(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 6/2022.)
A beleza faiscante, incrível, absurda de Hedy Lamarr é sem dúvida alguma a melhor coisa de Dishonored Lady, no Brasil Mulher Caluniada, de 1947, filme feito fora dos grandes estúdios, dirigido por Robert Stevenson (1905-1986), o cara que mais tarde realizaria Mary Poppins, aquele encanto.
O filme me deixou um tanto zonzo, um tanto perplexo: tem elemento demais em seus parcos, curtos, rápidos 85 minutos. Tem um estudo psicológico sobre a protagonista da história, Madeleine Damien (o papel de Hedy Lamarr, é claro), a editora de arte de uma conceituada revista de moda – com direito a sessões com psiquiatra, que ensina a ela o que deve fazer para se livrar de sua dependência de casos amorosos em série. Tem uma história de amor, um romance que parece se encaminhar muito bem mas de repente muda tudo. Tem um crime, e aí Dishonored Lady vira um filme de tribunal. E, pairando sobre tudo isso, há uma certa atmosfera noir – o IMDb classifica o filme em três categorias, policial, drama e filme noir.
Coisa demais, meu!
Por uma absoluta coincidência, depois que vi este filme li uma crítica de Pauline Kael sobre uma outra obra que não tem nada a ver com ele, em que a prima donna da crítica americana usa a expressão “melodrama absurdo”. Diacho! Isso se aplica bem a Dishonored Lady!
Este filme é um melodrama absurdo.
Uma bela mulher angustiada, quase suicida
O filme abre com dois policiais rodoviários, que usam motos, falando sobre uma estranha mulher que havia parado seu carro à beira da estrada, à noite, e estava lá, sozinha, sem fazer nada. Um policial vai até lá, pergunta se ela tem algum problema, se ele pode ajudar.
A mulher não dá a menor bola.
De repente, ela liga o carro, arranca, sai em altíssima velocidade. Os policiais vão atrás, e chegam perto do carro poucos segundos depois de ele bater violentamente em um portão.
O anjo da guarda da motorista, a bela Madeleine Damien, era dos bons. Não apenas ela não ficou gravemente ferida como a batida aconteceu justamente junto da casa de um médico, um psiquiatra, o dr. Richard Caleb (Morris Carnovsky). Ele pede que os guardas a levem para sua casa e examina Madeleine para ver se houve algum ferimento, e depois, ao liberá-la para ir embora para a casa, dá a ela um cartão, e diz que gostaria que ela ligasse caso algum dia resolvesse pular da ponte do Brooklyn.
Com o que o espectador já fica sabendo que aquela estrada era nas cercanias de Nova York.
Vemos então Madeleine na sua imensa sala, na redação da revista de moda de que é editora de arte, Boulevard, num andar alto de arranha-céu de Manhattan. E logo percebemos que todos os homens em volta dela são atraídos por sua beleza como as mariposas pelas lâmpadas dos postes. O patrão, Victor Kranish (Paul Cavanagh), baba por ela. Um assistente, Jack Garet (William Lundigan), baba por ela. Um joalheiro milionário, Felix Courtland (o papel de John Loder), baba por ela.
Madeleine demonstra gostar de ser admirada, de ser objeto de babação. E o filme passa para o espectador a impressão de que ela alimenta essa babação. Não é dito expressamente, mas fiquei com a impressão de que ela já havia tido um caso com o tal assistente Jack Garet. E logo começa um caso com o milionário Courtland.
Mas uma angústia a corrói. E, antes de pular da Brooklyn Bridge, ela vai ao consultório do dr. Caleb, o psiquiatra.
O dr. Caleb é do tipo que chega a um diagnóstico rapidamente. Sentencia que Madeleine foge da sua verdadeira natureza, exatamente como seu pai, um famoso pintor, também fazia – e o pai de Madeleine havia se matado. Para fugir de si mesma – define o dr. Caleb –, ela usa exatamente essa rede de charme que espalha entre os homens.
Madeleine muda de vida – e se apaixona
E aí então Madeleine resolve mudar de vida – radicalmente.
Abandona o emprego, muda de endereço – vai morar numa pensão. Uma boa pensão, onde terá um ambiente espaçoso, agradável, mas afinal uma pensão. Desaparece completamente do circuito elegante que frequentava, esconde-se de todos os amigos e amigas, abandona o amante milionário.
No seu novo endereço, dedica-se a pintar.
Quem é mesmo que escreveu que para de fato se apaixonar é preciso que a gente esteja distraído? Terá sido Clarice Lispector? Não sei – mas o fato é que ali, naquela sua nova vida, usando até mesmo um sobrenome diferente, Madeleine está feliz. E distraída. Aí entra na vida dela um sujeito legal, bom caráter – e bonitão. É um médico, David S. Cousins (o papel de Dennis O’Keefe, na foto abaixo), que mora naquela mesma pensão, e está inteiramente dedicado a uma pesquisa sobre alguma coisa relacionada a células que pode levar à cura de uma tal doença.
Apaixonam-se perdidamente, maravilhosamente.
Quando a vida parece sorrir abertamente para eles, muda tudo. Acontece um crime, ela é presa como suspeita.
Quando isso acontece, o filme está aí pelo meio de seus parcos 85 segundos.
O código de autocensura atrapalhou o filme
O roteiro é assinado por Edmund H. North (1911-1990), um sujeito de respeito. Ele participou do roteiro de No Silêncio da Noite/In a Lonely Place (1950), filmaço de Nicholas Ray; foi o autor do roteiro de O Dia em Que a Terra Parou (1951), o grande clássico de ficção-científica de Robert Wise. Ganhou um Oscar, dividido com Francis Ford Coppola, pelo roteiro de Patton, Rebelde ou Herói? (1970), de Franklin J. Schaffner.
O IMDb diz que, embora seus nomes não apareçam nos créditos,
André de Toth e Ben Hecht teriam dado uns pitacos no roteiro. Que é a adaptação para o cinema de uma peça de teatro de Edward Sheldon e Margaret Ayer Barnes. A peça é de 1930.
A realização do filme encontrou obstáculos com o Código Hays, o código de autocensura adotado pelos estúdios de Hollywood a partir do início dos anos 1930. Conta a Wikipedia que o Hays Office – o órgão que cuidava oara que os filmes respeitassem o código – implicou com a existência de dois casos de amor no roteiro. Os zelosos censores também encontraram no roteiro o que seria uma “noite de sórdida paixão”. As filmagens, que deveriam ter começado em janeiro de 1945, foram adiadas, enquanto providenciavam-se mudanças no roteiro. Em abril de 1946 um memorando do Hays Office ainda achava problemas no roteiro. Referências a fatos envolvendo os pais de Madeleine foram retiradas. Sumiu um caso que Madeleine teve no México, assim como a tal “noite de sórdida paixão”. As filmagens finalmente ocorreram entre maio e julho de 1946, e a estréia só aconteceu em maio de 1947.
O orçamento teve um estouro de US$ 1,2 milhão. Distribuído nos cinemas americanos pela United Artists, este Dishonored Lady foi um fracasso de bilheteria.
As mexidas no roteiro seguramente prejudicaram o filme. Tanto a Wikipedia quanto o livro The United Artists Story fazem referência ao passado conturbado de Madeleine, a segredos de seu passado que não poderiam ser revelados. Eu nem percebi que Madeleine tinha segredos no seu passado.
Eis o que diz o verbete sobre o filme no livro da United Artists:
“Dishonered Lady, a história de uma mulher com um passado escondido, deveria ter permanecido escondido das audiências. Baseado na peça de Edward Sheldon e Margaret Ayer Barnes, o roteiro de Edmund H. North não poderia ser levado a sério. Hedy Lamarr, interpretando uma editora de arte que obteve pouca satisfação com seus muitos casos, dirige seu carro rumo a um muro numa tentativa de suicídio. Acontece de o muro ser de um psiquiatra (Morris Carnovsky), que a aconselha a ‘desenvolver uma nova alma’. Ela abandona seu emprego, seu rico namorado (seu terceiro marido na vida real, John Loder), e aluga o sótão de uma pensão, onde encontra um jovem médico legal (Dennis O’Keefe).”
O texto inclui detalhes sobre o crime que acontece ali pela metade do livro, que eu julgo ser spoilers. E termina assim: “Robert Stevenson foi o responsável pela direção flácida desse fracasso de Hunt Stromberg, que ultrapassou o orçamento em US$ 1,2 milhão.”
Leonard Maltin usa o mesmo adjetivo do livro The United Artists Story: “limp”. Flácido, mole, hesitante, vacilante, segundo meu velho Michaelis. Maltin tascou apenas 1.5 estrelas em 4 para o filme e resumiu seu comentário a uma única frase com dois adjetivos duros: “Veículo limp para Lamarr como glamourosa diretora de arte de revista acusada de assassinato; ponderous.”
Ponderous, diz o Michaelis, é pesado, enfadonho, cansativo.
Uma mulher absolutamente impressionante
Achei interessante aquela informação dada en passant pelo livro da United Artists, e que está também no verbete da Wikipedia sobre o filme. Quando Dishonored Lady foi rodado, Hedy Lamarr estava casada com John Loder, o galã que interpretava Felix Courtland, o milionário. Em 1947, ano de lançamento, os dois se divorciaram.
Hedy Lamarr… Que mulher, meu Deus do céu e também da Terra.
A vienense Hedwig Eva Maria Kiesler, nascida no ano em que começou a Primeira Guerra Mundial, 1914, filha de uma húngara de Budapeste e um banqueiro ucraniano de Lviv, tinha 19 aninhos de idade quando foi a protagonista de Êxtase, co-produção Checoslováquia-Áustria de 1933 que passou para a História como o primeiro filme exibido no circuito comercial normal a mostrar um nu frontal – o dela, que então se assinava Hedy Kiesler.
Entrou igualmente para a História a história de que seu primeiro marido (foram seis), um industrial milionário do ramo de munições, Fritz Mandl (deve ter fornecido munições para o regime nazista, o filho da mãe), tentou comprar, para destruir, todas as cópias do filme. Felizmente não conseguiu.
Hedwig fugiu dele, e viraria Hedy Lamarr a partir de 1938, ano de seu primeiro filme em Hollywood, Algiers, ao lado de outro produto importado da Europa, Charles Boyer. O puritanismo e a censura americanos cortaram cenas de Êxtase para a exibição nos cinemas, mas o sucesso do filme na Europa tinha sido impressionante demais para que os grandes estúdios não quisessem comprar o passe da moça, como compravam de todo o mundo. “Foi pela sua beleza morena que ela ganhou o contrato com a MGM, não por seu talento como atriz”, diz o livro Actors & Actresses. Outro livro, Leading Ladies, conta uma boa história: Louis B. Mayer, o chefão da MGM, encontrou-se com ela em Londres e ofereceu-lhe um contrato de seis meses por US$ 125 por semana. A atriz não assinou, mas mexeu pauzinhos para fazer a viagem Londres-Nova York no mesmo navio de Mayer; quando chegou a Nova York, assinou um contrato de seis anos começando com US$ 500 por semana. Garota esperta.
Não teve, no entanto, carreira brilhante como outras estrelas importadas da Europa pelo ouro da Califórnia – Greta Garbo, Greer Garson, Marlene Dietrich, Ingrid Bergman. “Ela foi sempre escolhida para papéis sensuais e provocativos, e seu desenvolvimento como atriz foi severamente restringido pela reputação que tinha por causa das cenas de nudez de Êxtase”, diz o livro Actors & Actresses. “Paradoxalmente, sua pura beleza tornou-se um impedimento para que ela chegasse a ser considerada para papéis mais difíceis.”
Segundo o livro Leading Ladies, ela recusou os papéis principais de Laura e À Meia Luz – no primeiro brilhou Gene Tierney, no segundo, Ingrid Bergman. Esses impressionantes erros de escolha de bons papéis poderiam indicar que a moça não era lá muito inteligente.
O que seria uma avaliação absurda, já que Hedy Lamarr, além daquela beleza estonteante – que inspirou, dizem várias fontes, o rosto da Branca de Neve de Walt Disney, de 1937 – é a co-autora, ao lado do compositor George Antheil, de uma invenção que é tida hoje como a base da tecnologia wi-fi!
Não entendo lhufas, necas de pitibiribas de tecnologia, mas um texto de Patrícia Gnipper no respeitado site Canaltech dá explicações sobre o invento. Transcrevo um parágrafo:
“Durante a Segunda Guerra, Hedy Lamarr criou junto com o compositor e também inventor George Antheil um sofisticado aparelho de interferência em rádio para despistar radares nazistas, cuja patente foi feita em 1940 usando seu nome de registro (Hedwig Eva Maria Kiesler). A idéia surgiu quando a dupla estava fazendo um dueto ao piano e começaram a “conversar” entre si alterando os controles do instrumento. Ou seja, Lamarr descobriu que, se o emissor e o receptor mudassem constantemente de frequência, somente os dois poderiam se comunicar sem medo de serem interceptados pelo inimigo.”
Hedy Lamarr morreria em Orlando, Flórida, em 2000, aos 87 anos.
Sua beleza estonteante é – repito – a melhor coisa deste filme. Mas discordo de Leonard Maltin. Não acho que a direção do filme seja limp nem que a obra no final seja ponderous.
Sim, tem fatos demais, diferentes atmosferas, pertence a variados gêneros. Mas tem qualidades. Merece ser visto.
Anotação em junho de 2022
Mulher Caluniada/Dishonored Lady
De Robert Stevenson, EUA, 1947.
Com Hedy Lamarr (Madeleine Damien)
e Dennis O’Keefe (dr. David S. Cousins), John Loder (Felix Courtland, o joalheiro milionário), William Lundigan (Jack Garet, o colega de Madeleine), Morris Carnovsky (dr. Richard Caleb, o psiquiatra), Natalie Schafer (Ethel Royce), Paul Cavanagh (Victor Kranish, o diretor da revista), Douglass Dumbrille (promotor O’Brien), Margaret Hamilton (Mrs. Geiger)
Roteiro Edmund H. North (com, não creditados, André de Toth e Ben Hecht)
Baseado na peça de teatro de Edward Sheldon e Margaret Ayer Barnes
Fotografia Lucien N. Andriot
Música Carmen Dragen
Montagem John M. Foley
Desenho de produção Nicolai Remisoff
Figurinos Elois Jenssen
Produção Jack Chertok, Hunt Stromberg Productions, Mars Film Corporation. Distribuição United Artists.
P&B, 85 min (1h25)
**1/2
Um comentário para “Mulher Caluniada / Dishonored Lady”