As Espiãs de Churchill / A Call to Spy

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em setembro de 2021.)

A Call to Spy, no Brasil As Espiãs de Churchill, co-produção EUA-Hungria de 2019, tem algumas características especialmente interessantes. É um filme sobre a Segunda Guerra Mundial, como o título brasileiro indica; conta sobre a criação de um grupo de espiãs enviadas à França a partir de 1940 e até o fim da guerra para ajudar a resistência francesa e fornecer informações para os britânicos.

É um tema e um ambiente, portanto, masculino, ou em geral associado apenas a homens. No entanto, o filme mostra o trabalho de três mulheres que existiram de fato, que trabalharam na guerra contra os nazistas. Foi escrito e produzido por uma mulher, Sarah Megan Thomas, e dirigido por uma mulher, Lydia Dean Pilcher.

Isso é fantástico, é de fato fascinante.

Mais ainda porque não são nomes já amplamente conhecidos. Eu, pelo menos, nunca havia falar em Lydia Dean Pilcher e Sarah Megan Thomas – que também faz uma das três protagonistas da história –, nem em Radhika Apte; e não havia gravado o nome dessa bela Stana Katic.

Um filme sobre Segunda Guerra Mundial, produzido, escrito, dirigido e interpretado por mulheres – e mulheres ainda não muito famosas. Talentos no mínimo relativamente novos no pedaço.

Beleza.

“Inspirado em histórias reais”. No plural

Como é praxe em filmes que contam histórias reais, letreiros sintetizam para o espectador a situação, o contexto. Este texto aparece na tela logo após vermos os nomes das três atrizes principais, Sarah Megan Thomas, Stana Katic e Radhika Apte, nessa ordem:

“A França cai sob dominação nazista. A Grã-Bretanha fica sozinha. Winston Churchill rapidamente cria uma agência de espiões para desmantelar a máquina de guerra nazista. Sua missão na França: colocar espiões em todos os lugares para construir uma Resistência e conduzir sabotagem. Mas não há espiões experientes para esse novo tipo de missão. Um chamamento deve ser feito para atrair amadores. Os primeiros deles são lançados atrás das linhas dos inimigos para começar uma guerra secreta…”

O texto de introdução termina com “Inspirado em histórias reais”. Acho sempre importante notar quando um filme se diz “baseado em uma história real” e quando se diz “inspirado”. O “baseado em” indica que o filme tenta ser bastante fiel à verdade dos fatos, na medida do possível. O “inspirado em” mostra que não houve tanta preocupação assim em se ater com rigor ao factual; que houve mais liberalidade na construção da narrativa.

O “inspirado em histórias reais” deste A Call to Spy me parece bastante interessante. Não é uma história – são várias. Afinal, não vamos ver a história de uma mulher, mas de três.

A primeira que vemos na tela é uma mulher que, em agosto de 1941 (a data é informada em um letreiro), está presa por soldados nazistas e sendo submetida a tortura. Ela diz que seu nome é Brigitte, e não tem nada a confessar, não sabe de nada, não conhece ninguém.

Corta, vemos o nome do filme, A Call to Spy, e em seguida uma tomada de uma rua de Londres, a entrada de um prédio com a placa “Agência de Pesquisa Interserviços”. Novo letreiro informa que voltamos para três meses antes daquela sequência inicial.

É uma bela sacadinha da roteirista e produtora Sarah Megan Thomas, um bom uso do esquema da narrativa-laço, iniciar a ação com uma sequência forte, chamativa, que prende de cara a atenção do espectador, antes de voltar um pouco atrás no tempo.

Só bem mais adiante o espectador verá que, naquela sequência inicial, “Brigitte” não estava de fato sendo torturada por soldados nazistas; na verdade, seu nome é Virginia Hall (o papel da própria roterisita e produtora Sarah Megan Thomas), e aquilo que vimos na abertura do filme era parte do treinamento a que eram submetidas as mulheres escolhidas para trabalharem como espiãs do governo britânico no front, em especial na França.

No prédio da “Agência de Pesquisa Interserviços” trabalha uma equipe secreta do governo britânico, sob o comando do coronel Maurice Buckmaster (o papel de Linus Roache). O braço direito do coronel, Vera Atkins (interpretada por Stana Katic), é a segunda das três protagonistas da história. Será ela que fará a seleção das mulheres que participarão do novo programa do governo de formar espiãs que trabalharão contra os nazistas.

Inteligente, safa, perspicaz, Vera vai chamar Virginia Hall para participar do programa assim que bota os olhos nela. Da mesma maneira, percebe logo o potencial de uma indiana que trabalha ali no serviço secreto como telegrafista, uma jovem bonita, Noor Inayat Khan (interpretada por Radhika Apte),

Três mulheres fascinantes

Virgina Hall, Vera Atkins, Noor Inayat Khan. Três mulheres interessantes, fascinantes – três personagens reais, que o filme consegue delinear muito bem, com grande talento de todos os envolvidos. Ou, para ser mais exato, mais rigoroso, todas as envolvidas.

Todas as três têm verbetes na Wikipedia – e não apenas na versão em inglês, mas também na em português. Vou falar um pouco delas aqui, mas com base no que o filme mostra. Da grande enciclopédia comunitária só tirei as datas de nascimento e morte.

Virginia Hall (1906-1982) era americana de Baltimore, Maryland, e vinha de família rica. Quando jovem, durante uma caçada, levou um tombo, teve um corte feio na perna esquerda, a ferida gangrenou, ela perdeu a perna e teve que usar uma prótese de pau – com a tecnologia, ou a falta de tecnologia das primeiras décadas do século passado.

Tinha o sonho, o desejo de se tornar diplomata – mas os sucessivos governos americanos jamais a admitiram no Departamento de Estado, em parte por puro machismo, maior naquela época do hoje, em parte por causa da perna.

Como espiã, uma das primeiras do programa Special Operations Executive do governo britânico, trabalhou na região de Lyon, e demonstrou coragem, inteligência, esperteza e, sobretudo, tenacidade.

Os letreiros ao final da narrativa, antes dos créditos finais, informam que Virgínia foi a única mulher civil a receber a medalha de honra pelos serviços durante a Segunda Guerra Mundial. “Mais tarde, tornou-se a primeira agente mulher em um novo serviço de espionagem: a CIA.”

Vera Atkins (1908-2000) era uma judia romena; fugiu com a mãe para a Grã-Bretanha, foi admitida para trabalhar como secretária do coronel Maurice Buckmaster, teve papel importante na escolha das mulheres que participariam do programa Special Operations Executive – mas seus pedidos para obter cidadania britânica não eram atendidos, para a vergonha do coronel e para o desespero de Vera. O filme dá a entender que por trás das negativas do governo em conceder a cidadania àquela funcionária exemplar havia uma dose de anti-semitismo.

Noor Inauyat Khan era a mais nova das três mulheres: nascera em Moscou, em 1914, filha de mãe americana e pai indiano, originário de família nobre de muçulmanos, que se tornou um líder do sufismo, ramo místico e contemplativo do islamismo.

O filme mostra como Noor enfrentava uma dura batalha interna entre as convicções religiosas e pacifistas do pai e a necessidade de combater os nazistas, inclusive participando de atos de sabotagem destinados a matar os inimigos. Mostra, também, como a jovem foi capturada pelos nazistas, torturada e enviada para o campo de concentração de Dachau.

Das três protagonistas do filme, Noor foi a única que não sobreviveu à guerra – morreu em Dachau, em 1944. Seria postumamente condecorada com a Cruz de George, a maior condecoração civil do Reino Unido por serviços prestados.

Três atrizes talentosas

Como as três atrizes que fazem os papéis centrais ainda não são muito conhecidas, gostaria de registrar algumas informações sobre elas.

Essa moça Sarah Megan Thomas, na foto acima – nascida no interior da Pensilvânia, em 1979 – parece ser tão ativa, laboriosa, tenaz quanto sua personagem, a também americana Virginia Hall. Como já foi dito, além de fazer um dos três papéis centrais, ela foi a autora do roteiro e a produtora do filme.

As Espiãs de Churchill foi seu filme de número 10 como atriz, de número 4 como produtora e de número três como escritora. E a moça tinha apenas 40 anos em 2019, quando o filme foi lançado. Incrível.

O primeiro roteiro que ela escreveu foi de um drama romântico sobre uma atleta, uma remadora, interpretada por ela própria – Começar de Novo/Backwards, de 2012. Depois escreveu a história de um drama sobre o mundo das finanças de Nova York, Mercado de Capitais/Equity, de 2016, em que ela também trabalhou como atriz.

A moça é um espanto.

Para fazer o papel da romena Vera Atkins foi escolhida a bela Stana Katic (na foto mais abaixo), uma canadense de Hamilton, Ontario, filha de imigrantes sérvios da Croácia, nascida em 1978. Em 2021, chegou ao título número 40 de sua filmografia como atriz – que inclui a série Castle, creio que um tanto desconhecida aqui, mas que teve 173 episódios em oito temporadas, Banquete de Amor/Feast of Love (2007), de Robert Benton, e 007 – Quantum of Solace (2008), de Marc Forster.

Radhika Apte (na foto logo abaixo), que faz Noor Inayat Khan, indiana de Vellore, nascida em 1985, e portanto a mais jovem das três, é a que tem mais títulos na filmografia – 54, até 2021. Apenas mais uma prova de que a Índia faz filmes demais – é o país que mais produz filmes no mundo. Entre os sete prêmios que já recebeu, fora outras 10 indicações, há um de melhor atriz em filme internacional no Tribecca Film Festival de 2016, por Madly. A moça trabalha também no teatro e já se aventurou no roteiro e na direção de um curta-metragem, Sleepwalkers, de 2020.

Uma produtora de belos filmes que passou à direção

E, finalmente, um registro sobre a Lydia Dean Pilcher, a realizadora do filme.

Lydia Dean Pilcher é, sobretudo, uma produtora. Já produziu 44 filmes para a TV e o cinema, que incluem títulos conhecidos, alguns muito bons, como Mississippi Massala (1991), Tudo por um Sonho (1995), O Poder Vai Dançar (1999), O Talentoso Ripley (1999), Feira das Vaidades (2004), Nome de Família (2006), Amelia (2009), Você Não Conhece Jack (2010), O Relutante Fundamentalista (2012).

Interessante: vários desses filmes são dirigidos por Mira Nair. Vejo agora que ela produziu nada menos de 11 filmes da ótima cineasta indiana. Uma bela sociedade.

Lydia é a fundadora e diretora da Cine Mosaic, uma companhia de produção de Nova York.

Com essa grande experiência de produzir filmes de bons diretores, Lydia passou a também dirigir. Este aqui é seu terceiro filme como diretora e, nele, provou que leva jeito.

No site que leva o nome do grande crítico Roger Ebert, A Call to Spy recebeu a cotação de 3.5 estrelas em 4, e fartos elogios da crítica Sheila O’Malley. Ela saúda o trabalho de pesquisa feito por Sarah Megan Thomas, “um excelente drama história detalhando as experiências das ‘lady spies’ recrutadas para o Special Operations Executive (SOE) inglês durante a Segunda Guerra Mundial.”

“Dirigido por Lydia Dean Pilcher, com roteiro de Thomas (que também produziu, assim como interpretou um dos papéis principais), A Call to Spy é um drama de espionagem cativante e em muitos momentos emocionante, e um tributo a esse grupo corajoso e variado grupo de mulheres.”

Está certa a crítica do RogerEbert.com. É um bom filme.

Anotação em setembro de 2021

As Espiãs de Churchill/A Call to Spy

De Lydia Dean Pilcher, EUA-Hungria, 2019

Com Sarah Megan Thomas (Virginia Hall),

Stana Katic (Vera Atkins),

Radhika Apte (Noor Inayat Khan)

e Linus Roache (coronel Maurice Buckmaster), Rossif Sutherland (Dr. Raoul Chevain), Samuel Roukin (Christopher), Andrew Richardson (Alfonse), Rob Heaps (Paul), Laila Robins (Pirani), Joe Doyle (padre Robert Alesche), Marc Rissmann (Klaus Barbie), Mathilde Ollivier (Giselle), Lola Pashalinski (Hilda Atkins, a mãe de Vera), David Schaal (coronel Gubbins), Matt Salinger (William Donovan), Cynthia Mace (Madame Dubois), Alistair Brammer (Leo Marks), Marceline Hugot (irmã Francis), Charles Brunton (Mark), Sigrid Owen (Emilie), Jean Brassard (George), Ben Chase (James, o agente ferido), Alexa Salamé (Rose), Elise Eberle (Serena)

Roteiro Sarah Megan Thomas

Fotografia Robby Baumgartner, Miles Goodall

Música Lillie Rebecca McDonough

Montagem Paul Tothill

Casting Heidi levitt

Direção de arte Kim Jennings

Produção Sarah Megan Thomas, SMT Pictures

Cor, 123 min (2h03)

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