(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 7/2022.)
Ao Cair da Noite, no original Moonrise, de 1948, drama psicológico tido como noir feito e distribuído por produtoras pequenas, distantes dos grandes estúdios, e dirigido por Frank Borzage, é um filme elogiadíssimo pela crítica e muito bem recebido também pelos espectadores.
Tem 100% de aprovação dos 12 críticos consultados pelo site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, e 74% de aprovação dos leitores. No IMDb, o grande site enciclopédico, tem a altíssima nota de 7,1, média da avaliação de 2.600 leitores.
Foi escolhido para figurar na Criterion Collection, a mais exclusiva, caprichada, cuidadosa e, com o perdão do jogo de palavras, criteriosa produtora de DVDs que existe, ao lado da francesa MK2. É o número 921 de uma seleção que só tem (ou quase só) as maiores obras-primas do cinema mundial.
Transcrevo de cara a avaliação do Guide des Films do mestre Jean Tulard sobre Le Fils du Pendu, o título da obra em francês – o filho do pendurado:
“Uma obra interessante, porque expõe claramente e concretamente os prejuízos causados a um homem por uma infância brimée (intimidada). A crueldade de uma sociedade conduz o pai ao assassinato e em seguida a seu enforcamento. Danny sofre as consequências e a ferocidade de seus companheiros o fere para sempre. Vítima da incompreensão, é cheio de rancor e angústia. A amizade e o amor de três pessoas vão salvá-lo: um negro, Mose, que escolheu viver no meio da natureza, um surdo-mudo simplório, Billy, e por fim Gilly. É aí que intervém a força de Borzage: todos os seres podem mudar graças ao amor e à confiança do outro. O próprio Mose dirá que sua fuga da sociedade e seu refúgio na natureza foram um erro. Ele vai adicionar, à guisa de esperança, que, desde que um homem saiba voltar a conviver com seus irmãos depois de havê-los abandonado, nada se perde. Notemos também a atmosfera sufocante do filme, provocada pelos cenários e pela iluminação estranha e sombria.”
Danny é molestado por causa do crime do pai
Transcrevo também trechos do texto de Jamie S. Rich em um site chamado Criterion Confessions, em que são examinados os filmes escolhidos para participar da Criterion Collection. É bom porque ele relata a trama, o que me desobriga a escrever uma sinopse.
“O noir rural Moonrise é um pequeno filme sombrio, um melodramas psicológico pesado, e visualmente esplêndido.
“Dane Clark (de Across the Pacific) estrela como Danny Hawkins, um rapaz amaldiçoado desde muito jovem. Seu pai foi enforcado por ter assassinado o médico que, segundo ele, deixou a mãe de Danny morrer durante o parto, e Danny foi viver com sua avó (Ethel Barrymore, de None But the Lonely Heart). Rapidamente a informação sobre o pai de Danny se espalhou pela cidadezinha, e todas as crianças da escola ficaram sabendo da origem do garoto. Em uma montagem surreal, com tomadas de ângulos extremos, expressionistas, para ampliar a sensação de alienação e crueldade – toda de sombras e abstração –, vemos Danny ser molestado ao longo dos anos, insultado por causa do crime de seu pai. O principal agressor era Jerry Sykes, filho de um homem rico, e ele sempre dava surras em Danny. Isso durou até que eles se tornaram adultos. Corta para uma festa em que o Danny crescido e o Jerry crescido (Lloyd Bridges, de High Noon) brigam bêbados na floresta. As coisas vão longe demais, e Danny bate no seu algoz com uma pedra até a morte. Em pânico, ele esconde o corpo de Jerry e volta para a festa.”
“O diretor se aproveita muito bem do cenário da cidade pequena para criar uma tensão dramática quase à la (Edgar Allan) Poe. Danny está permanentemente em um estado febril de alarme ao longo de todo o filme, enquanto todos ao seu redor permanecem calmos, incluindo o xerife descontraído (Allyn Joslyn, de Only Angels Have Wings), que, calmamente, observa todos os eventos.”
Uma trama ruim, ator péssimo, uma porcaria
Na minha opinião, este Ao Cair da Noite/Moonrise é um horror, uma porcaria, um abacaxi azedo, uma coisa agressivamente ruim, abaixo de qualquer possibilidade de crítica.
Nem Ed Wood, o cara que foi considerado o pior realizador de cinema, teria coragem de fazer uma droga tão horrorosa.
E aqui me permito fazer um desabafo. Sim, claro, o eventual leitor que veio parar aqui após uma pesquisa no Google não tem nada a ver com isso, mas, diabo, quero falar.
Não tenho problema algum em não gostar de filmes que têm todo o imenso respeito da crítica. De forma alguma. Já faz muito tempo que não me incomodo por detestar obras que são queridíssimas dos críticos, do povo dos festivais, das pessoas que chamo de dotadas de narizinho arrebitado, que adoram um “filme de arte” e detestam os “filmes americanos”. Vejo filmes, e bons filmes, há quase 60 anos, e estou velho demais para me intimidar quando discordo frontalmente da opinião majoritária da crítica.
Poucas vezes, no entanto, fiquei tão absolutamente chocado diante de um troço que boa parte da crítica reverencia e eu considerei uma horrorosa porcaria quanto ao ver este filme aqui.
Meu, não é que o treco seja fraquinho. Não, não, não: é horroroso. É pavoroso. É inominavelmente ruim.
É com certa vergonha (pois sou apaixonado pelos filmes de Hollywood dos anos 30 a 60) que admito que não conhecia esse Dane Clark, que interpreta o protagonista da história. Vejo que Dane Clark (1912-1998) tem 156 títulos na filmografia. Seus filmes de maior destaque, segundo o IMDb, são Rumo a Tóquio (1943), A Mão que nos Guia (1945) e Massacre (1956) – além deste Ao Cair da Noite.
Pois bem. Na minha opinião, Dane Clark tem, no papel de Danny Hawkins, uma das piores interpretações da História do cinema!
Não é uma coisa apenas ruinzinha, não. É horrendo, é vexaminoso. Nenhum sujeito saído de um BBB e transformado em ator da Rede Globo, nenhum ator de quinta categoria de uma Escolinha do Professor Raimundo conseguiria ser pior do que esse cara.
A maravilhosa Gail Russell – meu Deus do céu e também da Terra, tadinha dela! Que mico, que horror o papel que deram para ela!
Ela faz Gilly Johnson, a professorinha da escola de crianças do lugar, uma cidadezinha pequenina do Sul pobre, rural – em algum momento do filme se fala Virginia. Num baile, o tal de Jerry Sykes a pede em casamento, e ela diz sim.
Jerry e Danny se encontram no mato, perto do local em que se realiza a festa, o baile – e aí que acontece a briga dos dois que termina com Danny matando o molestador com uma pedra e escondendo o corpo.
É tudo grotesco – mas vai piorar mais.
Assim que esconde o corpo de Jerry num pântano, Danny volta ao baile, e se impõe diante da bela Gilly, a professorinha que havia acabado de dizer sim ao pedido de casamento do sujeito agora morto. Danny a pega para dançar de maneira ríspida, violenta mesmo.
A bela Gilly diz que não quer nada com ele.
A câmara mostra as mãos da bela Gilly: elas estão nervosas, inquietas.
Poucos dias depois, Danny tasca-lhe um beijo à força.
E Gilly gosta! Apaixona-se no ato, perdidamente, pelo cara de quem ela vinha fugindo feito o diabo da cruz!
Ah, mas puta que o pariu, que história ridícula, meu!
O filme culpa a sociedade – e os críticos adoram isso
Se é uma porcaria tão grande, por que então estou perdendo tempo com ele?
Pensei bastante em não escrever nada sobre esse. Em simplesmente deixar pra lá, esquecer a porcaria.
Mas, diacho! Eu vi o filme, e tenho um site de filmes!
E então, enquanto escrevia essa anotação, tive a impressão de ter compreendido por que, afinal de contas, essa porcaria fascinou os críticos.
Há dois pontos fundamentais, me parece, que explicam esse fenômeno. Um é puramente formal. O outro tem a ver com o conteúdo. Com o que os críticos queriam ver, e acreditaram ter visto no filme.
Frank Borzage de fato faz umas tomadas fora do padrão. Aquelas coisas que eu chamo de invencionices, criativóis, fogos de artifício. Crítico de cinema adora essas coisas. Há sem dúvida alguma bons achados – como, para dar apenas um exemplo, a sequência em que Danny e Gilly estão na roda-gigante, e o xerife entra com a mulher ali, e Danny, paranóico, sente que está sendo perseguido – e se lança ao chão.
Do lado conteúdo, a questão é a seguinte: o filme culpa a sociedade, o Establishment, pelos problemas desse pobrezinho desse Danny, tadinho. Esse pobrezinho desse tadinho desse Danny é um sujeito violento, um poço de raiva e de violência, que ele exibe tanto para chegar perto da mocinha quanto para matar o bandidão. Mas, tadinho, pobrezinho, não é culpa dele – a culpa é da sociedade, do Establishment!
De cada 10 críticos de cinema nos anos 40 (assim como nos 50, 60, 70, 80…), uns 11 ou 12 eram “de esquerda”. E fazia parte do ser “de esquerda” desculpar as pessoas que eram mal tratadas pela sociedade, pelo Establishment.
“O roteiro irregular prejudica esse melodrama”
Vejo que Leonard Maltin não ficou tão embevecido com o filme quanto tantos outros críticos. Deu apenas 2.5 estrelas em 4:
“O roteiro irregular prejudica esse melodrama psicológico sobre o raivoso, alienado (personagem interpretado por) Clark, e seu drama após matar acidentalmente o filho do banqueiro que o vinha atormentando havia anos. No entanto, é belamente dirigido; preste atenção à esplêndida abertura e à sequência inicial.”
A sequência de abertura de fato é impressionante. A câmara focaliza as pernas de três homens – dois guardas e o condenado à morte na forca. Há uma poça d’água, as pernas se refletem nela. O corpo do homem balança na forca; corte rápido e um bebê chora dolorosamente no berço, enquanto acima dele um brinquedinho balança também, como o corpo do homem na forca.
Agora, “matar acidentalmente” é uma forma estranha de descrever a cena em que Danny mete uma grande pedra na cabeça do sujeito uma, duas, três vezes.
Dei uma olhadinha nos comentários dos leitores do IMDb sobre o filme. A grande maioria é de elogios entusiásticos. Poucos são os que fazem algum reparo.
É o que eu sempre digo: o que está neste texto é apenas a minha opinião pessoal. Não sou dono da verdade, de forma alguma, e minha opinião vale tanto quanto a de qualquer pessoa.
Mas que eu achei o filme um abacaxi azedo, lá isso eu achei.
Anotação em julho de 2022
Ao Cair da Noite/Moonrise
De Frank Borzage, EUA, 1948
Com Dane Clark (Danny Hawkins)
e Gail Russell (Gilly Johnson), Ethel Barrymore (a avó de Danny), Allyn Joslyn (xerife Clem Otis), Rex Ingram (Mose, o amigo filosófico), Harry Morgan (Billy Scripture, o surdo-mudo), David Street (Ken Williams), Selena Royle (tia Jessie), Harry Carey Jr. (Jimmy Biff), Irving Bacon (Judd Jenkins), Lloyd Bridges (Jerry Sykes), Houseley Stevenson (tio Joe Jingle), Phil Brown (Elmer), Harry Cheshire (J.B. Sykes, o banqueiro), Lila Leeds (Julie), Virginia Mullen (Miss Simpkins), Oliver Blake (Ed Conlon), Tom Fadden (Homer Blackstone), Steven Peck (Danny aos 7 anos), Johnny Calkins (Danny aos 13 anos), Tommy Ivo (Jerry aos 7 anos), Michael Dill (Jerry aos 13 anos)
Roteiro Charles Haas
Baseado no romance de Theodore Strauss
Música William Lava
Fotografia John L. Russell Jr.
Montagem Harry Keller
Desenho de produção Lionel Banks
Figurinos Adele Palmer
Produção Charles F. Haas, Chas K. Feldman Group Productions, Marshall Grant Pictures Production, distribuição Republic Pictures.
P&B, 90 min (1h30)
1/2
Título na França: Le Fils du Pendu. Em Portugal: Consciência em Paz.
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