Quando a Mulher Erra / Stazione Termini

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 1/2023.)

Um “case”. A expressão muito usada no ambiente de negócios, em propaganda, marketing, ficou rodando na minha cabeça depois que vimos Stazione Termini, o filme de 1953 que o grande Vittorio De Sica realizou com os astros Jennifer Jones e Montgomery Clift, e comecei a ler sobre ele.

Mais que um filme, Stazione Termini é um case.

Fui atrás de uma definição, e agora tudo é muito fácil de se achar. “Case: uma experiência marcante que merece ser estudada”.

A expressão é usada em geral para experiências de sucesso. Mas o filme é um case para estudo por parte de quem gosta muito de cinema – os estudantes, os profissionais, os cinéfilos apaixonados – não por ser um sucesso marcante, mas, ao contrário, por mostrar como uma obra artística pode ser desvirtuada, profanada, conspurcada por negociantes inescrupulosos.

O cinema, afinal, é a arte que mais tem seu lado negócio, business, indústria.

De Sica filmou no ambiente real da Roma que se recompunha poucos anos após o fim da Segunda Guerra Mundial; filmou fora de estúdio, usando iluminação menos artificial possível e colocando em cenas muitos extras não profissionais. Ou seja, seguindo exatamente alguns dos principais mandamentos do neo-realismo, o movimento de que havia sido um dos criadores, com filmes que se tornariam clássicos, antológicos – Vítimas da Tormenta (1946), Ladrões de Bicicletas (1948), Milagre em Milão (1951), Umberto D. (1952).

O businessman inescrupuloso que meteu as patas sujas no filme foi o lendário David O. Selznick, um dos mais poderosos produtores da história do cinema, o sujeito que importou para Hollywood Alfred Hitchcock e Ingrid Bergman.

Para a exibição de Stazione Termini nos Estados Unidos, Selznick cortou 27 minutos do filme original, incrustou nele novos close-ups de Jennifer Jones, sua mulher, feitos por um diretor de fotografia de sua escolha, Oswald Morris, com uso de iluminação de estúdio, completamente diferente da utilizada por De Sica e seu cinematógrafo G.R. Aldo, acrescentou também clips musicais, e inventou o título Indiscretion of an American Wife.

Este último crime aí, dar o título de Indiscrição de uma Esposa Americana, também é hediondo – mas os distribuidores brasileiros cometeram um parecido, ao inventar o grotesco, patético, machista Quando a Mulher Erra.

A indecisão entre a fidelidade e o adultério

Depois de ver o filme, fiquei sabendo que a versão original de De Sica foi lançada em DVD na coleção Criterion – tida como uma das mais caprichadas, bem editadas que há, assim do mesmo nível dos lançamentos da francesa MK2. A versão que nós vimos – disponível, grátis que nem passeio em parque, no Cine Antiqua do YouTube – tem o logotipo da Criterion e ótima qualidade de imagem e som. Assim, dá para acreditar que essa versão seja mesmo a da Criterion, que recuperou o chamado final cut de De Sica, a edição final feito pelo cineasta e exibida na Itália, só que com as vozes originais dos dois atores principais, Jennifer Jones e Montgomery Clift. (Na versão original exibida na Itália, eles foram dublados, como é o costume lá – ela por Lydia Simoneschi, ele pór Giulio Panicali.)

Uma empresa que também promove lançamentos bem cuidados de filmes clássicos e/ou importantes, Kino Lorber, lançou em Blu-ray, na sua coleção KL Studio Classics, a versão original de De Sica e a versão adulterada de Selznick. Terminal Station & Indiscretion of an American Wife. Deve ser uma preciosidade para estudo nas escolas de cinema. Um crítico chamado Glenn Erickson publicou longo, detalhado, informativo texto sobre as duas versões – ou talvez fosse melhor dizer dois filmes diferentes – em um site chamado Trailers From Hell, em 2020. Vou transcrever alguns trechos do texto dele mais adiante, mas antes é necessário, naturalmente, fazer uma sinopse do filme de De Sica.

Stazione Termini é um retrato de uma mulher casada que se apaixona por outro homem e fica absolutamente indecisa sobre o que fazer. Se se entrega à nova paixão, ou se resiste a ela, aborta o que sente, esquece que aquilo aconteceu e toca a vida como se não tivesse acontecido nada. Se obedece ao seu desejo, ao seu coração, ou se segue o que manda a parte racional de seu ser.

A indecisão que tanta gente já teve na vida – a dúvida maldita, filha da mãe, doída como enfiar uma agulha no machucado feio, como a pior das torturas.

Vittorio De Sica filma a indecisão de uma mulher na sinuca de bico ao longo de 90 minutos mostrados praticamente em tempo real, um minuto de filme equivalendo a um minuto da vida real, sem corte, sem o alívio do fade out e fade in, esse magnífico dom que o cinema tem de dominar a passagem do tempo, pular as piores partes da história, evitar “a dor lenta e obscena”, como diria Eric Bogle

Fidelidade ao compromisso – ou o adultério. Stazione Termini é a indecisão em 24 quadros por segundo, ao longo de 90 minutos.

Um close-up que diz tudo e um pouco mais

Quando o filme começa, Mary Forbes está chegando ao prédio em que mora o homem por quem ela se apaixonou. Sobe as escadas apressadamente, e sua mão vai em direção à campainha…

A câmara do diretor de fotografia G.R. Aldo faz um close-up que diz tudo e um pouco mais. Junto da campainha há o nome do homem, o amante, Giovanni Doria. A mão que está para apertar o botão tem, bem visível, o anel de casamento.

Como são mesmo os votos? “Com este anel…”

“Com este anel ofereço a você o compromisso de uma união eterna. É o símbolo de uma fé eterna e de dedicação inabalável…”

Mary retira o dedo, abaixa a mão e desce o mais depressa que pode as escadas. Na rua, faz sinal para um táxi que não pára, faz sinal para outro que também não pára – e o destino põe diante dela um ônibus com as palavras “Stazione Termini”.

Veremos que Mary Forbes, uma senhora da Pensilvânia, havia deixado em casa o marido e a filhinha de 7 anos de idade para visitar em Roma sua irmã. Uns poucos dias antes deste em que a vemos não ter a coragem de apertar aquela campainha, ela e Giovanni Doria haviam se cruzado numa rua de Roma – e tinha sido amor à primeira vista. Coup de foudre, diriam os franceses. Tremor de terra, na bela definição do contista mineiro Luiz Vilela.

Na Stazione Termini, Mary pergunta sobre horário de trem para Milão, e se de lá ela poderia pegar um para Paris. O funcionário diz que há um para Milão dali a meia hora, às 19 horas – mas às 20h30 tem um que vai direto até Paris. Ela diz que tem pressa, vai comprar passagem para o das 19 horas. De um telefone público, liga para a irmã; ela não está, Mary pede para falar com o sobrinho, Paul, e pede a ele que providencie com a empregada que seja colocado o maior número de roupas dela possível dentro da mala maior – e será que Paul poderia levar a mala para ela, ali na Stazione Termini?

O espectador não ouve, mas seguramente o sobrinho pergunta o que está havendo, se há algum problema. – “Não, não, não aconteceu nada”, ela diz. – “Eu preciso pegar um avião em Paris. Vou telefonar para sua mãe assim que chegar lá.”

Em seguida, Mary vai ao balcão do Correio e tenta escrever um telegrama para Giovanni. Faz rascunhos – mas não se decide sobre o que dizer, ou como dizer.

Em segundo plano, gente humilde, o povo italiano

Ou seja…

Mary saiu da casa da irmã aquele dia com a intenção de ir até a casa de Giovanni – provavelmente para dizer a ele que iria voltar para casa, para o marido, para a filha. No momento de apertar a campainha, ficou em dúvida – teve medo de, lá dentro, não ter mais coragem de sair. E ali, naquele momento, de repente, decidiu que tinha que ir embora logo, o mais rápido possível, ou então sua decisão de optar pelo anel, pelo compromisso, pelo casamento que afinal não era ruim, de forma alguma, iria por água abaixo.

Dali a pouco Giovanni chega à estação. E teremos pela frente, quase em tempo real, a situação dramática, tristíssima, muitas vezes desconcertante, esquisita, desajeitada, ridícula de um casal que tem que conversar, discutir, decidir seu futuro no meio de uma gigantesca multidão.    E aqui faço uma confissão: enquanto via o filme, não compreendi direito suas qualidades. Exatamente porque De Sica e seu companheiro desde sempre Cesare Zavattini, o autor da história e do roteiro, usam e abusam de situações desconcertantes, esquisitas, desajeitadas, ridículas de um casal que precisa de um lugar sossegado para conversar – e está no meio da Stazione Termini, um dos lugares mais movimentados da grande metrópole!

Aquelas situações todas que impediam que Mary e Giovanni pudessem conversar me deixaram desconfortável, achando aquilo um tanto chato, um tanto forçado.

Algumas sequências parecem, de fato, um tanto forçadas, um tanto artificiais – como o envolvimento de Mary com a família do trabalhador pobre que está voltando da Inglaterra depois de perder o emprego em uma mina de carvão. Ou como toda a questão da polícia, que leva o casal até a presença do comissário (interpretado por Gino Cervi) ao encontrar os dois conversando e se beijando num vagão parado num canto menos movimentado da estação.

O que eu não percebi de imediato, enquanto via o filme, é que todo esse incômodo, esse desconforto, essa coisa “awkward” – esse é adjetivo mais apropriado – que cerca os dois amantes na agitação da Stazione Termini é absolutamente proposital. O diretor e os roteiristas (Luigi Chiarini & Giorgio Prosperi assinam a sceneggiatura do filme, depois de Cesare Zavattini) quiseram exatamente isso, me parece: que o espectador se sentisse incomodado por todos aqueles incômodos que impedem que Mary e Giovanni possam conversar direito, sem ser interrompidos a cada momento por todas aquelas pessoas. Os realizadores quiseram que o espectador sentisse nem que fosse um pouquinho do desconforto dos protagonistas da história.

E é com aqueles tipos todos que passam por perto dos personagens, que interferem na história deles, que De Sica e Zavattini fazem aquilo de que gostam, aquilo em que eram especialistas – retratar as pessoas comuns, a gente humilde, o povo italiano.

Em primeiro plano, a indecisão de uma mulher casada que se apaixonou por outro homem em um país estrangeiro – enquanto, em segundo plano, dois dos criadores do neo-realismo fazem o mais puro e melhor neo-realismo naquela co-produção com Hollywood, com dois dos mais belos astros de Hollywood naquele momento.

Enquanto Mary e Giovanni tentam conversar sobre o que será feito de suas vidas, os espectadores do mundo inteiro vêem um pouco do drama da família grande e sempre crescente do trabalhador que voltou da Inglaterra, os grupos de padres que vão para um ou outro lugar da Itália, a noiva vinda da cidade de Abruzzo que presenteia Giovanni com um docinho, os irmãozinhos que brigam e falam sem parar e incomodam as pessoas em volta, o ladrão falante do posto policial, o senhor triste que escreve um telegrama, a siciliana grávida…

Há bem umas duas dezenas, talvez três, desses tipos que aparecem na tela durante alguns poucos minutos – ou sequer isso. Gente do povo.

Claro que estragar a versão que seria apresentada nos cinemas do país mais rico do mundo, o maior mercado cinematográfico do mundo, não estava nos planos.

De Sica fez “um acordo com o diabo”

Nos Estados Unidos, o todo poderoso David O. Selznick tirou fora praticamente tudo isso, todas essas pessoas que povoam o filme e dão a ele as marcas do neo-realismo italiano. Concentrou-se na D.R., o discutir o relacionamento entre a americana infiel e o sujeito filho de mãe americana com pai italiano que se define como cem por cento italiano – até porque, na Itália, são os homens que mandam, e os homens até têm o direito de esbofetear a mulher que não é propriamente deles. (A mãe americana foi a forma de explicar os modos e o sotaque perfeitamente americanos de Montgomery Clift.)

Mais do que isso: no trailer produzido para as platéias americanas, Selznick vendeu a versão sensacionalista de que mulher de banqueiro americano foi flagrada com homem em um vagão de trem deserto e isso virou uma sensacional intriga policial que causou furor na Itália.

Um nojo.

“Esta é a história de um acordo com o diabo da indústria do cinema”, escreveu o crítico Glenn Erickson no texto sobre o lançamento do Blu-ray com os dois filmes, o original italiano e a maçaroca criada por Selznick para as platéias americanas. “Será que Vittorio de Sica não sabia que David O. Selzinick tentou interferir em The Third Man, de Carol Reed? Que, pouco antes, o produtor havia remontado Gone to Earth, de Powell & Pressburger, destruindo o trabalho dos realizadores? Selznick fez exatamente a mesma coisa com De Sica, num nível ainda mais humilhante.”

(No Brasil, os dois filmes citados são O Terceiro Homem, 1949, com Orson Welles e Joseph Cotten, e Coração Indômito, 1950, este também com Jennifer Jones, a esposa-fetiche de Selznick, a atriz que ele lutava para transformar na maior estrela de Hollywood. Tadinha – ela não tinha culpa de nada.)

“As provas estão aqui para que possamos examiná-las – ambas as versões do romance glamouroso/neo-realista, originalmente conhecido como Terminal Station (Stazione Termini). Talvez o fracasso (comercial, ele deve querer dizer) de Umberto D. tenha deixado o diretor precisando de um produtor, mas envolver-se com o intromissor David O. Selznick não era uma boa alternativa. Selznick providenciou os astros, e se envolveu pessoalmente na produção. A versão original de De Sica tem suas falhas, mas é um bom filme. Selznick tomou para si a tarefa de remontar e redublar o filme para os Estados Unidos, usando o título que na época parecia chamativo, Indiscretion of an American Wife.

“Como Jennifer Jones e Montgomery Clift são um casal incrivelmente atraente, a química potencial entre eles parecia ilimitada. Mas por que escalar o americaníssimo Clift como um italiano? Bem, ele deveria então ser meio italiano.”

E mais adiante:

“Sempre pensando em termos de criar um veículo para o brilho de Jennifer, Selznick assumiu o controle da versão americana de Stazione Termini e destruiu 27 minutos do filme. Jogou fora quase todas as vinhetas de De Sica focalizando outras pessoas na superpovoada estação ferroviária. Muitos pequenos trechos foram cortados, como quando Clift se vê diante das pessoas de uma festa de casamento (a noiva é Maria Pia Casilio, a empregada no filme Umberto D.) (…)

“Para devolver ao filme uma duração de longa-metragem, Selznick meteu lá (como um prólogo, no início da narrativa) uma sequência, “Outono em Roma”. Basicamente é um vídeo musical de Patti Page cantando a canção título (que não é ruim) em um apartamento de Manhattan. Foi dirigida por William Cameron Menzies com fotografia de James Wong Howe, mas mesmo assim é maçante. (…)

“Selznick fez Indiscretion ser lançado com um dos trailers mais aviltantes de todos os tempos. Manchetes falsas (e feias) de jornais deturpam grosseiramente o enredo do filme. O simples embaraço em um vagão de trem é transformado em um gigantesco caso policial e escândalo. Clift se desviando de um trem é falsamente transformado em um momento de erro como se fosse o fim de Anna Karenina. É de fato deprimente, e deve ter deixado doentes os pobres Jennifer Jones e Montgomery Clift.”

Me alonguei na transcrição de trechos do texto de Glenn Erickson, mas é que eu achei as informações e a avaliação dele muito importantes.

 

A Stazione Termini acabava de ser inaugurada

Antes de passar para outras opiniões sobre o filme, é preciso fazer dois ou três registros.

O primeiro é sobre o ator que, nos créditos iniciais da versão disponível no Cine Antiqua do YouTube (que é, creio, a da Criterion Collecion, ou seja, a versão restaurada do filme original de De Sica, mas com as vozes dos atores principais em inglês), aparece como Dick Beymer (na foto abaixo).

Dick Beymer faz Paul Stevens, o sobrinho de Mary, filho da irmã dela que estava morando em Roma – e ver a irmã, que não aparece na tela, é o motivo da viagem dela da Filadélfia até a Itália.

Paul, garoto aí de uns 15 anos, consegue rapidamente atender ao pedido da tia, feito de um telefone público da estação ferroviária – e acaba sendo o terceiro personagem mais importante da trama, o que mais tempo aparece na tela, depois dos astros Jennifer Jones e Montgomery Clift.

Pois bem: Dick Beymer tinha, em 1953, ano de lançamento do filme, 14 anos de idade, e este foi seu terceiro filme. Em 1961, com o nome completo, sem o apelido “Dick”, foi o Tony de West Side Story, aquela absoluta obra-prima. Tony, o chefe emérito da gangue dos americanos, que se apaixona por Maria, a irmã do chefe da gangue dos porto-riquenhos interpretada por aquela Natalie Wood de beleza ofuscante, absurda. Um ano depois, em 1962, Richard Beymer fez o papel central de As Aventuras de Um Jovem, no original Hemingway’s Adventures of a Young Man – um ambicioso filme do ótimo e sempre politicamente ativo Martin Ritt baseado em histórias autobiográficas de Ernest Hemingway. O adolescente Sérgio Vaz, que viu West Side Story um monte de vezes, viu também As Aventuras de um Jovem, na época do lançamento, ali por 1963. Depois disso eu não soube mais de Richard Beymer. Vejo agora que em 2017 ele trabalhou na série Twin Peaks: O Retorno – foi seu mais recente trabalho como ator. Fez carreira também como montador, roteirista e diretor.

Um segundo registro é sobre a estação ferroviária central de Roma em si, a Stazione Termini. A estação ficou pronta em 1950, dois anos antes do início da produção do filme. Ela substituiu uma anterior que havia começado a funcionar em 1874. As autoridades italianas começaram a planejar a construção da nova ainda em 1937, com a intenção de que ela ficasse pronta em 1942, quando deveria ser realizada uma Feira Mundial em Roma. Mas aí veio a Segunda Guerra Mundial, a feira não aconteceu, os planos de construção foram abandonados, e só retomados a partir do final da guerra, em 1945.

Todas as sequências passadas na Stazione Termini foram filmadas lá mesmo – e o filme tem esse componente de apresentar ao mundo a nova construção na cidade de mais de dois mil anos.

Boa parte das filmagens foi feita de madrugada, quando a estação estava fechada.

Mais um registro, bem rápdo: os créditos da versão disponível no Cine Antiqua dizem que os diálogos foram escritos por Truman Capote. O grande escritor afirmou, muitos anos depois, que escreveu os diálogos de apenas duas sequências do filme.

Formas muito diferentes de falar de infidelidade

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 para Indiscretion of an American Wife: “Melodrama túrgico passado na estação ferroviária de Roma, com Jones como a esposa adúltera que se encontra com o amante Clift para mais um agarro. A versão original de De Sica, de 87 minutos, intitulada Terminal Station, foi restaurada em 1983.”

Diacho, que baixaria essa frase de Maltin, “se encontra com o amante Clift para mais um agarro”. Bem, mas ele deve estar se referindo não ao filme de De Sica, mas à versão de Selznick…

Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, que acompanhava com cuidado o cinema europeu, escreveu o seguinte – aparentemente sobre a versão de 63 minutos, a de David O. Selznick: “Os temperamentos conflitantes do produtor, David O. Selznick, do diretor, Vittorio De Sica, e dos astgros, Jennifer Jones (à época senhora Selznick) e Montgomery Clift, resultaram em um drama de amor muito estranho (e comercialmente fracassado), que foi filmado em várias madrugadas na estação ferroviária de Roma. De Sica tinha desejado filmar uma história em pequena escala de

Cesare Zavattini sobre um caso de amor que não funcionou, mas concordou em colocá-la na então nova estação ferroviária colossal de U$S 35 milhões para satisfazer ao desejo de grandeur de Selznick. O filme é notável principalmente pelo modo com que De Sica usou Clift: algo sem vontade – quase bocejando suavemente – veio através de sua atuação, e é impossível dizer o quanto disso era a intenção do ator ou do diretor. É diferente da interpretação de Clift em qualquer outro filme. Com Richard Beymer e Gino Cervi. Truman Capote trabalhou nos diálogos.”

Gino Cervi faz o papel do comissário de polícia que aparece em uma única sequência, interrogando os personagens de Jennifer Jones e Montgomery Clift depois que eles foram pegos por policiais em um vagão parado num canto da estação.

Antes de finalizar, é absolutamente necessário lembrar que a forma com que o cinema podia tratar o tema da infidelidade conjugal no início dos anos 50 variava imensamente entre os países do Primeiro Mundo. O tema da infidelidade conjugal sempre pôde ser tratado com grande liberdade na França e na Itália. Só para dar um exemplo, o romance Madame Bovary de Gustave Flauberg foi lançado em 1856, e o filme do mestre Jean Renoir – um dos trocentos baseados no livro – é de 1934. No campo oposto, em 1960, dois anos apenas antes dos Beatles, na década do amor livre, da contracultura, houve na Inglaterra o que ficou conhecido como o Julgamento de Lady Chatterley, quando o povo da “defesa da família e dos bons costumes” – esses reacionários idiotas, tão iguais em todos os lugares do mundo – tentou enquadar o livro de D.W. Lawrence no Obscene Publications Act, ou lei de publicações obscenas, de 1959.

E, nos Estados Unidos, o Código Hays – o conjunto de regras da autocensura dos estúdios –, que tratava a infidelidade conjugal como crime hediondo, ainda estava em pleno vigor em 1953, quando o filme foi lançado.

Essas formas muito distintas de tratar o tema central do filme devem ser levadas em conta quando se fala sobre ele.

No meu entendimento, o filme deixa em aberto, para que cada espectador decida, a questão mas afinal de contas, houve assim propriamente infidelidade carnal? Mary e Giovanni chegaram às vias de fato? Treparam ou não treparam? Ou naquela noite, ao quase apertar a campainha da casa de Giovanni, Mary percebeu que, se entrasse lá, não seria mais possível segurar o desejo, e os dois iriam afinal trepar?

Pois é. Para mim, a intenção dos realizadores foi deixar isso em aberto, para que cada espectador decidisse.

À la Machado de Assis, à la o mistério de Capitu, a mulher dos olhos de ressaca.

Anotação em janeiro de 2023

Quando a Mulher Erra/Stazione Termini

De Vittorio De Sica, Itália-EUA, 1953

Com Jennifer Jones (Mary Forbes),

Montgomery Clift (Giovanni Doria)

e Richard Beymer (Paul Stevens, o sobrinho de Mary), Gino Cervi (o comissário de polícia), Oscar Blando (ferroviário), Mariolina Bovo (garota loura no trem), Nando Bruno (ferroviário), Memmo Carotenuto (Venturini, o ladrão no posto policial), Maria Pia Casilio (a jovem noiva de Abruzzo), Amina Pirani Maggi (a mulher do telegrama), Pasquale De Filippo (o empregado da bilheteria), Charles Fawcett (o senhor triste no balcão do Correio), Liliana Gerace (a siciliana grávida), Enrico Glori (brigadeiro), Clelia Matania (a mãe dos meninos briguentos no trem),

e, em outros pequenos papéis. Gino Anglani. Bill Barker, Claudio Del Pino, Ciro Di Castro, Marcella Genuino, Vincenzo Milazzo, Jean Mollier, Teresa Paliani, Gino Passarelli, Puccio Pintabona

Roteiro Cesare Zavattini & Luigi Chiarini & Giorgio Prosperi

Baseado em história de Cesare Zavattini

Fotografia G.R. Aldo

Música Alessandro Cicognini

Montagbem Eraldo Da Roma

Direção de arte Virgilio Marchi

Figurinos de Jennifer Jones por Christian Dior

Produção Vittorio De Sica, David O. Selznick (produtor executivo não creditado), Marcello Girosi e Wolfgang Reinhardt (produtores associados)

P&B, 87 min (1h27)

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