fica sabendo que Rosalie havia abandonado a faculdade que ele pagava para ela. E, por um vizinho das duas, é informado de que ela havia visitado um “médico de bebês”.

A moça não demora nada a contar que, sim, está grávida, e o pai é Nicky Bradna (o papel de Farley Granger).

Phil sabia quem era Nicky Bradna. – “Aquele punk!”, diz ele, com uma expressão de ódio e desprezo assim que ouve o nome.

Ao longo dos 84 minutos, Phil irá diversas vezes se referir a Nicky – inclusive para o próprio rapaz – como punk.

(Detalhinho interessante: nos seus verbetes sobre “punk”, tanto o Dictionary of English Language and Culture da Longman quanto o Cambridge Learner’s Dictionary primeiro falam da acepção mais moderna, “um movimento entre certas pessoas jovens dos anos 1970 e 1980 que se opunham aos valores da sociedade baseada em dinheiro”, etc, etc, para só depois registrar que, na gíria americana, punk é “a bad young man”.)

O gângster consegue tirar da prisão o namorado da irmã

Nicky Bradna era um rapaz bonito – Farley Granger tinha um belo rosto –, e isso seguramente deve ter atraído a jovem Rosalie. Mas ela parecia ser uma moça não propriamente esperta, perspicaz, safa, e o irmão bandido dela tinha toda razão: Nicky era mesmo um punk no sentido original da palavra, e não no dos jovens roqueiros ou fãs de rock dos anos 70 e 80. Um vagabundinho, um não-presta.

Naquele domingo em que Phil descobre que a irmã está grávida de Nicky, fica sabendo que ele está preso no famosérrimo presídio Sing-Sing, e no corredor da morte: havia sido condenado à cadeira elétrica por ter assassinado um homem.

O filme mostra todos os movimentos de Nicky que culminaram no crime. Ele foi até o bar de um conhecido, pediu um dinheiro emprestado, porque iria sair com uma moça bacana e estava duro. O comerciante diz que sente muito, mas não vai emprestar mais dinheiro para ele. Nicky passa um tempinho conversando com uma senhorinha funcionária do bar, antes de sair para a rua. Na rua, vê uma loja de bebida, vê o dono guardando a féria do dia atrás de algumas garrafas na prateleira, antes de baixar as portas – e bate lá, pede para o comerciante atendê-lo, ele precisa de uma bebida.

O comerciante – veremos depois que se chama Barricks (Harry Tyler) – faz a besteira de receber o punk. Que logo tenta roubar o dinheiro colocado atrás de garrafas na prateleira. Barricks reage, o punk o atinge com um canivete. O último golpe Nicky dá já na calçada, e é visto por um outro comerciante vizinho e um motorista que passava por ali naquele momento.

E aí temos o que me parece ser o cerne da história.

A polícia investiga o assassinato, encontra as duas testemunhas, as testemunhas identificam Nicky, há o julgamento, ele é condenado à morte.

Quando fica sabendo de tudo isso – que a irmã está grávida, e portanto precisa casar com o pai da criança, para que não haja escândalo, para que tudo fique direitinho –, Phil decide que o jeito é libertar o punk.

Contrata o criminalista mais caro do Brooklyn, um tal Michael J. Flanders (James Flavin). Manda seus capangas torturarem e ameaçarem os dois homens que haviam testemunhado no julgamento, até que eles concordem em prestar novos depoimentos, negando o que haviam dito antes. E ainda suborna a senhorinha do bar visitado por Nicky antes do crime, para que ela diga que o punk tinha ficado conversando com ela até tantas horas da noite – um álibi perfeito.

O filme mostra um sistema dominado pela corrupção

Avancei bastante no relato da trama do filme, é verdade – mas o que narrei acontece na primeira terça parte dos 84 minutos de duração. Chequei agora, e é isso mesmo. Todos esses fatos que relatei acontecem até os 22 minutos do filme. Não são, portanto, a rigor, spoiler.

E são o cerne do filme.

The Naked Street é um filme que mostra uma sociedade nada, nada, nada rósea, maravilhosa, um país de instituições firmes. Muitíssimo ao contrário. Mostra que, em Nova York, a maior metrópole dos Estados Unidos da América, o país da democracia, da liberdade, da Justiça igual para todos, o dinheiro compra tudo, corrompe tudo, e pode até mesmo alterar decisões da Justiça.

Não é pouca coisa, não.

Sobre a imprensa, Millôr Fernandes disse a frase definitiva: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. O cinema não é uma coisa só, são muitas – é indústria, arte, diversão, entretenimento, fonte de prazer, escapismo. E é também um dos mais poderosos meios de expressão dos problemas, dos erros, das chagas dos países, das sociedades, das instituições.

Um dos papéis do cinema é expor questões e fazer as pessoas refletirem sobre elas.

Diretores importantes, entre eles alguns dos maiores, mais importantes de todos, fizeram filmes para mostrar as mazelas da sociedade americana. Elia Kazan, Arthur Penn, Steven Spielberg, Mike Nichols, Alan J. Pakula, Stanley Kramer, para citar só os primeiros que me vêm à mente.

Maxwell Shane não tem um milésimo da importância desses senhores citados aí – mas fez um filme que expõe, corajosamente, uma América feia, horrorosa, dominada pela corrupção.

O diretor foi jornalista, e colocou um em seu filme

Maxwell Shane. Quem, afinal, foi esse senhor?

O Cinemania, a obra mais abrangente, mais completa sobre cinema que conheço, somente suplantada pelo IMDb, não traz Maxwell Shane.

The International Dictionary of Films and Filmmakers – Directors também não.

Ahá! Mas Jean Tulard e Rubens Ewald Filho registram a existência dele em seus, respectivamente, Dicionário de Cinema – Os Diretores e Dicionário de Cineastas. Diz dele o mestre francês:

“Ex-jornalista e roteirista, rodou alguns de seus roteiros com a ajuda de pequenos orçamentos; citemos O Salário do Pecado, com Anthony Quinn, filme aprazivelmente pobre. Mas em seguida Shane deixou-se envolver pela televisão e sumiu para o cinema.”

E eis o que diz dele o santista que o país conheceu como o sujeito que sabia tudo, absolutamente tudo sobre filmes e pessoas do cinema nas transmissões das entregas do Oscar, e que, na redação do Jornal da Tarde, onde ele era responsável pela seção “Filmes de hoje na TV”, nós chamávamos carinhosamente de Rubinho:

“Shane, Maxwell (1905-1983). Roteirista e produtor americano, nascido em 26 de agosto em Paterson, Nova Jersey. Foi jornalista e publicista, escrevendo para Rádio e depois para Cinema. Dirigiu ocasionalmente.”

Os dois dicionários, o de Jean Tulard e o do Rubinho, trazem os nomes de cinco filmes dirigidos por Shane. O que impressiona é que o camarada, embora pouco importante, dirigiu atores bons e importantes nesses cinco filmes. Trabalharam sob sua direção Tony Curtis, Vittorio Gassmann, Gloria Grahame e Edward G. Robinson. Algum talento ele tinha…

E foi jornalista…

Há um jornalista na trama deste The Naked Street, e é um personagem importante. Creio que o repórter Joe McFarland (interpretado por Peter Graves) seja um dos quatro personagens mais importantes da história, juntamente com o gângster Phil Regal, sua jovem e um tanto inocente demais irmã Rosalie e o punk Nicky Bradna.

Há jornalistas e jornalismo em muitos, muitos, muitos dos filmes americanos – e essa é uma bela característica. Talvez mais até que os cinemas de outros grandes países democráticos, como o Reino Unido, a França, a Itália, o cinema americano respeita e elogia a imprensa, e reconhece a imprensa livre como isso que de fato ela é: uma instituição sem a qual simplesmente não existe democracia.

O repórter Joe McFarland é o narrador da história. A primeira tomada após os créditos iniciais mostra um prédio com o nome New York Chronicle acima da porta de entrada, enquanto ouvimos a voz em off de Peter Graves-Joe McFarland: – “Esta é uma história real. E sei bem disso. Eu não apenas cobri para o meu jornal – eu me tornei parte disso. Você certamente leu sobre Phil Regal nos jornais. Um chefe do submundo – era como o chamavam. Mas a verdadeira história nunca foi contada. Ninguém poderia contá-la até agora… e continuar vivo.”

E aí vemos dois capangas de Phil Regal botando fogo no sujeito que incomodava o chefe do submundo, o racketeer king…

“O Rei da Extorsão” seria um título bem melhor

As palavras, as palavras…

Assim como “punk”, a palavra “racketeer” é usada muitas, várias, diversas vezes neste The Naked Street – em geral para se referir a Phil Regal, do ponto de vista do repórter Joe McFarland ou do promotor de Justiça que sabe de seus crimes e só espera ter alguma prova, alguma evidência, alguma testemunha para poder condená-lo.

A expressão “racketeer-king” está em um cartaz do filme da época de seu lançamento.

Racketeer, explica o Dictionary of English Language and Culture, é alguém que usa “forma desonesta de ganhar dinheiro, como por exemplo ameaçando pessoas ou vendendo para elas bens que são inúteis ou ilegais”. Extorsionário. Bandido, em suma.

Na França, o título do filme foi Le Roi du Racket – e por causa disso aprendi no Le Robert de Poche que o Francês adotou esse anglicismo. Racket, explica Le Robert, é “extorsão de dinheiro ou de objetos por chantagem, intimidação ou terror”.

O Rei da Extorsão.

Me parece um título melhor que o original – e do que o escolhido pelos exibidores brasileiros e portugueses. O que, diacho, querem dizer os realizadores com The Naked Street? Assim é a vida nas ruas nuas e cruas?

E O Salário do Pecado? Que pecado? Que salário?

Bem, mas aí talvez seja o meu lado idiota da objetividade falando…

Leonard Maltin deu ao filme 2 estrelas em 4 e sintetizou tudo o que tinha a dizer sobre ele em uma frase curta: “Elenco capaz desperdiçado em fábula branda sobre repórter expondo um sindicato do crime”.

O livro The United Artists Story não fala muito bem deste produto do estúdio: “A única novidade de que The Naked Street poderia se vangloriar era que, em vez do usual racketeer italiano, o principal bandido neste drama de território de gangues era de origem eslava. A base do roteiro de Maxwell Shane e Leo Katcher (história de Katcher), no entanto, eram os diversos filmes de gângster feitos antes dele, em especial Scarface (1932). O famoso bandido Phil Regal (nascido Regalzyk), interpretado de forma vociferante por Anthony Quinn, é absolutamente apaixonado pela sua mãe e irmã (Else Neft e Anne Bancroft, em papéis convencionais). Quando a irmã fica grávida com um trapaceirinho, Regal faz com que ele se case com ela…”

E aqui o livro faz um resumo da trama, a esta altura desnecessário aqui. E completa: “O diretor Maxwell Shane expôs muito da implausibilidade da trama ao adotar uma abordagem semi-documental.”

Não achei que a trama tenha implausibilidades.

Já Jean Tulard gostou de Le Roi du Racket. Os críticos franceses costumam mesmo adorar o cinema da época de ouro de Hollywood. Diz o mestre Tulard em seu fantástico Guide des Films: “Um honesto filme de gângsters, encenado vigorosamente.”

Anotação em novembro de 2023

O Salário do Pecado/The Naked Street

De Maxwell Shane, EUA, 1955

Com Anthony Quinn (Phil Regal),

Farley Granger (Nicky Bradna),

Anne Bancroft (Rosalie Regalzyk),

Peter Graves (Joe McFarland)

e Else Bäck (Mrs. Regalzyk), Sara Berner (Millie), Jerry Paris (Latzi, o grande amigo de Nicky), Mario Siletti (Cardini, testemunha do crime), James Flavin (Michael J. Flanders, o advogado bambambã), Whit Bissell (Blaker), Joe Turkel (Shimmy), Joyce Terry (Margie), Harry Tyler (I. Barricks, da loja de bebidas), Jerry Hausner (Louie)

Roteiro Maxwell Shane, Leo Katcher

Baseado em história de Leo Katcher 

Fotografia Floyd Crosby

Música Ernest Gold, Emil Newman  

Montagem Grant Whytock

Desenho de podução Ted Haworth    .

Produção Edward Small, United Artists.

P&B, 84 min (1h24)

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Título na França: “Le Roi du Racket”. Em Portugal: “O Salário do Pecado”.

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