Há um monte de nomes importantes nos créditos iniciais de O Signo de Vênus/Il Segno de Venere, produção italiana de 1955 que no início de 2021 estava disponível na Netflix. A começar do diretor, Dini Risi, o realizador que o grande Jean Tulard chama de “o príncipe da comédia italiana”. “Não nos aborrecemos jamais com Risi”, sentenciou o crítico em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores.
Nem seria preciso recorrer a Jean Tulard. Basta lembrar que Dini Risi é o autor de Il Sorpasso, no Brasil Aquele Que Sabe Viver, um dos grandes clássicos do início dos anos 60, um daqueles filmes que marcaram toda uma geração mundo afora, e de Perfume de Mulher, aquela beleza que os americanos refilmariam décadas depois, dando a Al Pacino o Oscar pela interpretação do oficial cego que no original era feito por Vittorio Gassman.
Entre os três autores da história está o diretor Luigi Comencini (1916-2007), outro grande nome da comédia italiana dos anos 50 e 60 – os anos em que o cinema italiano era um dos melhores do mundo, se não o melhor de todos.
Cesare Zavattini aparece nos créditos como um colaborador na redação do roteiro, o que dá ao filme um peso considerável: Zavattini (1902-1989), 118 títulos na filmografia como roteirista, é um dos nomes mais importantes do cinema mundial. Foi um dos principais responsáveis pelo estabelecimento do neo-realismo italiano, o mais relevante e influente de todos os movimentos do cinema.
Vittorio De Sica, o diretor dos grandes clássicos do neo-realismo como Ladrões de Bicicleta (1948), Milagre em Milão (1951) e Umberto D., companheiro de Zavattini em praticamente todos os seus filmes, está no elenco deste O Signo de Vênus, ao lado dos grandes astros Alberto Sordi e Raf Vallone.
Mas o maior nome de todos esses grandes nomes, naturalmente, é Sophia Loren.
“Ahi Sophia, Sophia / Sei la nostra fantasia”, como diz a canção de Sergio Endrigo em homenagem a ela.
Estava com 21 aninhos, e era bela demais da conta, bela de doer, bela de matar, bela de deixar para trás as deusas de Botticelli.
Era apenas o terceiro longa-metragem de Dino Risi (1916-2008), mas, como nota muito bem o Guide des Films de Jean Tulard, mas Sophia já era uma estrela – fez nada menos que 30 filmes entre 1950 e 1955.
Se o filme veio parar agora na Netflix, foi seguramente por Sophia – e não por Dino Risi, Vittorio De Sica, Alberto Sordi, Raf Vallone, Cesare Zavattini, Luigi Comencini.
E muito menos por Franca Valeri.
Quem?, perguntará certamente toda e qualquer pessoa que eventualmente venha a ler esta anotação.
Pois é, Franca Valeri. Seguramente pouca gente hoje já ouviu falar em Franca Valeri. O IMDb, o site enciclopédico que tem tudo, absolutamente tudo, não tem sequer uma foto de Franca Valeri.
Franca Valeri aparece várias vezes nos créditos iniciais de O Sonho de Vênus. Seu nome aparece ao lado do de Sophia Loren, antes mesmo do nome do filme – as duas são as principais atrizes, as protagonistas da história. Mas aparece também como uma das roteiristas – o roteiro é assinado por Edoardo Anton, Ennio Flaiano, Franca Valeri, Dino Risi, com a colaboração de Cesare Zavattini. E ela é também uma das autoras da história original – assinada por Edoardo Anton, Luigi Comencini e Franca Valeri.
Na verdade, a principal personagem de O Sonho de Vênus é Cesira, o papel de Franca Valeri. Agnese, o personagem interpretado por Sophia, é o segundo mais importante.
“Uma ‘lorenia’ desleixada e de mau gosto”
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre Le Signe de Vénus, em verbete assinado por H.R., Hervé Renault:
“Uma aventura suplementar da bela Sophia: desta vez, ela espera encontrar o homem da sua vida graças à astrologia. O filme é feito, evidentemente, para Sophia Loren, os atores masculinos sendo seus acessórios. A vamp italiana rodou mais de 30 filmes entre 1950 e 1955: não é necessário afirmar que uma tal profusão não poderia engendrar obras-primas. Le Signe de Vénus é uma ‘lorenia’ desleixada e de mau gosto.”
Pois é. Concordo com essa afirmação final, de que o filme é um veículo para La Loren, é desleixado, e certamente não é de bom gosto. Mas Monsieur Hervé Renault também foi desleixado. Não é Agnese, a personagem de Sophia, que mexe com astrologia. É Cesira, a personagem de Franca Valeri.
Então… Aí é que está. Apesar de todo respeito que tenho pelo cinema italiano de uma maneira geral e especificamente por Dino Risi, por Zavattini, por todos os envolvidos, apesar da minha admiração eterna por Sophia, achei este Il Segno di Venere uma bobagem sem tamanho, uma porcaria, um abacaxi – basicamente porque ele carece de uma história, uma trama, por menor que fosse, mas também porque ele não consegue delinear direito nenhum de seus personagens.
Assim, tendo em vista que achei (assim como Mary também) tudo uma coisa horripilantemente ruim, considerando que de 10 em 10 minutos eu queria saber quanto tempo faltava para acabar a bobagem, gostaria demais de usar as opiniões de outras pessoas, de saber como outras pessoas fariam uma sinopse disso que me pareceu uma ausência de história, de trama, de entrecho.
No entanto, não há muitas outras opiniões.
Consultei o Cinéguide francês, beleza de guia, 18 mil filmes resenhados com sinopses curtíssimas, com um poder de síntese que jamais terei na vida – Le Signe de Vénus não está lá. Consultei Le Petit Larousse des Films, maravilha de guia, mas Le Signe de Vénus não mereceu figurar entre os 3 mil títulos que ele resenha. Os Movie Guides de Leonard Maltin, que traziam 16 mil títulos, tampouco falam de The Signe of Venus.
A Wikipedia em inglês traz a seguinte sinopse:
“A história gira em torno de uma mulher atraente chamada Agnese (Laura), que tem muitos pretendentes. Ela vive com sua prima Cesira (Franca Valeri), que tem o problema oposto com os homens. Vittorio De Sica interpreta um poeta que precisa de dinheiro e Alberto Sordi faz o papel de um homem que negocia carros roubados.”
É mais ou menos isso aí mesmo.
Basicamente, o filme mostra duas jovens primas – uma linda, maravilhosa, outra não bela, não atraente. Todos os homens do mundo ficam loucos pela linda, ninguém dá bola para a não bela.
E é só isso aí. Não tem mais nada, não.
O que tem além disso é só detalhe – ou pouco mais que isso.
A bela é do Sul, a não bela é do Norte
A ação se passa em Roma. Cesira é do Norte, de Milão – foi para a capital à procura de trabalho, e mora no apartamento do tio, o pai de sua prima Agnese, interpretado por Virgilio Riento. O personagem é tão pouco importante que sequer tem nome. O pai sem nome de Agnese é viúvo e divide o apartamento com a tia Tina (o papel de Tina Pica).
Temos então, no apartamento, dois velhos e duas jovens – uma lindérrima, e a outra não.
Creio que não é dito explicitamente em momento algum, mas parece que há indicações de que Agnese é do Sul, talvez ali por Nápoles. O verbete sobre o filme na Wikipedia em italiano especifica que Agnese é meridiolane.
Teríamos aí, então, talvez um ponto sociológico: a moça não bela, do Norte, é ativa, trabalha; a moça belíssima, do Sul, não trabalha.
Mas o filme não parece interessado nessas sociologias, não. O que o filme mostra é que Cesira, a não bela, a do trabalhador Norte, acha que a prima meridional anda de um jeito que atrai demais as atenções dos homens. Ela faz menção às maneiras de andar da bela Agnese mais de uma vez ao longo dos intermináveis 97 minutos do filme.
Todos os homens que aparecem na história batem a mão no traseiro da bela Agnese.
Nenhum homem que aparece na história se interessa pela não bela Cesira – mas aí estou me repetindo.
Mas é que o filme é assim, ele se repete-se.
Uma vizinha da família, a Signora Pina (Lina Gennari), lê cartas, e se oferece para ler cartas para Cesira. As cartas mostram que aqueles eram os dias sob o signo de Vênus, dias propícios a que Cesira encontre o homem da sua vida – e indicam que na vida dela haverá três homens. A Sinora Pina se oferece para verificar qual deles merece suas atenções, mediante a apresentação de algum objeto de cada um deles a um pêndulo.
Os três homens que surgem na vida de Cesira são o poeta que precisa de dinheiro (o papel de Vittorio De Sica), um homem que negocia carros roubados (o papel de Alberto Sordi) e um bombeiro belo, Ignazio (o papel de Raf Vallone).
Personagens que não se sustentam de pé
Não há um único personagem neste filme que seja bem construído, que se mantenha de pé.
Os críticos de cinema de língua inglesa costumam dizer que os personagens mal construídos não têm três dimensões – são apenas desenhos esquemáticos, primários. Não ficam de pé. A definição se aplica perfeitamente aqui.
O poeta durango kid, sempre precisando de umas lirazinhas. O bandidinho que fica o tempo todo tentando vender o carro roubado para o tal do Mario, o fotógrafo (interpretado pelo então famosíssimo comediante Peppino De Filippo (1903-1980). O bombeiro bonitão.
Um bando de gente para criar a história e o roteiro – e criaram uma história que não tem história, e personagens que não ficam de pé.
A coisa mais interessante deste filme ruim demais – além da beleza fantástica, maravilhosa, ofuscante, sensacional, absurda de Sophia – é a atriz que faz a moça não bela, não atraente, essa triste Cesira.
Mary reparou nela já nos primeiros, sei lá, 10, 12 minutos.
Franca Valeri é uma atriz que tem presença, uma atriz de talento.
E aí, numa pesquisinha sobre o filme, descobre-se que, no início do projeto, era para ser uma história em torno de Cesira.
Está na Wikipedia em italiano: “O filme originariamente era baseado em um roteiro intitulado La Chiromante, concentrado completamente no personagem interpretado por Franca Valeri, e deveria ter sido dirigido por Luigi Comencini. O diretor, todavia, abandonou o projeto por se incomodar com a política hollywoodiana da produtora Titanus de reunir o melhor do cinema italiano do momento para garantir o sucesso, reduzindo Valeri ao lugar de uma co-protagonista.”
Pouco ou nada conhecida hoje fora da Itália, Franca Valeri teve uma importante carreira como atriz de cinema, teatro e TV, e como roteirista e dramaturga. No início dos anos 50, havia criado essa personagem Cesira, uma jovem milanesa que chega a Roma para trabalhar, fazer a vida.
Pelo que dá para compreender, então, este O Signo de Vênus começou como uma coisa – e acabou virando outra completamente diferente. Era para ser centrado na figura de Cesira – virou um filme em que a Agnese de Sophia Loren brilha mais que tudo.
É interessante que, ao vê-lo agora, 66 anos depois do lançamento, o que mais parece interessante – além da beleza esfuziante da jovem Sophia – seja realmente o talento dessa moça Franca Valeri.
Anotação em janeiro de 2021
O Signo de Vênus/Il Segno di Venere
De Dino Risi, Itália, 1955
Com Sophia Loren (Agnese Tirabassi),
Franca Valeri (Cesira)
e Peppino De Filippo (Mario), Alberto Sordi (Romolo Proietti), Vittorio De Sica (Alessio Spano), Raf Vallone (Ignazio Bolognini), Virgilio Riento (o pai de Agnese), Tina Pica (a tia Tina), Lina Gennari (Signora Pina, a vizinha que lê cartas), Eloisa Cianni (Daisy), Leopoldo Trieste (Pittore), Maurizio Arena (Maurice), Franco Fantasia (o médico), Marcella Rovena (Elvira), Mario Meniconi (vigia), Furio Meniconi (o dono da trattoria), Gustavo Giorgi (o comendador)
Roteiro Edoardo Anton, Ennio Flaiano, Franca Valeri, Dino Risi
Colaborou no roteiro Cesare Zavattini
Baseado em história de Edoardo Anton, Luigi Comencini e Franca Valeri
Fotografia Carlo Montuori
Música Renzo Rossellini
Montagem Mario Serandrei
Direção de arte Gastone Medin
Produção Marcello Girosi, Titanus.
P&B, 97 min (1h37)
Disponível na Netflix em 1/2021.
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