(Disponível na Netflix em 2/2022.)
Atriz talentosa, consagrada, a inglesa Rebecca Hall resolveu estrear como roteirista e diretora levando para as telas um romance lançado em 1929 pela americana Nella Larsen que trata de racismo. Mostra talento e coragem. Para realçar o tema da obra, filmou em preto-e-branco, algo bem pouco usual hoje em dia.
É a história do reencontro, na Nova York dos anos 1920, de duas mulheres que haviam sido colegas de escola na adolescência e jamais tinham voltado a se ver. Em uma tarde de verão, ambas já casadas, com filhos, ali na faixa dos 30 e muitos anos, quase 40, encontram-se no salão de chá de um hotel elegante.
A princípio, Irene (Tessa Thompson) não reconhece Clare (Ruth Negga). É Clare que se aproxima da outra, puxa pela memória dela. Só quando Clare dá uma risada é que Irene enfim a reconhece.
Tivera dificuldade de se lembrar da antiga colega porque ela estava com o cabelo bem louro, e estivera sentada com um homem branco que a beijava. O homem havia se levantado e saído – e foi então que Clare se aproximou de Irene.
De pele bem clara, cabelos louros, Clare passava-se por branca – embora, pelos critérios da sociedade americana, fosse negra.
Os critérios da sociedade americana, que muita gente tem adotado no Brasil nos últimos anos são conhecidos: quem tem um antepassado negro, uma gota de sangue de negro, é negro. Mesmo que tenha a pele absolutamente clara. Mesmo que tenha pais, avós e bisavós brancos.
Irene percebe imediatamente que a antiga colega e amiga passava-se por branca.
Passava-se. O título original do filme usa exatamente este verbo – Passing.
O IMDb traz o seguinte item em sua página de Trivia sobre este Passing, que os exibidores brasileiros chamaram (acertadamente, me parece) de Identidade: “O termo ‘passing” se refere à prática de membros de minorias ou raças, grupos étnicos, etc, oprimidos, fingindo ser brancos (ou membros da cultura majoritária) para escapar do preconceito”. Mais adiante, outro item informa que “racial passing” era bastante comum nos anos 1920, “particularmente como uma forma de contornar as restrições impostas aos afro-americanos naquela época”.
Clare jamais contou que tem ascendentes negros
Clare diz que ela e o marido estão hospedados naquele hotel, e insiste em que Irene suba com ela para seu quarto, para que possam conversar mais à vontade.
E, naqueles primeiros minutos do filme, conta para a amiga (e para o espectador) alguns fatos básicos da sua vida. Depois que terminou o ciclo básico – época em que foi colega de Irene –, sua mãe morreu, e ela passou a viver com duas tias, mulheres brancas. (Fica bastante óbvio, claro, que um dos pais dela, assim como também de Irene, era branco.) Bem jovem ainda, ficou conhecendo John (o papel de Alexander Skarsgård). Foi paixão fulminante, e os dois logo se casaram. Viviam em Chicago – John, homem muito rico, de vez em quando tinha que viajar a Nova York a negócios, como daquela vez.
Irene, que – o espectador persegue perfeitamente – está um tanto chocada com tudo aquilo, pergunta se ela nunca contou para John que é negra (segundo os critérios americanos, repito).
Não, Clare nunca contou.
As duas estão conversando, chega o marido dela – e toma a amiga da mulher como uma branca. E em dois minutos de conversa demonstra-se pavorosamente, horrendamente racista. Diz que odeia os negros, que negros mentem e roubam.
Irene rapidamente se despede do casal e vai para casa, chocadíssima com tudo aquilo.
Bem mais tarde, quando o filme já passa bastante da metade, Irene está caminhando na rua com uma amiga e as duas cruzam com John. Ele a cumprimenta, ela fica incomodada, cada um continua sua caminhada em direções opostas, e a amiga pergunta o que tinha sido aquilo. A resposta de Irene é que ela havia conhecido aquele sujeito em um dia em que se passara por branca.
Têm a mesma cor – mas cada uma escolheu um mundo
Veremos que Irene é casada com um médico, Brian (o papel de André Holland); os dois vivem no Harlem, o bairro de negros de Nova York; estão bem de vida, moram numa casa muito ampla e confortável, de três andares, têm uma empregada, Zulena (Ashley Ware Jenkins). Parece um ótimo casamento – os dois se gostam, são carinhosos um com o outro. Os dois filhos, Ted e Junior (Justus Davis Graham e Ethan Barrett), estão entrando na adolescência, estudam em boa escola.
Irene e Brian têm amigos brancos, como Hugh (Bill Camp), um intelectual, escritor famoso, e convivem perfeitamente com isso.
De pele suavemente morena, Irene é uma ativista da causa negra, com atuação firme em uma liga de defesa dos negros. E Brian tem ódio e vergonha de seu país por causa do racismo; revolta-se profundamente (com carradas de razão, é claro) com as notícias de linchamentos de negros no Sul, e volta e meia ele e também a mulher falam em sair dos Estados Unidos, mudar para um país em que o racismo não seja tão forte quanto ali.
Depois daquele encontro no hotel, Clare passa a escrever para a amiga, propondo que se vissem novamente. Irene não está muito interessada, mas Clare insiste – e elas voltam a se encontrar, diversas, diversas vezes.
Clare se sentia sozinha no mundo branco – e volta a ser feliz com a convivência que passa a ter com Irene, e também com Brian e com os dois garotos do casal.
Vai rolar um certo flertezinho entre Brian e Clare, vai rolar um pouco de ciúme de Irene – mas nada muito sério, muito grave. Não é isso o que importa. A trama do filme é a relação entre aquela morena que, pelos critérios americanos, é negra, e se passa por branca, e a outra morena que se assume como negra.
A cor da pele das duas é bem parecida – mas cada uma escolheu viver em um mundo.
O interesse pela autora aumentou nas últimas décadas
Aprendo que Nella Larsen, a autora do livro em que o filme se baseia, nasceu em Chicago, em 1891, com o nome Nellie Walker. Sua mãe, Mary Larsen, era uma imigrante da Dinamarca, e o pai, Peter Walker, nascera nas Antilhas Dinamarquesas, ou Ilhas Virgens Dinamarquesas, no Caribe, descendente de brancos e negros, segundo se sabe.
Para se sustentar, Nella trabalhou como enfermeira, e foi também bibliotecária. Publicou alguns contos e dois romances, Quicksand (1928) e Passing (1929). Teve algum reconhecimento de seus contemporâneos, e foi a primeira mulher descendente de negros a ganhar uma bolsa de estudos da fundação Guggenheim.
A partir dos anos 90, segundo a Wikipedia, houve uma renovação do interesse por sua obra. Seus trabalhos – diz a enciclopédia – têm sido objeto de numerosos estudos acadêmicos, e ela agora é tida como “não apenas a primeira romancista da Renascença do Harlem, como também uma figura importante do modernismo americano”. Essa definição entre aspas está em The Encyclopedia of Twentieth-Century Fiction, de autoria de um Martyn Bone.
O romance Passing esteve fora de catálogo, mas foi reeditado em 2001, segundo informa o IMDb na biografia da escritora.
Em outra página, a de Trivia sobre o filme Passing, o IMDb djz que Rebecca Hall levou dez anos para chegar à forma que considerou definitiva do roteiro do filme. Ou seja: desde cerca 2010 ou 2011 a atriz inglesa escrevia esse roteiro!
A diretora Rebecca Hall tem antepassado negro
Rebecca Hall é uma daquelas atrizes que me fazem definir que filme vou ver: se é com ela, quero assistir. Gosto dessa moça desde que a vi pela primeira vez, creio que no delicioso Vicky Cristina Barcelona, que Woody Allen lançou em 2008, quando a jovem londrina estava com 26 anos – ela é de 1982, exatamente da mesma geração das atrizes deste Passing aqui, Tessa Thompson (de 1983) e Ruth Negga (de 1982).
Já estão neste + de 50 Anos de Filmes nada menos de 15 filmes em que Rebecca Hall trabalha, (Eta site bom, meu…)
O Palácio de Joe / Joe’s Palace (2007),
Vicky Cristina Barcelona (2008),
Einstein e Eddington / Einstein and Eddington (2008),
Frost/Nixon (2008),
Pronto para Recomeçar / Everything Must Go (2010),
Atração Perigosa / The Town (2010),
Sentimento de Culpa / Please Give (2010),
O Despertar / The Awakening (2011),
O Dobro ou Nada / Lay the Favorite (2012),
Uma Promessa / A Promise (2012),
Circuito Fechado / Closed Circuit (2013),
Christine (2016),
O Jantar/The Dinner (2017),
Professor Marston e as Mulheres Maravilhas / Professor Marston and the Wonder Women (2017),
Um Dia de Chuva em Nova York/A Rainy Day in New York (2018).
Eu não sabia disso, é claro, mas Rebecca Hall tem um ancestral negro. O pai dela, Peter Hall, é inglês, diretor e um dos fundadores da Royal Shakespeare Company. A mãe, Maria Ewing, uma cantora lírica, é americana, descendente holandeses e afro-americanos.
Portanto, pelos critérios americanos, Rebecca Hall é negra. Negrinha de tudo. Mais negra que piche de asfalto, que a asa da graúna, como mostra a foto abaixo.
Numa entrevista em 2018, ela contou: “Conheci o romance numa época em que eu estou estava tentando lidar com um pouco da minha história pessoal, e o mistério que cerca meu avó bi-racial do lado da minha mãe americana. Em parte, fazer este filme é uma exploração dessa história, à qual nunca realmente tive acesso.”
Uma palavrinha sobre as duas ótimas atrizes que interpretam os principais papéis.
Tessa Thompson nasceu em Los Angeles e foi criada no Brooklyn, Nova York; o pai é panamenho, descendente de negros, e a mãe é descendente de mexicanos e britânicos. Tem 66 títulos na filmografia, inclusive a franquia Creed e a elogiada série Westworld, da HBO.
Ruth Nega nasceu em Adis Abeba, a capital da Etiópia, de pai etíope e mãe irlandesa; a partir dos 4 anos de idade, foi criada na Irlanda. Foi indicada ao Oscar de melhor atriz por Loving: Uma História de Amor (2016), aquele belo drama sobre racismo, baseado em fatos reais. Está com 43 títulos na filmografia.
Que dirija mais filmes – mas não deixe de atuar
Vi este filme bom, sensível, sobre um tema importante, visto por um olhar feminino, que foi a estréia na direção e no roteiro de uma boa atriz, poucos dias depois de ver A Filha Perdida/The Lost Daughter – outro filme bom, sensível, sobre um tema importante, visto por um olhar feminino, que foi a estréia na direção e no roteiro de outra boa atriz, Maggie Gyllenhaal.
Dois filmes da mesma época, ambos lançados pela Netflix, ambos baseados em romances escritos por mulheres. Duas atrizes da mesma geração estreando na direção – de 1977, Maggie é apenas cinco anos mais jovem que Rebecca.
Achei interessante essa coincidência.
Que se dêem bem na nova carreira de diretora-roteirista. Mas que continuem também atuando, porque são atrizes preciosas O mundo agradece.
Um último registro. Meus textos são absolutamente pessoais, e não dá para não botar aqui minha opinião diante do tema do filme, o racismo, as “raças”.
Raça é uma só, a humana.
Em vez de caminhar para a frente, que seria dar cada vez menos importância à cor da pele, a humanidade parece no entanto preferir rumar para trás, para valorizar cada vez a diferença da pigmentação.
Em vez de dividir as pessoas entre as que têm bom caráter e as que têm mau caráter, passamos cada vez mais a distinguir uns dos outros com base na melanina.
Para mim, defender que quem tem um por cento de sangue negro é negro, e não mestiço, mulato, misturado, é tão insano quanto o supremacismo branco, a defesa da raça pura, que vai dar no nazismo.
Já houve manifestação de defensores do movimento negro no Brasil dizendo que miscigenação é genocídio contra raça negra.
Acho isso tão insano e criminoso quanto defender a pureza da raça ariana.
Bom é tudo junto e misturado. All Mixed Up, como diz a canção de Pete Seeger. Tudo misturado – como Nella Larsen. Como Tessa Thompson e Ruth Negga. Como Rebecca Hall. Como eu e a imensa maior parte dos brasileiros.
Quanto mais misturado, melhor.
Anotação em fevereiro de 2022
Identidade/Passing
De Rebecca Hall, EUA-Reino Unido, 2021
Com Tessa Thompson (Irene),
Ruth Negga (Clare)
e André Holland (Brian, o marido de Irene), Bill Camp (Hugh, o intelectual amigo de Irene), Gbenga Akinnagbe (Dave), Antoinette Crowe-Legacy (Felise), Alexander Skarsgård (John, o marido de Clare), Justus Davis Graham (Ted, filho de Irene e Brian), Ethan Barrett (Junior, filho de Irene e Brian), Ashley Ware Jenkins (Zulena, a empregada de Irene), Stu S. Becker (motorista de táxi)
Roteiro Rebecca Hall
Baseado no romance de Nella Larsen
Fotografia Eduard Grau
Música Devonté Hynes
Montagem Sabine Hoffman
Casting Kimberly Ostroy, Laura Rosenthal
Direção de arte Nora Mendis
Produção Nina Yang Bongiovi, Forest Whitaker, AUM Group,
Film4, Flat Five Productions, Gamechanger Films, Hungry Bull Productions, Picture Films, Significant Productions, Sweet Tomato Films,
TGCK Partners, XRM Media
P&B, 98 min (1h38)
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