Quem Matou Vicky? / I Wake Up Screaming

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em maio de 2022.)

Para os cinéfilos, em especial os que gostam dos filmes da época de ouro de Hollywood, os anos 30 a 50, este Quem Matou Vicky?, de 1941, é uma delícia. Para quem tem o dom da curiosidade, é uma interessantíssima amostra de como Hollywood via o fenômeno da transformação de uma pessoa simples, “normal”, em celebridade, 80 anos antes dos BBBs da vida, das redes sociais, dos influencers (e portanto também dos idioters).

Para o resto da humanidade, este filme de 1941, com um tonzinho noir, realizado por diretor bem pouco importante, H. Bruce Humberstone, com Betty Grable, Victor Mature e Carole Landis nos papéis centrais, em que a interpretação que rouba as cenas é de um tal de Laird Cregar, pode parecer uma chatice. Bem, esses aí que se danem.

É necessário notar que não é propriamente um grande filme, sequer um filme assim de fato importante. Mas tem muitos atrativos, como em geral acontece com os filmes da era dourada de Hollywood. Por exemplo: é tido como o primeiro filme noir da 20th Century Fox.

O conceito de noir é algo um tanto fluido, elástico. Como é uma grife elegante, muito filme que a rigor não é noir coisa alguma é vendido como tal. Pessoalmente, acho que este I Wake Up Screaming tem tons de noir, mas não é propriamente um filme noir. Mas o filme consta, por exemplo, do livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, do estudioso carioca A.C. Gomes de Mattos.

Betty Grable é outro dos atrativos do filme. Talvez ou provavelmente bem pouco conhecida hoje, em 1941 Betty Grable era uma gigantesca, faiscante estrela. Foi a atriz mais bem paga de Hollywood. É lendária a presença de fotos dela com as coxas à mostra em cada armário dos soldados americanos ao longo da Segunda Guerra Mundial – na qual os Estados Unidos entraram menos de 40 dias após a estréia deste filme. (A estréia foi em 31 de outubro; no dia 7 de dezembro os japoneses atacaram a base militar de Pearl Harbor, no Havaí, e aí finalmente o presidente Franklin D. Roosevelt declarou guerra ao Eixo.) É tida como a maior pin-up da História – e a expressão pin-up vem exatamente daí, de pessoa que tem a foto pendurada, pregada em armário, em parede. A 20th Century Fox, que a mantinha sob contrato, fez seguro das pernas de Betty Grable com a Lloyds de Londres no valor absolutamente inimaginável à época de US$ 1 milhão.

Pernas de um milhão de dólares, meu!

Isso aí, nem Marlene Dietrich!

E eram os anos 40. Só em 1963 viria a acontecer de uma estrela receber US$ 1 milhão por um filme. A estrela era Elizabeth Taylor, o filme era Cleópatra – que quase levou a mesma 20th Century Fox à falência.

Betty Grable não é coisa pouca, não.

Brilhou ao longo dos anos 30, esteve no absoluto auge nos 40, e se manteve estrela ao longo dos anos 50. Em 1953, teve um sucesso extraordinário com Como Agarrar um Milionário, em que contracenava com as mais jovens Lauren Bacall e Marilyn Monroe. Morreria em 1973, com apenas 56 anos, de câncer de pulmão.

Um especialista em promover pessoas

Neste filme aqui, Betty Grable tem um dos poucos papéis dramáticos de sua gloriosa carreira – ela basicamente trabalhou em musicais e comédias românticas. Um detalhe que é mais um dos atrativos do filme.

Ela faz o papel de Jill Lynn, a irmã da Vicky Lynn do título escolhido pelos distribuidores brasileiros, Quem Matou Vicky? A irmã nada famosa da Vicky Lynn que, da noite para o dia, havia virado uma celebridade na agitada Nova York daquele início dos anos 1940.

Victor Mature interpreta Frankie Christopher, o homem que transforma a jovem e bela garçonete Vicky Lynn em celebridade – e vira o principal suspeito da morte dela.

Vicky é o papel de Carole Landis, uma atriz hoje pouquíssimo conhecida, ou sequer conhecida. Eu mesmo, velho viciado em filmes de Hollywood dos anos 30 a 50, jamais tinha ouvido falar nela. Carole Landis é outro dos atrativos deste filme.

Mas já passa da hora de relatar um pouco sobre a trama. De que se trata este I Woke Up Screaming, afinal de contas.

A abertura do filme escrita pelo roteirista Dwight Taylor, com base no livro de Steve Fisher I Woke Up Screaming, lançado naquele mesmo ano de 1941, é inteligente, bem sacada. Envolve de cara o espectador. Mostra um sujeito, Frankie Christopher, o papel do galã com fama de canastrão Victor Mature, sendo interrogado numa delegacia de polícia de Nova York como suspeito pela morte da jovem Vicky Lynn.

Fica evidente, desde a primeira tomada, que Frankie está sendo interrogado já faz tempo. Já respondeu várias vezes às perguntas dos vários policiais – mas eles perguntam tudo de novo, naquela coisa de tentar descobrir alguma falha, alguma inconsistência, alguma contradição.

E então Frankie conta mais uma vez para os policiais – e pela primeira vez para os espectadores – a sua versão da história. É claro que vamos ver na tela os eventos que ele relata.

Alguns meses antes, ou vários, Frankie estava tomando um café e comendo um bolo com dois amigos num restaurante da 8th Avenue, depois de assistir a uma luta de boxe, e a garçonete que os atendia era bela. Um dos amigos fez uma gracinha com a moça, e ela deu uma resposta que o desmontou. Frankie tentou uma outra gracinha, e levou outra paulada verbal da moça.

Aos dois amigos, Frankie disse, num ataque de Pigmalião, de professor Higgins: “Aposto que posso pegar essa garota e, em seis meses, botá-la no topo”.

Quando a garçonete voltou para atendê-los, Frankie tentou de novo: – “O que você acha de irmos ao El Chico amanhã?”

Vicky era rápida nas respostas: – “Tenho ido sempre lá.”

Frankie diz que não está brincando. – “Você usará uma estola preta, e eu vou introduzir você às pessoas da alta sociedade. O que você acha?”

No dia seguinte, Frankie entra com Vicky em um elegantérrimo night club – e rapidamente consegue ser convidado para a mesa de Lady Handel (May Beatty), uma respeitada e riquíssimas socialite.

Fraankie era um promoter, ou promoteur, como se grafa em francês e usava-se bastante no Brasil ali pelos anos 60. Um sujeito que promovia – não apenas festas, mas pessoas, esportistas, lutadores de boxe, bailarinas, modelos. E, naquele esquema ali, contava com a ajuda de duas pessoas que estavam à mesa de Lady Handel, os mesmos dois amigos da noite anterior. Um deles, Robin Ray (Alan Mowbray) era um veterano e conhecido ator; o outro era um colunista de jornal também bastante famoso. Larry Evans (Allyn Joslyn).

Um experiente promoter, um veterano ator, um famoso colunista de jornal. Os três amigos unem suas forças e, rapidamente, introduzem a jovem Vicky à sociedade – e ela começa a ser convidada para trabalhar como modelo em publicidade dos mais diferentes produtos, na moda. Querem ouvir ela cantar. Vira uma celebridade.

O policial é obsessivo na tentativa de incriminar Frankie

Poucos dias antes – Frankie prossegue na sua narrativa para os policiais e para os espectadores –, Vicky contou para ele que recebera um convite para ir para Hollywood. Contou um tanto embaraçada, um tanto com receio da reação dele. Frankie havia levado um susto, de fato – mas só isso. Finalmente, no dia anterior, quando foi visitá-la no apartamento que ela dividia com a irmã Jill, encontrou-a já morta, assassinada. Havia acabado de chegar ao apartamento quando chegou Jill, vinda do trabalho – ela era secretária, datilógrafa, taquígrafa.

Enquanto Frankie está sendo interrogado em uma sala da delegacia, em outra sala Jill respondia a perguntas semelhantes às feitas a Frankie. O relato dela é bastante parecido com o dele.

Um detetive se sobressai durante o interrogatório de Frankie. É um sujeito grande, volumoso, cheio; tem um rosto um tanto plácido, um tanto cara de bebê – mas vai se demonstrar, ao longo da narrativa toda, um sujeito estranho, esquisito. Sinistro – creio que o melhor adjetivo para descrevê-lo seja este. Chama-se Ed Cornell, é o papel de Laird Cregar, o ator que rouba todas as cenas em que aparece.

(Diz o IMDb que o sobrenome Cornell é uma homenagem a Cornell Woolrich, 1903–1968, o prolífico autor de dezenas de romances policiais, entre eles os que deram original a dois filmes de François Truffaaut, A Noiva Estava de Preto, de 1968, e A Sereia do Mississipi, de 1969, assinados por seu pseudônimo William Irish.)

O detetive E d Cornell parece ter a mais absoluta certeza de que foi Frankie Christopher que assassinou Vicky Lynn. Prova, ele não tem nenhuma – mas afirma para todos, a qualquer hora, que motivo havia. Afinal, Frankie foi quem descobriu Vicky, quem a promoveu, quem a tornou uma modelo famosa – e, de repente, ela havia anunciado que saía de baixo das asas de seu promotor, e voava para o outro lado do país-continente, para virar estrela de cinema. Ele se sentiu traído – pronto, eis aí o motivo.

Sem prova, mas com uma certeza absoluta, inabalável, firme como as Montanhas Rochosas, Ed Cornell é obsessivo na sua perseguição a Frankie. E não perde uma oportunidade para insistir com o cara que promoveu Vicky a estrela que ele vai ser condenado à morte, mais dia, menos dia.

Ufa! Levei um porrilhão de parágrafos relatando em detalhes isso tudo – mas é fundamental deixar claro que todas essas informações são colocadas para o espectador nos primeiros 15, no máximo 20 minutos de filme. Não há spoiler algum.

Títulos diferentes pelo mundo afora

O filme teria originalmente o título de Hot Spot. Esse titulo chegou a ser filmado para os créditos iniciais, segundo informa o IMDb, com base em informações contidas no DVD do filme lançado nos Estados Unidos. Mais tarde, no entanto, os produtores e a Fox mudaram para I Wake Up Screaming – acordo gritando, literalmente.

Na Grã-Bretanha foi usado o título Hot Spot – e na internet há cartazes do filme com esse título. Não conhecia “hot spot” como uma expressão idiomática; para mim, hot spot seria o que dizem alguns dicionários – um lugar quente, o quente podendo ser tanto relativo à temperatura, simplesmente, quanto no sentido de especial, diferente, raro. Há dicionários, no entanto, indicando que é uma expressão que significa “ponto de acesso”.

Mas o fato é que este é um filme de muitos títulos. I Wake Up Screaming no original – e os exibidores portugueses seguiram essa linha, com Acordei aos Gritos. Os franceses foram com Qui a tué Vicky Lynn? – e deve ter sido essa, seguramente, a inspiração dos exibidores brasileiros para o título – bastante apropriado, diga-se – de Quem Matou Vicky?

São detalhinhos, eu sei. Mas adoro esses detalhes sobre os diferentes títulos que os filmes recebem nos vários países…

Outro detalhinho que me chamou a atenção é que, em diversos momentos do filme, ouvimos, como fundo musical, a canção “Over the Raibow” – sem letra, numa gravação apenas orquestral. Achei estranho, isso: como assim, usar na trilha sonora uma canção que já era um extraordinário sucesso, a canção chave de O Mágico de Oz, o filme lançado apenas dois anos antes, em 1939?

A página de Trivia do IMDb sobre o filme cita o fato de “Over the Rainbow” ser usada no filme. E não apenas esta canção, mas também “Street Scene”, uma música criada por Alfred Newman para o filme

No Turbilhão da Metrópole (1931). Por absoluta coincidência, essa mesma música “Street Scene” é tocada na abertura de Como Agarrar um Milionário, já citado aqui, em que também trabalha Betty Grable.

A história seria refilmada 12 anos mais tarde, em 1953, como Vicki, assim, com i no final, no Brasil Sombras da Loucura, com direção de Harry Horner, tão pouco conhecido quanto H. Bruce Humberstone (1901–1984), que fez esta primeira versão aqui. Jean Peters fez Vicki e Jeanne Crain sua irmã Jill. Elliott Reid fez Steve Christopher. Um detalhe interessante é que o roteirista do primeiro filme foi o autor também do roteiro da refilmagem.

Uma linda atriz de vida trágica

O soturno, obsessivo detetive Ed Cornell diz, lá pelas tantas, que trabalha na polícia há 15 anos. O ator Laird Cregar, que interpreta Ed Cornell, estava com 27 anos quando fez o filme – 15 anos antes era, portanto, um pré-adolescente de 12.

O IMDb traz essa informação – mas duvido que muitos espectadores percebam qualquer coisa anormal na afirmação feita pelo personagem. Laird Cregar, alto, gordo, grande, parecia ter muito mais que apenas 27 anos.

Laird Cregar estrelou bons filmes nos anos 40, como Ódio que Mata/The Lodger (1944) e Alma Torturada (1942). Mas talvez seu papel mais importante, depois deste aqui, tenha sido em O Diabo Disse Não/Heaven Can Wait, a deliciosa comédia romântica do mestre Ernst Lubitsch, em que ele interpreta o personagem que está no título escolhido pelos exibidores brasileiros. Sim, o Belzebu – ali apresentado como um sujeito educado, elegante.

Fez apenas 16 filmes: morreu de um ataque cardíaco quando estava com apenas 30 anos.

Carole Landis, a bela atriz que faz a Vicky dos títulos brasileiro e francês, morreu ainda mais jovem, aos 29 anos. Pelo que se pode ler sobre ela, sua vida daria um bom filme – um drama pesadíssimo.

Assim a Katz’s Film Encyclopedia resume a vida trágica dessa moça nascida como Frances Lillian Mary Ridste em Fairchild, no Wisconsin, em 1919:

“Uma loura de belo corpo, ela começou a participar de concursos de beleza aos 12 anos. Aos 15, fugiu com um escritor, mas eles se separaram depois de apenas três semanas. Ela viria depois a se casar três vezes. Depois de trabalhar como chapeleira, garçonete e lanterninha em sua cidade natal, foi para San Francisco, estreou aos 16 anos como cantora e dançarina de hula em um bar da noite. Chegou a Hollywood aos 18 e, graças a seu belo rosto e ‘as melhores pernas da cidade’, começou quase imediatamente a carreira no cinema. A partir de 1940, seu nome apareceu como o de estrela, mas seus filmes nunca foram melhores do que rotineiros. Four Jills in a Jeep (1944, no Brasil Quatro Moças num Jipe) se baseou nas suas aventuras da vida real, enquanto entretendo as tropas da Segunda Guerra Mundial com Kay Francis e Martha Raye. A 6 de julho de 1948, foi encontrada morta por uma overdose de soníferos. O coração partido por causa do fim de uma relação com Rex Harrison, então casado com Lilli Palmer, foi mencionado como a causa de seu suicídio.”

Esta última frase parece um tanto machista e reducionista, para não dizer calhorda.

Uma das minibiografias dela no IMDb a descreve como “inteligente, generosa, talentosa e deslumbrante”. Outra diz que ela fez 49 filmes, a maioria deles, infelizmente, nada inesquecíveis. “Se os magnatas de Hollywood tivessem dado uma chance a ela, Carole poderia ter sido uma das mais brilhantes estrelas de sua história.”

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Interessante whodunit (quem matou) com Grable e Mature interrogados sobre o assassinato da irmã de Betty, perseguidos pelo determinado policial Cregar. Reviravolta no final para um bom mistério. Refilmado como Vicki; originalmente com o título de Hot Spot.”

O guia de Steven H. Scheuer deu 3.5 estrelas em 4. “Atmosfera dura, arrepiante, reforçada por caracterizações agudamente marcadas”, ele avalia.

O livro The Films of 20th Century Fox faz duas afirmações erradas na sinopse do filme – em uma delas, identifica erradamente quem matou Vicky! Mas conclui o verbete de forma correta, me parece: “I Wake Screaming é um filme de suspense classudo com uma atuação assombrosa de Cregar como o detetive patético e sinistro.”

Sem dúvida. Neste filme com duas atrizes muito belas, quem de fato rouba a cena é esse Laird Cregar (na foto abaixo). Que maravilha de interpretação!

Concluo com uma consideração que poderia espantar cinéfilos veteranos. Sempre tive Victor Mature na conta de um dos maiores canastrões da História do cinema, um danado de um careteiro, péssimo ator. Pois é. Não achei que ele estivesse mal, não. De forma alguma. Tem uma boa atuação – assim como todos os demais atores.

Anotação em maio de 2022

Quem Matou Vicky?/I Wake Up Screaming

De H. Bruce Humberstone, EUA, 1941

Com Victor Mature (Frankie Christopher),

Betty Grable (Jill Lynn),

Carole Landis (Vicky Lynn),

e Laird Cregar (Ed Cornell, o detetive da polícia), William Gargan (Jerry McDonald), Alan Mowbray (Robin Ray, o ator), Allyn Joslyn (Larry Evans, o colunista), Elisha Cook Jr. (Harry Williams, o porteiro e telefonista), Chick Chandler (repórter), Morris Ankrum (assistente do promotor), May Beatty (Mrs. Handel, a rica socialite), Cyril Ring (repórter), Basil Walker (repórter), Bob Cornell (repórter), Charles Lane (Keating, o florista), Frank Orth (o funcionário do cemitério), Gregory Gaye (chefe dos garçons)

Roteiro Dwight Taylor

Baseado em livro de Steve Fisher

Fotografia Edward Cronjager

Música Cyril J. Mockridge

Montagem Robert Simpson

Direção de arte Richard Day, Nathan Juran

P&B, 82 min (1h22)

Produção Milton Sperling, 20th Century Fox.

***

Exibido no Reino Unido como “Hot Spot”. Na França, “Qui a tué Vicky Lynn?” Em Portugal, “Acordei aos Gritos”.

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