A Mulher do Tenente Francês / The French Lieutenant’s Woman

2.0 out of 5.0 stars

Durante as filmagens de uma obra de época – a história de um amor turbulento, tempestuoso, na Inglaterra vitoriana –, os dois atores que fazem os papéis centrais têm um caso. E, em muitos pontos, repetem a história de ficção que estão representando.

Metalinguagem. Filme dentro do filme, história dentro da história. A vida imita a arte, que imita a vida.

Os atores que fazem os papéis duplos dos tristes amantes da segunda metade do século XIX e de atores no mundo dos anos 1980, pós-revolução feminina, pós-revolução sexual, são dois dos melhores, mais fantásticos, mais admirados de sua geração, o inglês Jeremy Irons e a americana Meryl Streep. A produção é primorosa, britanicamente perfeita, com fotografia cintilante e reprodução de época de babar. O diretor é o checo radicado na Inglaterra desde cedo Karel Reisz, nome de maior respeito; o roteiro é de um grande nome da dramaturgia britânica, Harold Pinter, e se baseia no romance de John Fowles.

Não poderia ser diferente: A Mulher do Tenente Francês foi um grande sucesso de público e crítica.

O filme teve cinco indicações ao Oscar, nas categorias de melhor atriz para Meryl Streep, melhor roteiro adaptado para Harold Pinter, melhor direção de arte para Assheton Gorton e Ann Mollo, melhor figurino para Tom Rand e melhor montagem para John Bloom.

Meryl Streep levou o Globo de Ouro de melhor atriz. Um dos 177 prêmios (inclusive 3 Oscars) que essa atriz literalmente fora de série já colecionou, até este mês de novembro de 2020 em que escrevo.

Mas… Ahnnn… Sucesso de crítica, mesmo?

Era a sensação, a lembrança que eu tinha. Ao ler alguns textos agora, depois de rever o filme pela primeira vez desde a época do lançamento, em 1981 – e achar tudo de uma chatice atroz –, comecei a ver que não houve propriamente unanimidade.

Há, é claro, respeito amplo, geral e irrestrito pelo filme. É uma obra importante, marcante.

Mas não é uma unanimidade. Basicamente porque o romance – complexo, singular, como os textos citados abaixo vão mostrar – era tido como “infilmável”.

No livro, não existe nada dessa história passada nos dias de hoje – quer dizer, nos dias da época em que o filme foi feito. Toda a ação se passa na era vitoriana. Há, no entanto, três finais diferentes.

Foi o dramaturgo Harold Pinter que inventou toda a história das filmagens, do filme que está sendo feito com base no romance que se passa no século XIX.

É fundamentalmente por causa disso, da adaptação feita na história original, que as avaliações variam muito.

“Os poderes técnicos impressionantes de Meryl Streep”

Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4:

“Um romance escandaloso entre um cavalheiro e uma mulher maculada na Inglaterra vitoriana é contrastado com um caso contemporâneo entre o ator e a atriz que estão interpretando seus papéis num filme. A justaposição é chocante, a princípio, mas vai ficando mais cativante à medida que o filme prossegue. Visualmente belo, com ricos detalhes de época, atuações soberbas; roteiro de Harold Pinter, da novela de John Fowles.”

Do Guide des Films do mestre Jean Tulard, vou transcrever – além do segundo parágrafo, em que ele faz propriamente a avaliação, e que usualmente reproduzo – também a sinopse da história, feita no parágrafo inicial. Acho interessante ver como se sintetiza a história.

“Pessoas do cinema filmam La Maîtresse du Lieutenant Français. A ação se passa por volta de 1867. Uma jovem instrutora, Sarah, finge ter sido seduzida e abandonada por um tenente francês. Ela anda a ermo pelas falésias, e um colecionador de fósseis, Charles Smithson, apesar de noivo, se apaixona por ela. Ele rompe seu noivado por ela, mas ela desaparece. Irá reencontrá-la mais tarde. Os atores do filme, Mike e Anna, acabam por se identificar com seus personagens.”

Dois rápidos comentários meus. Um detalhe sem importância: acho interessante o Guide falar em 1867, assim como Pauline Kael. Não vi referência a um ano específico em momento algum. Um detalhe de suma importância: o Guide deixa claro que Sarah finge ter sido seduzida e abandonada. Finge. “Une jeune instructice, Sarah, prétend avoir été séduite et abandonnée par un lieutenant français.” Prétendre: pretender, fingir.

Agora, a avaliação do Guide:

“Sobretudo belas imagens que nos contam uma paixão romântica. O contraponto do filme que está sendo rodado não acrescenta muita coisa. Mas há também uma sátira do espírito puritano da época vitoriana em que Pinter, o adaptador, se solta.”

Pauline Kael escreve o seguinte, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira do livro 1001 Noites no Cinema:

“Meryl Streep tem uma atuação imaculada e perfeita em termos técnicos como Sarah Woodruff, a misteriosa mulher romântica do romance de John Fowles, só que não é misteriosa. Não ficamos fascinados por Sarah; é tão distanciada de nós que só nos resta observar como Streep – e tudo mais no filme – é meticulosa. Harold Pinter, o famoso compressor que fez a adaptação, esvaziou a história, e o diretor Karel Reisz preencheu o espaço com ‘arte’ de matéria escrupulosa: cada entonação vocal é exata, os cenários de 1867 impecáveis, e os movimentos da câmara e as cores amortecidas do fotógrafo Freddie Francis soberbamente elegantes. O resultado é economia exagerada. É também tão controlado que tudo parece acontecer pontualmente, mesmo na história moderna, interpolada sobre os atores que atuam numa versão cinematográfica do livro de Fowles. Há alguns momentos belos, mas a maior parte do filme poderia estar se passando numa vitrine.”

O maravilhoso livro Cinema Year by Year 1894-2000, que traz textos sobre os filmes e os eventos mais importantes daqueles primeiros 106 anos da arte como se fossem notícias de jornal, traz o título “Meryl vira ‘inglesa’ pela heroína de Fowles”, e diz o seguinte, com a data de Nova York, 19 de setembro de 1981, o dia da avant-première do filme inglês nos Estados Unidos:

“Os poderes técnicos impressionantes de Meryl Streep estão à mostra em The French Lieutenant Woman, o filme de Karel Reisz adaptado por Harold Pinter do romance de John Fowles. Ela se transformou, inclusive com o sotaque inglês, na beleza de cabelos ruivos pré-Rafael do título, uma governanta da Inglaterra vitoriana perdida entre o geólogo Jeremy Irons e a memória de seu desaparecido oficial francês. É uma atuação formidável num filme de belo visual que vacila por causa do fracasso de Painter em traduzir a intrincada estrutura do best-seller de Fowles para as telas.”

“Se você vir o filme, o livro ainda assim vai surpreendê-lo”

O grande Roger Ebert deu 3,5 estrelas em 4 e, como o livro Cinema Year by Year, aborda o romance de John Fowles (1926-2005). Aborda logo de cara, mas sua conclusão é a inversa daquela do livro:

“Ler as últimas cem páginas de The French Lieutenant Woman de John Fowles é como ser pego um labirinto ficcional. Pensamos saber onde estamos na história, e quem os personagens são e que possibilidades estão abertas para eles, e então Fowles começa uma impressionante série de surpresas. Ele vira sua história de cabeça para baixo, sugerindo primeiro um final, depois outro, sempre de uma forma que nos força a repensar tudo o que tinha vindo antes. Essa estrutura complexa tornava – pensou-se durante um bom tempo – o romance de Fowles infilmável. Como poderiam suas surpresas ficcionais, dependendo do relacionamento entre o leitor e o narrador onisciente, ser traduzidas na natureza mais literal do cinema? Um dos diretores que pensaram em filmar The French Lieutenant Woman foi John Frankenheimer, que reclamou: ‘Não há jeito de filmar o livro. Você pode contar a mesma história em um filme, é claro, mas não do mesmo jeito. E o jeito com que Fowles conta sua história é o que faz o livro ser tão bom.’ Esse parecia ser o veredito final, até que o dramaturgo britânico Harold Pinter enfrentou o projeto.”

E Roger Ebert prossegue:

“Os roteiros anteriores de Pinter, como Accident e The Go-Between (Estranho Acidente, 1967, e O Mensageiro, 1871, ambos dirigidos por Joseph Losey), são conhecidos por uma maestria de ambiguidade, por um desenho de se aproximar da audiência em mais de um nível de realidade, e o que ele e o diretor Karel Reisz fizeram com seu filme, The French Lieutenant Woman, é ao mesmo tempo simples e brilhante. Eles resolveram descartar os dispositivos ficcionais de múltiplas camadas de John Fowles, e tentaram criar uma nova abordagem cinematográfica que vai atingir a mesma ambiguidade. Fowles nos fazia ficar a uma certa distância de seus dois tristes amantes, Sarah e Charles. Ele contava a história deles, de uma paixão que era proibida pelo peso das convenções vitorianas, e então nos convidava a chegarmos mais para trás e observar o que aquela paixão em termos de fatos e estatísticas significava sobre… bem, sobre as paixões vitorianas de maneira geral.

“Pinter e Reisz criaram uma distância similar em seu filme ao nos contar as duas histórias paralelas. Sarah Woodruff (Meryl Streep) ainda mantém sua vigília desamparada pelo tenente francês que a amou e abandonou, e ela ainda brinca com aquele jogo de gato-e-rato intrigante com o jovem obcecado (Jeremy Irons) que a deve possuir. Na outra história, passada no presente, dois atores chamados Anna e Mike estão interpretando Sarah e Charles. E Anna e Mike estão também tendo um caso proibido, embora mais convencional. Durante o tempo em que duram as filmagens, os dois são amantes tanto fora da tela quanto nela. Mas eventualmente Mike vai voltar para sua família e Anna para seu amante. Esse é um dispositivo que funciona, eu acho.”

Roger Ebert (exatamente como um seu fã que escreve um site chamado 50 Anos de Filmes) é um sujeito de textos longos. A diferença é que os dele são longos e excelentes.

Pulo um parágrafo e prossigo transcrevendo:

“A mulher do tenente francês é uma das personagens mais intrigantes da ficção recente. Ela não é apenas a aparente vítima do sexismo vitoriano, mas também (como Charles descobre) uma manipuladora. De maneira inteligente, ela usa as convenções que a limitariam como um modo de obter liberdade e poder pessoal sobre os homens. Pelo menos esta é uma forma de ver o que ela faz. Quem leu o livro saberá que há outros.

The French Lieutenant Woman é um filme belo de se ver, e maravilhosamente bem interpretado. Choveram elogios sobre Streep pela sua impressionante atuação dupla, e ela merece. Ela é abertamente contemporânea em um momento, e em seguida vitoriana de maneira gloriosa, teatral. Ao lado dela, Jeremy Irons aparece de forma convincente como o homem atormentado e frustrado pelos dois personagens de Streep. O filme é um desafio à nossa inteligência, se diverte brincando com nossas expectativas, e tem ainda um outro trunfo: ele agrada aos admiradores do romance de Fowles, mas não revela os segredos do livro. Se você vir o filme, o livro ainda assim vai surpreendê-lo, e é assim que deveria ser.”

Uau!

Aquela coisa de vagar no quebra-mar…. Papo furado!

De fato, uau. Cada cabeça, uma sentença.

É necessário registrar que John Fowles não gostou do roteiro de A Mulher do Tenente Francês, da forma com que Harold Pinter transpôs sua obra para o cinema.

John Fowles também não gostou do roteiro escrito por Stanley Mann e depois mexido por John Kohn, um dos produtores de O Colecionador/The Collector, o filme absolutamente maravilhoso de William Wyler de 1965 baseado em outro livro de sua autoria. Por isso, por não ter gostado nada do filmaço com Terence Stamp e Samantha Eggar, resolveu ele mesmo escrever o roteiro de Mago – O Falso Deus/The Magus, de 1968, dirigido por Guy Green sobre outra obra sua.

E o filme é uma absoluta porcaria, um abacaxi azedo.

Não li A Mulher do Tenente Francês – e, depois de rever agora o filme e dar uma olhada nessas críticos, posso afirmar com absoluta segurança que jamais vou ler.

Agora, quanto ao filme em si, minha opinião é bastante simples: é de uma chatice atroz.

Sim, é visualmente lindo, é imaculadamente bem feito, como já foi dito e repetido em várias apreciações que transcrevi acima.

E Meryl Streep, essa atriz absolutamente superlativa, está, além de tudo, belíssima, tanto como a contemporânea Anna quanto como a vitoriana Sarah.

Creio que, no papel de Sarah, Meryl Streep está no auge do auge da beleza – tanto quanto em A Escolha de Sofia, lançado um na depois, 1982.

Agora, é danado de chato.

Já meti o pau em Pauline Kael trocentas vezes, aqui – mas, no caso deste filme, acho a avaliação dela um brilho, uma perfeição.

Sarah não é misteriosa. Nem simpática, nem interessante. Como diz Pauline Kael, “não ficamos fascinados por Sarah”.

Na verdade, não ficamos fascinados por ninguém – nem por Sarah, nem por Charles, nem por Ernestina (Lynsey Baxter), a pobre noiva abandonada, nem por Anna, nem por Mike.

Para mim, os personagens são mal construídos. Simplesmente isso. Não sei o que Anna pensa, o que Anna sente. Apaixonou-se por Mike? Ou foi só um casinho fortuito? Chegou a pensar em romper o romance com o amante americano, Davide (Gerard Falconetti)? O espectador não fica sabendo. Anna não demonstra nada. O filme não a leva a demonstrar nada.

E há um ponto que me deixa inconformado com toda a trama, toda a história, todo o filme.

Charles constata – e o espectador vê a cena – que Anna não chegou a ser a amante, a mulher do tenente francês. E Anna garante para Charles que o tenente francês não voltará. Ora, sendo assim, por que raios é que fica todo santo dia vagando por aquele quebra-mar, fingindo que está à espera do tenente francês?

Fica ali fingindo que está à espera até que apareça um pato, um cavalheiro rico que a encha de dinheiro?

E se não aparecesse um cavalheiro rico?

Diacho, há muitos meios mais práticos, menos cansativos, mais rápidos – e mais garantidos – de encontrar um senhor que ajude uma bela moça.

Ficar vagando no quebra-mar seguramente permite que vejamos imagens de imensa beleza plástica – mas é um danado de um papo furado sem lógica, sem qualquer verossimilhança!

Anotação em novembro de 2021

A Mulher do Tenente Francês/The French Lieutenant’s Woman

De Karel Reisz, Inglaterra, 1981

Com Meryl Streep (Sarah Woodruff/Anna), Jeremy Irons (Charles Smithson/Mike)

e Hilton McRae (Sam, o criado de Charles), Lynsey Baxter (Ernestina, a noiva de Charles), Emily Morgan (Mary, a criada de Ernestina), Charlotte Mitchell (Mrs. Tranter, a tia de Ernestina), Peter Vaughan (Mr. Freeman, o pai de Ernestina), Colin Jeavons (o vigário), Liz Smith (Mrs. Fairley), Patience Collier (Mrs. Poulteney), Leo McKern (Dr. Grogan), Catherine Willmer (a empregada do Dr. Grogan), Edward Duke (Nathaniel), Richard Griffiths (Sir Tom), Michael Elwyn (Montague, o advogado de Charles), Toni Palmer     (Mrs. Endicott). Cecily Hobbs (Betty Anne), David Warner (Murphy), Alun Armstrong (Grimes), Gerard Falconetti (Davide, o amante de Anna), Penelope Wilton (Sonia, a mulher de Mike), Joanna Joseph (Lizzie)

Roteiro Harold Pinter

Baseado no romance homônimo de John Fowles

Fotografia Freddie Francis

Música Carl Davis

Montagem John Bloom

Figurinos Tom Rand

Produção Leon Clore, Juniper Films. Distribuição United Artists. DVD MGM.

Cor, 123 min

Título na França: La Maîtresse du Lieutenant Français.

Disponível em DVD.

R, **

6 Comentários para “A Mulher do Tenente Francês / The French Lieutenant’s Woman”

  1. Eu tinha tanta vontade de ver o filme porque tinha lido o romance e achado maravilhoso. Detestei. Frio, e as ‘novidades’ inseridas por Pinter não me agradaram; lá pela metade do filme estava arrependida de estar vendo. Estragou o livro. 🙁 Está entre os meus piores. Irc.

  2. Em determinado momento do filme, vê-se uma noticia de jornal sobre o Motim Indiano, postada em um muro. É uma referência histórica.

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