(Disponível na Netflix em 9/2021.)
Duas Rainhas, suntuosa co-produção Reino Unido-EUA de 2018, tem várias características interessantes, Uma delas é o fato de que o título escolhido para o filme no Brasil foge bastante do original.
Não que Duas Rainhas seja um título totalmente inadequado. Não é: afinal, ele trata – como é dito mais de uma vez por algum personagem – da coexistência de duas rainhas dentro da mesma ilha, a rainha Mary, da Escócia, e a rainha Elizabeth – a primeira – da Inglaterra. Convenhamos que é rainha demais para uma ilha que, mesmo chamada Grã-Bretanha, é tão pequena…
Algo raro, estranho, insólito. Como haver dois papas vivos, um fenômeno que só ocorreu uma vez ao longo de 2 mil anos, quando Bento XVI renunciou ao cargo, em 2013 – e foi mostrado no magnífico filme Dois Papas/The Two Popes, de Fernando Meirelles (2019).
Não que Duas Rainhas seja um título inadequado – mas é bem longe do original. O filme se chama Mary Queen of Scots, o que deixa absolutamente claro quem é a protagonista da história. A intenção não é propriamente contar aqui a história das duas rainhas, mas a história de Mary Stuart (1542-1587).
A história de Elizabeth (1533-1603) o cinema já contou mais de uma vez. Bette Davis fez o papel da rainha duas vezes, primeiro em Meu Reino Por um Amor/The Private Lives of Elizabeth and Essex, que Michael Curtiz lançou em 1939, três anos antes de fazer Casablanca. E depois em A Rainha Tirana/The Virgin Queen (1955), de Henry Koster.
Cate Blanchett também foi a rainha Elizabeth I em dois filmes, Elizabeth (1998) e Elizabeth: A Era de Ouro (2007), duas superproduções dirigidas pelo indiano Shekhar Kapur.
Bette Davis, Cate Blanchett, agora Margot Robbie. Que sina tem a monarca da casa dos Tudors no cinema – ser interpretada por uma americana, depois uma australiana, depois outra australiana.
Neste Mary Queen of Scots, Mary Stuart não é interpretada por uma escocesa, e sim por uma americana de nascimento, filha de irlandeses e criada na Irlanda – essa extraordinária, fantástica Saoirse Ronan.
Não me lembrava disso, mas a história de Mary Stuart – e das duas décadas de conflito dela e de sua prima Elizabeth – já havia sido contada em Mary Stuart, Rainha da Escócia/Mary, Queen of Scots, de 1971, com direção de Charles Jarrott e as maravilhosas, fantásticas e inglesérrimas Vanessa Redgrave e Glenda Jackson nos papéis, respectivamente, de Mary e Elizabeth.
O cinema não se cansa nunca de contar e recontar as histórias da realeza inglesa. É um subgênero. Mereceria uma tag aqui neste + de 50 Anos de Filmes.
E não está errado o cinema. As histórias dos reis e rainhas ingleses são fantásticas, riquíssimas, saborosíssimas.
Na abertura, os últimos momentos de Mary
Eis as informações básicas sobre o contexto histórico que o filme dá ao espectador em letreiros antes do início da ação:
“Mary Rainha dos Escoceses nasceu católica. Enquanto os protestantes lutam para controlar a Escócia, Mary ainda criança é envida para a a católica França. Aos 15 anos, ela se casa com o herdeiro do trono francês.”
(Aqui seria bom acrescentar que o Delfim se tornou rei em 1559, com o nome de François II, tornando Mary a rainha da França. Mas ele morreu logo depois, em 1560.)
“Aos 18, Mary se torna viúva e volta para casa. A Escócia está agora dominada pelos protestantes e governada por seu meio irmão. Elizabeth é a rainha protestante da Inglaterra. Por nascimento, Mary tem fortes razões para reivindicar o trono da Inglaterra. Sua mera existência ameaça o poder de Elizabeth.”
Quando surgem as primeiras imagens, um letreiro informa: “Inglaterra, 1587”. As imagens são belíssimas. Uma mulher, que vemos por trás, vai de uma capela dentro de um castelo até um imenso salão repleto de homens vestidos de preto. A mulher é posta de joelhos, um homem a força a abaixar a sua cabeça, que quase encosta o chão – e aí há rápido corte e vemos pela primeira vez seu rosto, em blg close-up, como se a câmara tivesse cavado um buraco no chão para mostrar o que ocupa a tela inteira, o rosto de Saoirse Ronan – Mary, a que havia sido rainha da Escócia.
Corta, e Mary está no mar, junto da areia da praia, em posição bem semelhante àquela em que a acabávamos de ver, ajoelhada e com a maior parte do corpo lançada inteiramente para a frente. Um letreiro informa: “Escócia, 1561”. Um lance esperto de montagem de dois momentos fundamentais, o da chegada de Mary de volta da França, e o seu último momento em vida.
Muitas intimidades da história pessoal da rainha
O filme que vem em seguida mostra os eventos na vida de Mary exatamente entre aquelas duas datas, 1561 e 1587. O pouco mais de um quarto de século em que ela assumiu o trono da Escócia, lutou para ser reconhecida como a herdeira de Elizabeth ao trono da Inglaterra, passou por dois casamentos, deu à luz a um único filho, James, e enfrentou diversos tipos de complôs e traições.
Da mesma forma com que o roteirista Beau Willimon juntou os dois momentos fundamentais da vida de Mary nas primeiras sequências do filme, ele por diversas vezes junta eventos na corte escocesa com eventos na corte inglesa. Ao longo dos 124 minutos do filme, vemos várias vezes ações paralelas, simultâneas, na Escócia e na Inglaterra, Mary com seus conselheiros e logo em seguida Elizabeth com os seus, Mary com suas damas de companhia e Elizabeth com as dela.
O foco principal, repito, é sempre Mary.
O roteirista Beau Willimon – os créditos finais vão nos informar – se baseou no livro de John Guy “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart. O livro foi lançado em 2005, e sobre ele diz o site da Amazon:
“Na primeira ampla biografia de Mary Stuart em mais de 30 anos, John Guy cria um retrato íntimo e absorvente de uma das maiores mulheres da História, descrevendo seu mundo e seu lugar nele com um impressionante imediatismo. Juntando todos os documentos remanescentes do período e revelando diversas novas fontes pela primeira vez, Guy dissipa a imagem popular de Mary, a Rainha dos Escoceses, como uma dama romântica – obtendo seus fins com astúcias femininas – para estabelecê-la como um ser intelectualmente e politicamente à altura de Elizabeth I.”
Não há motivos para acreditar que o roteirista Beau Willimon tenha fugido da verdade dos fatos que já eram plenamente conhecidos sobre Mary Stuart e que esse autor John Guy expôs ainda mais em seu livro.
O que devo registrar é que este filme revela muitas intimidades da história pessoal da jovem rainha – e a abordagem de vários temas relacionados a sexo vem com uma clareza, uma explicitude difícil de ser ver em biografias de grandes nomes da História, em especial da realeza britânica.
O filme mostra a presença de negros nas cortes
Em um filme que demonstra preocupação com seguir a verdade histórica, confesso que achei estranha a presença de vários negros e mulatos tanto na Corte escocesa quanto na inglesa.
É negro, por exemplo, o Lord Randolph, o embaixador inglês junto à Corte escocesa – o papel de Adrian Lester. É mulato David Rizzio, um músico da corte de Mary (interpretado por Ismael Cruz Córdova), só para dar dois exemplos de personagens importantes.
Nunca tinha ouvido falar em negros e/ou mulatos nas cortes das Ilhas Britânicas séculos atrás. Nenhum dos trocentos filmes sobre realeza nas Ilhas Britânicas que vi tinha isso. Cheguei a ficar imaginando: será que os realizadores do filme fizeram questão de atender à cada vez maior pressão de movimentos sociais por maior diversidade nos elencos dos filmes – mesmo que isso fosse contra a verdade histórica?
Uma rápida pesquisa da Mary pela internet mostrou que o filme está certo, eu é que sou ignorante e não sabia: havia, sim, negros nas cortes inglesas ali pelo século XV em diante. Muitos negros haviam vindo da África e trabalhavam como servos – mas havia também, por exemplo, um número expressivo de músicos.
Achei interessantíssimo saber disso, interessantíssimo o filme mostrar isso – algo que realmente não estava em tantos e tantos filmes anteriores sobre a realeza das Ilhas Britânicas.
Mais uma característica interessante do filme é a escolha das duas atrizes principais.
Pelas pinturas da época, pelos relatos, o que consta é que Mary Stuart era uma mulher bonita – bem diferentemente de sua prima Elizabeth. Elizabeth ainda teve varíola, doença hoje se não erradicada ao menos absolutamente controlada, mas que na época produzia efeitos devastadores na pele de quem a contraía.
No filme, há um momento em que Elizabeth confessa que se sentia inferiorizada na comparação com Mary, por causa da beleza dela.
Pois bem. A atriz que interpreta Elizabeth, essa jovem Margot Robbie, é belíssima. Seu rosto é uma daquelas coisas luminosas, que parecem esculturas dos grandes artistas do Renascimento. Em 2019, por exemplo, ela trabalhou ao lado de duas outras estrelas de beleza impressionante, Charlize Theron e Nicole Kidman, no filme Bombshell, no Brasil O Escândalo; bombshell, a palavra do título, tem a acepção de “mulher extremamente atraente” – num perfeito exemplo de acerto total de de casting,
Já esse espanto que é Saoirse Ronan – essa atriz incomparável, fora de série, extraordinária, uma das melhores atrizes de todos os tempos na minha opinião (e já faz tempo que acho isso) – não é propriamente assim uma deusa Afrodite, uma Primavera de Boticelli. Não é feia, não, de forma alguma – mas não é uma deusa da beleza.
Achei isso fantástico: a esplendorosa Margot Robbie faz a rainha que não era bela – e as sequências em que ela aparece atacada pela varíola são absolutamente impressionantes. E a não esplendorosa Saoirse Ronan faz a rainha bela.
E as duas estão ótimas em seus papéis.
Não é muito simples o histórico das sucessões
Mas, afinal de contas, por que é mesmo que – como o filme afirma logo de cara – “por nascimento, Mary tem fortes razões para reivindicar o trono da Inglaterra”, e “sua mera existência ameaça o poder de Elizabeth”?
Se é que entendi direito o que Mary e eu lemos depois do filme numa pesquisinha (nada abrangente, nada caprichada), muito do contexto tem a ver com Henry VIII – que, de tanto a gente ouvir ser tratado como Henrique VIII, na minha cabeça é mais Henrique do que Henry.
(Registro aqui que me recuso terminantemente a chamar James de Jaime, Mary de Maria e principalmente Elizabeth de Isabel, que é como se faz na Espanha e em Portugal. Mas Henrique VIII… Vem cá: você chama o disco de Rick Wakeman de As Seis Esposas de Henrique Oitavo, ou de The Six Wives of Henry the Eighth? A peça de Shakespeare de Henry the Eighth, ou de Henrique Oitavo? Bem… Deixando de lado e entre parênteses essas pequenas digressões, vamos em frente.)
Como se sabe, como até quem só curte música pop sabe, Henry-Henrique VIII (1491-1547) rompeu com a Igreja Católica por motivos extremamente pessoais: ele não queria mais saber de Catarina de Aragão, sua primeira esposa, e estava doidinho para ter como rainha a Ana Bolena, a rigor Anne Boleyn. Como para o catolicismo o casamento é sagrado e não se rompe, Henrique bandeou-se para o protestantismo – a partir daí surgiria a Igreja Anglicana, que tem o rei da Inglaterra como o seu patrono.
Elizabeth era filha de Henrique VIII com Ana Bolena. Assumiu o trono inglês em 1558, após a morte de sua meia-irmã Mary I, a única filha do primeiro casamento de Henrique, aquele com Catarina de Aragão.
Se a gente deixar de lado o detalhe de que, entre a morte de Henrique, em 1547, e a ascensão de sua primogênita Mary, em 1553, houve dois outros reis (Edward VI, filho de Henrique com Jane Seymour, a esposa número 3, e Jane Grey, designada e deposta), até parece não haver muita confusão.
Quase a descendência direta: morre Henrique, há aí o reinado rápido de um filho varão que não deixou herdeiros, uma tentativa de emplacar essa Jane Grey que não deu certo, e aí vem Mary I, a primogênita do rei de seis expostas. Morta Mary I, vem Elizabeth, a filha do segundo casamento do rei.
Legal. Mas onde entra aí a Mary Stuart?
Mary Stuart era filha do rei James V da Escócia e Mary de Guinse – e, portanto, indiscutivelmente a herdeira do trono escocês.
Mas era também sobrinha-neta de Henrique VIII. Prima de Elizabeth I. Como se dizia que Elizabeth era infértil – e jamais se casou, o que lhe deu o epíteto de A Rainha Virgem –, Mary argumentava que seu filho, a quem deu o nome de James, o mesmo de seu pai, tinha direito ao trono da Escócia e também ao da Inglaterra.
Mary – como o filme mostra – foi obrigada a abdicar ao trono da Escócia. Morreu em 1587 aos 44 anos.
Elizabeth reinou por mais tempo do que foi dado a Mary viver: reinou por 45 anos. Morreu em 1603, aos 70 anos de idade.
Exatamente como Mary desejava, seu filho James se tornou rei da Inglaterra após a morte de Elizabeth I, que, como já foi dito, não deixou herdeiros – mas havia se tornado madrinha do filho da rival.
James I reinou entre 1603 e 1625. Foi o primeiro rei de Inglaterra e Escócia unificadas.
Um filme chato do cão
Mary foi portanto a última rainha dos escoceses e só dos escoceses. A partir de seu filho, Inglaterra e Escócia permaneceram unidas.
Na época da rainha Victoria – ela reinou por 63 anos, entre 1837 e 1901 –, dizia-se que não havia uma única hora do dia em que o Sol não estivesse a pino sobre um território do Império Britânico, sobre um país em que Victoria era a monarca.
Elizabeth II, a descendente da rainha Victoria que já quebrou aquele recorde de 63 anos de mandato, é majestade hoje sobre um reino que só pode ser chamado de unido, uma Grã-Bretanha que só pode ser chamada de grã porque tem Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte.
Por enquanto.
Se os ingleses continuarem a fazer besteiras como optar pela separação da União Européia, a sucessora daquela Elizabeth I lá da época de Mary Stuart vai perder também a Escócia.
Uau! Acho que viajandei um tanto. Quem manda aquelas ilhotas à esquerda do continente europeu serem tão fascinantes?
Viajandei tanto por esses fatos históricos que acabei não registrando aqui que achei Duas Rainhas/Mary Queen of Scots um porre. Um filme chato do cão.
Mas que o eventual leitor não queira que agora eu explique por que o filme é um porre, uma chatice atroz.
Cansei. Chega de Mary Queen of Scots.
Anotação em setembro de 2021
Duas Rainhas/Mary Queen of Scots
De Josie Rourke, Inglaterra-EUA, 2018.
Saoirse Ronan (Mary Stuart),
Margot Robbie (Elizabeth I)
e Jack Lowden (Henry Stuart, Lord Darnley), Joe Alwyn (Robert Dudley, o amor de Elizabeth), Guy Pearce (William Cecil, conselheiro de Elizabeth), Gemma Chan (Bess of Hardwick, dama de companhia de Elizabeth), David Tennant (John Knox), Martin Compston (Lord Bothwell, conselheiro de Mary), Ismael Cruz Córdova (David Rizzio, o músico da corte escocesa), Brendan Coyle (conde de Lennox), Ian Hart (Lord Maitland), Adrian Lester (Lord Randolph, o embaixador inglês), James McArdle (James, conde de Moray), Thom Petty (conde de Shrewsbury), John Ramm (Bull), Simon Russell Beale (Robert Beale), Eileen O’Higgins (Mary Beaton), Liah O’Prey (Mary Livingston), Adam Bond (Sir William Douglas), Izuka Hoyle (Mary Seton), Grace Molony (Dorothy Stafford)
Roteiro Beau Willimon
Basedo no livro de John Guy “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart”
Fotografia John Mathieson
Música Max Richter
Montagem Chris Dickens
Casting Alastair Coomer
Direção de arte James Merifield
Figurinos Alexandra Byrne
Produção Tim Bevan, Eric Fellner, Debra Hayward, Focus Features, Perfect World Pictures, Working Title Films
Cor, 124 min (2h04)
**1/2
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