Milagre em Milão / Miracolo a Milano

 

 

 

 

 

 

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Prime Video e em DVD da Versátil.)

Nunca houve um filme como Milagre em Milão.

Logo depois da crueza dura de Vítimas da Tormenta/Sciuscià (1946) e Ladrões de Bicicleta (1948), duas das obras que moldaram e marcaram o neo-realismo italiano, Vittorio de Sica e seu comparsa das letras Cesare Zavattini voltaram a falar sobre a pobreza – mas com magia.

Na história sobre um grupo de sem-teto na grande cidade, a mãe do herói vem do céu para entregar a ele uma pomba mágica, a estátua vira uma garota e sai por aí dançando, o gago passa a falar sem gaguejar, o homem que carrega balões começa a levitar, os pobres oprimidos vencem a batalha contra o milionário opressor e sua polícia sem um ato de violência sequer, e todos os sem-teto saem voando pelos céus, acima da catedral que é o símbolo da metrópole industrial da Itália.

Antes, bem antes do realismo fantástico de Miguel Ángel Asturias, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Manuel Scorza, Gabriel García Márquez, José J. Veiga, Milagre em Milão, de 1951, fez o neo-realismo fantástico.

Só não dá para dizer que inaugurou o neo-realismo fantástico porque não houve um movimento, um conjunto de obras. Milagre em Milão é único – primeiro e único.

Pauline Kael, a grande dama da crítica americana que acompanhava com atenção o cinema europeu, escreveu na The New Yorker: “O filme é poesia estilizada, e não parece com nada do que De Sica fez”.

Verdade – mas a rigor Miracolo a Milano não se parece com nada que qualquer cineasta fez. É inegável que há um pouco de Charles Chaplin e do Vagabundo Carlitos na doçura, na candura, no amor ao próximo do herói, Totó (o papel de Francesco Golisano, um dos protagonistas mais anti-galãs de toda a História do Cinema). Mas – repito – nunca houve um filme como Milagre em Milão.

Luta de classes mostrada como uma fábula, que começa com “Era uma vez” e tudo. Luta de classes numa visão mais rósea do que qualquer produção hollywoodiana conseguiria criar, se alguém em Hollywood quisesse produzir uma Barbie comunista.

Uma fábula, uma história da carochinha

“C’era una volta…”, diz um letreiro com letra escrita a mão, uma letra de criança, assim que terminam os créditos iniciais, em que ouvimos o principal tema da trilha sonora composta por Alessandro Cicognini, uma música alegre, ligeira, um tanto circense. Uma velhinha com todo jeito de pessoa boa, coração imenso, está regando as plantas de sua horta quando ouve o choro de um bebê. O bichinho havia sido abandonado ali, peladinho, no meio dos repolhos. A senhorinha Lolotta (interpretada por Emma Gramatica) o recolhe com o maior carinho.

Quando estamos com 10 dos 97 minutos do filme, o jovem Totò está deixando o orfanato para onde havia sido levado depois da morte da senhorinha Lolotta. É um rapazote alegre, sempre de bem com a vida, que diz bom dia para cada pessoa que encontra na rua.

Bem rapidamente há novo corte no tempo e vemos o bom Totò já adulto, no meio de um grande grupo de pessoas pobres, miseráveis, sem-teto, construindo barracos em um amplo, muito amplo terreno na periferia de Milão – um terreno de propriedade de uma grande empresa, mas completamente sem uso, como se fosse um convite aberto à ocupação por gente que não tinha onde morar, naquela Itália ainda mal saída dos escombros da Segunda Guerra Mundial terminada seis anos antes.

O texto de Pauline Kael traz um bom resumo da trama. Vou transcrevê-lo já, porque aí fica registrado o que é necessário dizer sobre a história criada por Cesare Zavattini, essa figura básica, fundamental, do neo-realismo italiano, o mais importante e influente movimento do cinema mundial, e roteirizada por ele e Vittorio De Sica, “com a colaboração de Suso Cecchi D’Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci”, conforme informam os créditos iniciais:

“Em parte sátira social, em parte fantasia, este filme de Vittorio De Sica sugere uma visão infantil de O Idiota de Dostoievski. Uma alegre velha senhora encontra um bebê recém-nascido em um canteiro de repolho. O bebê vira Toto O Bom, um homem feliz que ama todas as pessoas; quando ele não consegue satisfazer seu desejo de ajudar todo mundo, a velha senhora, agora um anjo, vem do céu e dá a ele o poder de fazer milagres. Toto o herói, ingênuo e cheio de amor, organiza uma favela e tenta fazer dela uma comunidade ideal, mas as contradições sociais são ridiculamente fortes – nem mesmo os poderes mágicos podem resolvê-las. O fracasso da inocência aqui é tocantemente absurdo; o filme é poesia estilizada, e não parece com nada do que De Sica fez. Francesco Golissano está perfeito como Toto; a heroína, Brunella Bovo, é o que as heroínas de Chjaplin deveriam ser mas não eram. O filme dá um belo papel para aquela grande, quase legendária dama do teatro italiano, Emma Gramatica (muitos, muitos anos antes ela havia atuado sob a direção de D’Annunzio); como a supremamente tola velha do conto de fadas de De Sica, ela é tão gentil e permissiva quanto seu Umberto D é orgulhoso e teimoso. Com Paolo Stoppa como o homem infeliz. Cesare Zavattini adaptou seu próprio romance, Toto Il Buono”.

A atriz Brunella Bovo (na foto abaixo)a quem Dame Kael se refere interpreta a jovem Edvige, mocinha tímida, simpática, boazinha, empregada de Marta, a dama arrogante (Anna Carena). Totò O Bom naturalmente se apaixona por ela – e com isso creio que concluo o relato sobre a trama do filme.

“Uma fábula para adultos”, para divertir e fazer pensar    

O que De Sica e Zavattini pretenderam dizer em seu filme está muitíssimo bem apresentado, creio, no trailer original do filme. Meu, que beleza de trailer! (Ele vem como brinde no DVD lançado pela ótima Versátil, e está também disponível no YouTube, embora sem legendas.)

O trailer – quase um making of, décadas antes de o making of passar a existir – abre com cartazes de filmes anteriores de De Sica em que crianças são fundamentais na trama: A Culpa dos Pais/ I bambini ci guardano (1943) e os já citados Vítimas da Tormenta/Sciuscià e Ladrões de Bicicleta. E aí o trailer/quase making of faz um sensacional jogo de metalinguagem: mostra um homem pregando na parede um cartaz de Sciuscià e depois de Ladri de Biciclette. Pregar cartazes é o trabalho que Antonio, o protagonista do maravilhoso clássico, finalmente encontra, depois de muito tempo desempregado.

Em Ladrões de Bicicleta, pouco antes de ter roubada sua bicicleta – seu instrumento de trabalho, o que garante seu ganha-pão – Antonio está pregando um gigantesco cartaz de Gilda, com uma foto espetacular de Rita Hayworth.

Pois é. Tenho dúvidas se nunca houve uma mulher como Gilda – como dizem os cartazes do filme – mas nunca houve um filme como este Milagre em Milão aqui. E poucos trailers foram tão brilhantes quanto este do filme.

Depois que vemos um trabalhador como Antonio pregar na parede um cartaz de Ladrões de Bicicleta, o trailer mostra um de Milagre em Milão. E ao lado do cartaz está Francesco Golisano, o ator que interpreta Totò. Ele se dirige para a câmara, ou seja, diretamente ao espectador: – “Este bonequinho aqui sou eu. O filme trata de um milagre que aconteceu em Milão. Antes, vocês viram cartazes de filmes que resumem a obra de De Sica, o amigo dos meninos.”

Vemos então tomadas dos três filmes citados antes. Em A Culpa dos Pais/ I bambini ci guardano, diz Golisano, De Sica afirmou que “no mundo, os humildes são sempre os únicos que sofrem. Principalmente as crianças, que muitas vezes têm à sua frente coisas muito maiores que eles. Uma delas é a guerra.”

(Impressionante ver isso nestes tristes tempos da guerra de Israel contra o Hamas.)

– “Houve a guerra, e ela devastou o mundo”, prossegue o ator Francesco Golisano. “Luto e destruição. Coisas tristes. Mas para um artista são fonte de poesia e inspiração, mais que a riqueza e o luxo.”

Em seguida, imagens de Vítimas da Tormenta e depois de Ladrões de Bicicleta.

– “Milagre em Milão, que vocês verão em breve, é uma sorridente fábula moderna. O garoto – sou eu – teve muito mais sorte (que as crianças dos filmes anteriores). Sou órfão, mas sou feliz, porque creio em milagres, e estou preparado para realizá-los eu mesmo. Uma fábula, sim, que tem o mesmo significado das outras, Era uma vez… Fui achado junto de um repolho (vemos a tomada em que a senhorinha pega o bebê em seus braços), e me chamaram de Totò, O Bom. A minha maravilhosa aventura começou quando saí do orfanato e me encontrei no meio dos homens. ‘Como é bela a vida’, eu dizia, ‘e como são bons os homens’. Quando aparecia um malvado, eu não acreditava. E então…”

Vemos um close-up de Guglielmo Barnabo, o ator que interpreta Mobbi, o empresário milionário que põe a polícia para expulsar os sem-teto do imenso terreno e destruir seus casebres.

– “Quase conto a história inteira”, diz Francesco Golisano. “Não basta que vocês saibam que encontrarão poesia e sonho? Não basta saberem que é uma fábula divertida? Extraordinária! Com tantas surpresas! E tantos, tantos milagres! (Vemos uma tomada da moça que era uma estátua, do homem que segura os balões e começa a levitar…) Mas, mesmo sendo uma fábula, não seria possível esquecer de todo a realidade dos homens… Talvez uma fábula para adultos possa divertir vocês do mesmo modo. Ainda que faça pensar um pouco… “

Os destituídos sentem como é caloroso um raio de sol”

Uma fábula alegre, divertida.

Vittorio De Sica queria – há registros disso – fazer um filme mais positivo do que os anteriores. “É verdade que meus personagens já conseguiram ter felicidade de seu próprio jeito de ser. Exatamente porque elas são destituídas, essas pessoas ainda sentem – como a maioria das pessoas comuns não mais consegue – como é caloroso um raio de sol no inverno, a poesia simples do vento. Elas sentem prazer com a água da mesma maneira alegre com que São Francisco fazia.”

Como é caloroso um raio de sol no inverno… A sequência em que aquele grupo de gente pobre, destituída de tudo, procura o local em que cai um raio de sol de fato é de uma poesia de extasiante beleza.

Acho fundamental registrar que De Sica e Zavattini voltariam a tratar da questão dos sem-teto da Itália no pós-guerra – só que, daquela vez, sem qualquer pingo de fantasia, de fábula, de alegria. Muito ao contrário. O Teto, de 1956 – apenas cinco anos portanto depois deste Milagre em Milão – é o relato absolutamente realista, quase naturalista, das desventuras de um casal de sem-teto na periferia de Roma. Natale e Luisa (os papéis de Giorgio Listuzzi e Gabriella Pallotta) ficam sabendo que havia uma lei segundo a qual uma casa construída, inclusive o teto, até o amanhecer, as autoridades não poderiam botar abaixo. Os dois se dedicam, então, à tarefa dura, louca, de tentar construir um casebre da noite para o dia, Vi O Teto em quase outra encadernação, perdão, outra encarnação, em alguma sessão de cineclube em Belo Horizonte no início dos anos 60, e jamais me esqueci dele.

O filme foi rodado nas ruas, com atores e gente do povo

Algumas informações sobre o filme, quase todas tiradas da página de Trivia do IMDb, com pitacos meus:

* Como muitos outros filmes do neo-realismo, Milagre em Milão mistura atores profissionais com pessoas do povo sem qualquer experiência em atuação. Entre os não-profissionais havia mendigos, sem-teto, alcoólatras.

* Para criar os efeitos especiais – e eles são muitos, muitos –, De Sica importou de Hollywood o especialista Ned Mann. Milagre em Milão viria a ser o último filme em que Mann trabalhou.

* Como todos os filmes do neo-realismo, Milagre em Milão foi rodado fora dos estúdios, ao ar livre, com muitas sequências feitas nos próprios locais em que a história se passa, como, por exemplo, a Piazza del Duomo, o principal cartão postal da grande cidade. A principal locação foi um imenso terreno baldio nas proximidades da estação ferroviária de Lambrate. Em diversas sequências aparecem trens passando ao longe.

* Em 1999, o filme passou por uma restauração creditada à Associação de Amigos de Vittorio De Sica, e que foi supervisionada por Manuel De Sica, filho do realizador. Essa versão restaurada em 1999 é a usada pela Versátil no seu DVD. Houve uma nova restauração exatos 20 anos depois, e em abril de 2019 ela foi mostrada no Festival de Cannes.

* O filme havia sido lançado originalmente no Festival de Cannes, e De Sica recebeu o Grand Prix. A Academia Britânica indicou-o aos Baftas de melhor filme e melhor ator em produção não britânica.

89% de aprovação do público, 92% dos críticos

Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4 para Miracle in Milan: “Toto the Good (Golisano) leva alegria a uma sombria vila de pobres, auxiliado pela velha senhora que o criou, que agora está no céu. Mordazmente cômica condenação da maneira com que europeus deslocados eram tratados depois da Segunda Guerra Mundial”.

O Guide des Films de Jean Tulard diz sobre Miracle à Milan: “De Sica renuncia ao realismo de seus filmes anteriores por uma poesia maravilhosa. Ele afirma; ‘É uma fábula, e minha única intenção e tentar um conto de fadas do século XX’.”

No seu Dicionário de Filmes, Georges Sadoul diz: “Partindo de um roteiro que escreveu em 1940, Zavattini quis passar aqui do neo-realismo ao fantástico, servindo de conteúdo metafórico a uma violenta polêmica social”.

No New York Times, o crítico Bosley Crowther escreveu: “Embora seja questionável se este filme tem o apelo simples, universal de uma velha obra de Chaplin, por exemplo, ou se seus significados são tão afiados quando alguns podem pensar, é seguramente um entretenimento vívido e deverá ser tema de discussão por muitos meses.”

No Tomatometer – a média da opinião dos críticos – do site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, Miracle in Milan tem 92%. Pouco mais que a média da opinião dos leitores do site, que é de 89%.
E, para encerrar:

Depois que comecei a escrever esta anotação, depois que fiz aquela afirmação tão absolutamente peremptória – Nunca houve um filme como Milagre em Milão –, fiquei pensando, pensando…

Talvez haja, sim, um filme um tanto parecido com ele. Um filme que fala de coisas extremamente sérias com uma história que é um conto de fadas, uma fábula, uma fantasia desvairada. É Um Dia, um Gato, o filme que o checo Vojtech Jasný lançou em 1963, quando a então Checoslováquia começava a sentir a brisa refrescante do que viria a ser a Primavera de Praga.

Vojtech Jasný com toda certeza viu Milagre em Milão. Muitas vezes.

Anotação em 19/2/2024

Milagre em Milão/Miracolo a Milano

De Vittorio De Sica, Itália, 1951

Com Francesco Golisano (Totò),

Branduani Gianni (Totò aos 11 anos),

Emma Gramatica (a velha Lolotta, mãe de Totó), Paolo Stoppa (Rappi, o homem mau), Guglielmo Barnabò (Mobbi, o milionário), Brunella Bovo (Edvige), Anna Carena (Marta, la signora arrogante), Alba Arnova (a estátua que passa a viver), Flora Cambi (a apaixonada infeliz), Virgilio Riento (o sargento da polícia), Arturo Bragaglia (Alfredo), Erminio Spalla (Gaetano), Riccardo Bertazzolo (o atleta), Checco Rissone (o segundo comandante da polícia), Angelo Prioli (o primeiro comandante da polícia)

Roteiro Cesare Zavattini, Vittorio De Sica, com a colaboração de Suso Cecchi D’Amico, Mario Chiari, Adolfo Franci

Baseado no romance “Totò Il Buono”, de Cesare Zavattini

Fotografia Aldo Graziati

Música Alessandro Cicognini

Montagem Eraldo Da Roma

Direção de arte Guido Fiorini

Efeitos especiais Ned Mann

Produção Vittorio De Sica, Soc. Produzioni De Sica, Ente Nazionale Industrie Cinematografiche (ENIC).

P&B, 97 min (1h37)

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2 Comentários para “Milagre em Milão / Miracolo a Milano”

  1. Pauline Kael, disse tudo: O filme é poesia estilizada.
    Grande filme, grande De Sica.

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