Surpreendente. Ousado. Inovador. Fantástico. Fora de série. Extraordinário. Uma imensa chatice. Um absoluto pé no saco.
Essas qualificações todas se aplicam com absoluta perfeição, como luva, a Je t’aime, Je t’aime, que mestre Alain Resnais ousou lançar exatamente em 1968, no olho do furacão da maior revolta popular que a França enfrentou desde a queda da Bastilha, ocorrida exatos 179 anos antes.
Je t’aime, Je t’aime é um experimento.
Há que se louvar os experimentos, não há dúvida alguma. Mesmo quando não conseguem ser absolutamente felizes, perfeitamente bem sucedidos. Como é o caso deste filme, na minha opinião.
Uma sequência que se repete uma porrada de vezes
O protagonista da história, Claude Ridder (o papel de Claude Rich), está mergulhando no mar, não muito longe da praia. Na verdade, bem perto da praia. Mergulha com um snorkel – aquele conjunto de máscara, nadadeiras e um tubo pelo qual respira.
A tomada em que o sujeito está mergulhando é repetida diversas vezes, Diversas, tá? Não duas ou três – mas diversas, ao longo do filme.
A tomada em que o sujeito se levanta e caminha para fora da água, enquanto a moça que está com ele, sentada à beira da água, pergunta se foi bom, e ele responde que foi ótimo, é repetida diversas vezes. Não duas, ou três, ou quatro, ou cinco, mas uma absurda quantidade de vezes. Uma porrada de vezes.
– “Foi bom?” – diz a voz feminina, a voz de Catrine (Olga Georges-Picot).
E Claude responde: – “Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
A sequência, repito, é repetida várias vezes.
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
A sequência, ínsito, é insistida várias vezes:
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
Rola então alguma coisa que a gente não compreende muito bem o que é. Esse Claude aparece em várias sequências com Catrine, várias delas na cama – mas aparece também na cama com outra mulher, que a gente não entende bem quem é, mas pode imaginar que seja uma amante que veio depois de Catrine. Parece que ela se chama Wiana Lust, e é interpretada por Anouk Ferjac.
Mas há também uma terceira mulher, de cabelos louros, curtos, que a gente também não sabe quem é.
Entre as sequências em que Claude está com Catrine e depois com Wiana, vão aparecendo de novo aquelas tomadas de Claude saindo do mar e se aproximando de Catrine:
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
Parece um disco riscado – um daqueles antigos discos de vinil que, riscados, repetiam sempre o mesmo trechinho da música, uma coisa horrorosa, irritante:
– “Foi bom?”
“Duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes. Fora disso, nada demais.”
O cineasta da memória, do tempo
Parece absolutamente sacal? Um pé no saco?
Pois é.
No entanto, tudo tem sentido. (Ou quase tudo.)
Os primeiros 10, 12 minutos de Je t’aime, Je r’aime têm, ou ao menos parecem ter, “sentido, entendimento e razão”, como diz a canção chilena.
Homens de terno acompanham, em um hospital, a situação de um sujeito que está à beira da morte. O sujeito vai melhorando, melhorando. Quando ele finalmente sai do hospital, os homens de terno se aproximam dele, oferecem a ele uma possibilidade: já que ele não está mesmo a fim de nada, que tal se fosse para um lugar interessante, para um exercício, um experimento?
O sujeito – Claude Ridder, o papel de Claude Rich – dá de ombros. Por que não?
Ficamos sabendo que Claude Ridder havia tentado o suicídio.
Os homens de terno o levam para um grande laboratório em que estão fazendo experiências de viagem no tempo com ratinhos, cobaias. Estão agora querendo experimentar uma viagem no tempo com um ser humano – ele mesmo, o cara que tentou se matar, que não tem gosto algum pela vida, e que portanto não está nem se lixando para a possibilidade de a experiência dar certo ou não.
Mestre Resnais, o cineasta da memória, do tempo, usando uma capa de ficção científica, de fantasia, para investigar a memória, o tempo!
Dá-se aí, então, algo absolutamente estranho – e claro, absolutamente fascinante.
Esses primeiros minutos do filme parecem sérios, também. Parecem algo próximo de uma ficção científica. Grande laboratório investiga as possibilidades da viagem no tempo.
Mas aí, quando os homens de terno, os cientistas, os caras do laboratório, levam Claude para o local em que ele vai ser submetido ao experimento, à viagem no tempo, tal como já haviam feito com ratinhos, cobaias,,,
O visual do lugar da experiência não tem nada a ver com o que havíamos visto nos 10, 12 minutos anteriores.
É um visual de filme de Hollywood de ficção científica B dos anos 50!
O lugar em que os cientistas colocam Claude para viajar no tempo parece uma abóbora, no fundo de uma caverna de filme de Hollywood de ficção científica B dos nos 50!
O que isso significa?, me peguei perguntando, ao ver a abóbora, agora, ao rever pela primeira vez o filme do mestre Resnais que havia visto uma única vez aos 19, 20 anos de idade, no Cine Bijou da Praça Roosevelt.
O que raios mestre Resnais quer dizer ao optar por esse visual tão deslocado do resto do filme? Isso eu realmente não consegui compreender.
As memórias não nos vêm organizadas
Bem. A repetição eterna, enervante, sacal, daquela sequência em que Claude sai do mar e Catrine pergunta se foi bom, e ele responde que viu duas enguias, uns tubarões e umas medusas gigantes, e fora disso, nada demais, ah, isso tem tudo a ver.
É de fato como um disco de vinil arranhado.
Deu uma absoluta pane no maquinário dos cientistas, e então Claude, que teoricamente deveria voltar exato um ano no passado, para o momento em que estava de férias com Catrine na praia, ficou despirocado. Em vez de ir a exatamente um ano atrás e em seguida voltar para o presente, despirocou, ferrou, danou. Sua cabeça começou a visitar – sem qualquer ordem ou lógica – momentos do seu passado.
E não é exatamente assim mesmo que nossa memória funciona?
Não é assim que nos voltam as imagens do passado? Nunca jamais em ordem cronológica, nunca jamais em tempo algum de uma forma lógica, e sim em ondas, em impulsos que não conseguimos compreender, racionalizar? Às vezes as mesmas imagens do passado não ficam voltando uma, duas, três, dez, vinte vezes, como um disco arranhado?
É claro, é óbvio. As memórias não nos vêm organizadas. Muito antes ao contrário. As memórias nos vêm como se fossem cartas de baralho que esparramamos na mesa, aleatoriamente.
Je t’aime, Je t’aime é um filme corajoso, ousado, metido a besta, muitas vezes chato que dói – e, se você prestar atenção, é uma beleza de filme.
Um monte de momentos banais, sem importância
Nos créditos iniciais, o nome de Alain Resnais aparece junto com o do escritor Jacques Sternberg – e os dois com o mesmo destaque, o mesmo peso. Como se fossem os dois os autores da obra. “Realização Alain Resnais, Roteiro Jacques Sternberg”.
Jacques Sternberg (1923-2006), de quem eu jamais tinha ouvido falar, parece ter sido uma figura interessantíssima. Nascido em Antuérpia, Bélgica, de uma família rica de judeus russos, foi um aluno sofrível, em especial na língua francesa. No entanto, foi um escritor prolífico: depois de se radicar em Paris, publicou mais de 35 livros – romances e contos, em geral no terreno do fantástico e da ficção científica. Para ele, ficção científica é apenas um braço do fantástico; escreveu um ensaio sobre isso, publicado em 1958, chamado exatamente “Une Succursale du Fantastique Nommée Science-Fiction”.
“Nos trabalhos de Sternberg”, diz um belo texto na Wikipedia, “as causas do terror não são fantasmas ou vampiros, mas a cidade moderna, em geral descrita como uma entidade gigantesca e má, pronta para destroçar os infelizes humanos que ousam viver dentro dela.”
Os títulos de alguns de seus livros são fascinantes em si mesmos: A Geometria Dentro do Impossível, A Geometria Dentro do Terror, Contos Gelados. As obras são, prossegue o texto da Wikipedia, “uma mistura bem sucedida de diversos elementos: um sentido muito negro de humor surrealista, uma noção kafkiana do absurdo, um gosto pelo macabro e uma visão sombria e pessimista do mundo e do futuro. Na ficção de Sternberg, o amor nunca é uma fonte de redenção, e sim algo impossível, quase de outro planeta.”
Sternberg e Resnais se conheceram na casa de uma amiga comum, segundo conta o livro Alain Resnais ou a Criação no Cinema, de Bernard Pingaud e Pierre Samson, lançado no Brasil pela pouco conhecida Editora Documentos. Falaram de literatura, ficção científica, histórias em quadrinhos. Algum tempo depois o cineasta perguntou ao escritor: “O que você gostaria de fazer no cinema?”
O livro dos dois estudiosos transcreve então um longo texto em que Sternberg descreve como foi todo o processo de criação do que resultaria no filme Je t’aime, Je t’aime. Dá vontade de transcrever o texto todo; vou copiar algumas partes.
“A idéia que submeti a Resnais tendia para a ficção científica. É a história de uma fracassada experiência com o tempo. Cientistas projetam um homem para o passado deste e não conseguem mais recuperá-lo. O filme se apresenta assim como uma sequência de flashbacks. Mas quando se volta para trás, no cinema, é sempre para assistir a cenas importantes, privilegiadas. É um pouco como com o psicanalista. Eu queria, bem ao contrário, escolher cenas totalmente insignificantes, tempos mortos. Je t’aime, Je t’aime é um filme onde se pode pôr tudo aquilo que se desejar. O ponto de partida é fantástico, o que se segue é banal e dilacerante, como a vida de todos os dias.”
Hum… Eu, bem ao contrário de Sternberg, não acho que a vida seja dilacerante. Mas que os acontecimentos na vida do protagonista Claude Ridder mostrados no filme são banais, lá isso é uma absoluta verdade.
Sternberg conta:
“Comecei a escrever. Fragmentos de toda espécie, cujo lugar no filme não estava determinado. Eram todas as voltas para atrás possíveis. Muitas vezes essas cenas insignificantes, banais, inacabadas, não passavam de uma ou duas páginas. Fazia de dez a trinta delas por semana e as entregava imediatamente a Resnais. Eu trabalhava sem nenhuma orientação, à minha vontade. O princípio empregado era um pouco o da escrita automática. Cada uma das cenas tinha uma data. Correspondiam a momentos determinados na vida do personagem. Mas na minha mente elas podiam ser utilizadas não importa em que ordem.”
E mais adiante:
“Continuei durante alguns meses a fabricar cenas ao acaso. E depois, um belo dia, Alain me disse: ‘Agora, já temos o bastante. Precisamos pensar em fazer o filme’. Começou por eliminar quase a metade das cenas. Sem nenhuma razão mais precisa. Ele era ao mesmo tempo draconiano e vago. ‘Não me vejo filmando isso’, ‘esta cena me aborrece’. E eu adivinhava que quando ele dizia ‘isso me aborrece’ era inútil insistir.”
Há um momento em que Sternberg faz o que me parece uma maravilhosa descrição da forma com que Alain Resnais criava:
“Alain fazia um monte de perguntas e também muitas sugestões. Sua preocupação constante era: ‘Será compreensível?’ Ele admitia as idéias mais loucas, com a condição de que tivessem uma aparência lógica.”
Esse depoimento de Jacques Sternberg é muito interessante, informativo, elucidativo. Reforça algumas impressões que tive ao rever agora o filme. De fato, Je t’aime, Je t’aime é um filme composto por “cenas insignificantes, banais, inacabadas”. De fato, a sensação que se tem é de que houve um esforço para fazer essa colcha de retalhos ter alguma lógica, ser compreensível.
Mas não creio que Alain Resnais tenha obtido pleno sucesso. Há muita coisa que me parece não ter qualquer lógica. E muita coisa que fica incompreensível – como o exemplo que dei do visual do local da experiência, que parece uma abóbora, parece coisa dos filmes B de ficção científica de Hollywood dos anos 50, e destoa do resto que vemos no laboratório.
Mas essa é apenas a minha opinião. Vamos ver outras opiniões.
“Uma atmosfera angustiante, inesquecível”
“Essa história-quebra-cabeças é fascinante”, diz Le Petit Larousse des Films. “Não se compreende verdadeiramente quem são os personagens que a animam nem o que eles representam exatamente para o herói. Seu drama é profundo, mas misterioso. Alguns raios de explicações nos dão algumas pistas, mas são insuficientes. Uma poesia surda surge desses meandros psicológicos que colocam quase em conflito não apenas o presente e o passado mas também o consciente e o inconsciente. Resnais consegue criar uma atmosfera angustiante, inesquecível.”
O Guide des Films de Jean Tulard dá 2 estrelas em 4 para o filme. Define Resnais como “agrimensor do imaginário”, e diz que o cineasta “explora mais uma vez a memória em um filme confuso que brinca com o realismo e a cronologia. O filme é hábil, particularmente inteligente e bem construído, mas não tem nem a riqueza nem a beleza das obras maiores de Resnais.”
No exato momento em que a França pegava fogo
Je t’aime, Je t’aime era um dos filmes escolhidos para a mostra competitiva do Festival de Cannes que se realizaria entre os dias 10 e 24 de maio de 1968 – exatamente no auge do movimento de estudantes e trabalhadores por reformas que paralisou a França e deixou o mundo inteiro boquiaberto, atônito. Alain Resnais e o ator Claude Rich estavam viajando de trem de Paris para Cannes quando souberam que diversos dos cineastas e atores que já estavam na cidade litorânea haviam decidido aderir à greve geral e, portanto, boicotar o festival, impedir que o festival acontecesse.
Claude Rich conta o episódio em um pequeno documentário que acompanha o filme no DVD lançado no Brasil (por uma empresa pequena, que não durou muito tempo, chamada Platina Filmes).
Segundo o ator, Alain Resnais ficou extremamente dividido ao saber da decisão dos colegas. O que fazer? Não aderir à greve, ir a Cannes, participar do festival, em respeito inclusive ao dinheiro investido pela produtora, a lendária Mag Bodard? Ou ser fiel aos colegas como François Truffaut e Louis Malle, que haviam aderido à greve geral e ao boicote ao festival?
A dúvida não durou muito. Alain Resnais desceu do trem numa das cidades em que ele fazia parada. Em vez de continuar a viagem rumo a Cannes, voltou para Paris.
Trinta e cinco anos depois, o filme foi exibido numa mostra paralela à competitiva no Festival de Cannes. Resnais e Claude Rich atravessaram o tapete vermelho para assistir à sessão.
Dá para imaginar a emoção que sentiram.
Uma emoção para ficar sempre na memória.
Anotação em março de 2021
Eu Te Amo, Eu Te Amo/Je t’aime, Je t’aime
De Alain Resnais, França, 1968.
Com Claude Rich (Claude Ridder)
e Olga Georges-Picot (Catrine), Anouk Ferjac (Wiana Lust), Alain MacMoy (o técnico que vai buscar Claude), Vania Vilers (o motorista), Ray Verhaeghe (o técnico que cuida das cobaias), Van Doude (Jan Rouffer, o chefe do centro de pesquisas de Crespel), Yves Kerboul (o técnico do quadro negro), Dominique Rozan (o médico de Crespel), Annie Bertin (Hélène Wirtz, a moça do trompete), Jean Michaud (o diretor da empresa de difusão), Claire Duhamel (Jane Swolfs), Bernard Fresson (Bernard Hannecart), Irène Tunc (Marcelle Hannecart)
Argumento e roteiro Jacques Sternberg
Fotografia Jean Boffety
Música Krzysztof Penderecki
Montagem Albert Jurgenson, Colette Leloup
Direção de arte Jacques Dugied Pace
Produção Mag Bodard, Les Productions Fox Europa, Parc Film. DVD Platina Filmes.
Cor, 94 min (1h34)
Disponível em DVD.
R, ***