Até que demoraram muito para se encontrar esses dois senhores, Jim Jarmusch e Bill Murray. Porque a sensação que se tem é de foram feitos para trabalhar juntos, o diretor mais minimalista, mais nonchalant, mais suavemente hilariante, e o ator mais minimalista, mais nonchalant, mais suavemente hilariante do cinema americano das últimas muitas décadas.
Encontraram-se neste Flores Partidas/Broken Flowers, de 2005. Na filmografia de Jarmusch, fica entre o ótimo Sobre Cafés e Cigarros (2003) e Os Limites do Controle (2009), do qual jamais tinha ouvido falar. Na de Bill Murray, fica entre A Vida Marinha com Steve Zissou (2004) e A Cidade Perdida (2005).
Bill Murray é o protagonista da história – o ator aparece em praticamente todas as sequências do filme. Mas não há economia alguma em termos de mulher bonita em Flores Partidas. No elenco estão Sharon Stone, Jessica Lange, Julie Delpy, Chloë Sevigny – e ainda há Tilda Swinton, aquela grande atriz, que nunca esteve tão bela quanto aqui, com uma peruca de longos cabelos negros.
Os créditos dizem que o filme é written by Jim Jarmusch, ou seja, que ele é o autor da história original e do roteiro. Em letras bem pequenas, nos créditos finais, é dito: “inspirado em uma idéia de Bill Raden e Sara Driver”. Não dá para saber, claro, quanto a trama toda tem da idéia de Bill Raden e Sara Driver, e quanto saiu da cabeça de Jarmusch, um sujeito que normalmente cria as histórias que filma. Mas o fato é que tudo parece de autoria dele mesmo. É bem do seu estilo.
Se eu conseguisse ser minimalista como ele, e conseguisse fazer uma sinopse extremamente sintética, como seria?
Sujeito de meia-idade, bem de vida mas extremamente preguiçoso, indolente, recebe carta anônima de mulher informando que teve um filho dele 19 anos antes – e talvez o filho o procure. Empurrado, forçado por um vizinho amigo, ele vai reencontrar as quatro mulheres com quem teve relações 20 anos antes para saber qual seria a mãe do rapaz.
Uau! Cinco linhas! 340 caracteres! Para os meus padrões, esta é uma sinopse sintética, quase um hai-kai!
Vou checar no Petit Larousse des Films, um guia escrito por gente que tem o dom de fazer ótimas sinopses. Aprendo que Broken Flowers na França se chamou… Broken Flowers! Diabo! Por que não Fleurs Déchirés? O que foi feito do orgulho pela francofonia? Renderam-se ao imperialismo ianque?
“Um velho celibatário fica sabendo por uma carta anônima que tem um filho de 19 anos. Isso o faz ir atrás de suas antigas amantes e a aprender muitas coisas sobre si mesmo.”
Três linhas, 170 caracteres. Nunca vou saber sintetizar tanto…
Tudo acontece bem devagar. Afinal, é Jarmusch
Bem, mas em um filme de Jim Jarmusch com Bill Murray, não importa tanto a trama em si, a história propriamente dita, mas a maneira com que ela é contada.
E a forma com que a história desse nosso herói Don Johnston é contada é absolutamente deliciosa. Tudo acontece sem pressa alguma, até bastante devagar para o ritmo normal dos filmes atuais. Começa com uma carta sendo depositada numa caixa de Correio – uma carta num envelope cor-de-rosa. Chega o caminhão do Correio, o funcionário abre a caixa, retira as cartas depositadas. O caminhão vai até a sede do Correio daquela cidade – e aí vemos o estado de arte de como as cartas eram separadas por endereço, por código postal, no país mais rico do mundo, em 2005. Um monte de máquinas espertíssimas vai processando, separando, juntando as cartas.
E aí é impossível não lembrar da abertura de um outro filme que não tem absolutamente nada a ver com este Broken Flowers, mas que também desnuda o funcionamento de uma forma de comunicação entre os seres humanos: em Trois Couleurs: Rouge (1994), de Krzysztof Kieslowski acompanhamos como uma chamada telefônica ia percorrendo os fios de cobre de um local até outro.
É impossível não lembrar também que, em 2019, o ministro da Economia de um país periférico comentou, ao falar sobre o desejo de seu governo de privatizar os Correios, que ninguém mais escreve cartas. Mas tais recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar pra lá e voltar às flores partidas.
Vemos um avião que levanta vôo (ao longo do filme, veremos vários aviões que levantam vôo). O espectador pode imaginar que a carta do envelope cor-de-rosa está indo ali naquele avião de uma determinada cidade para outra cidade a ser determinada – embora o filme jamais vá determinar que cidade é qual.
E então vemos uma van do U.S. Mail, a ECT deles, passando por um bairro residencial. Um carteiro entrega uma carta numa casa, caminha um pouquinho e entrega aquela carta cor-de-rosa numa casa vizinha à primeira.
A carta cor-de-rosa acabou de chegar à casa de Don Johnston-Bill Murray. Fica lá no chão da sala, junto com outros envelopes – muito provavelmente vários deles do mais puro junk mail, folhetos de propaganda, coisas inúteis, e talvez um ou outro boleto de conta a pagar.
No momento em que a carta cor-de-rosa adentra a casa de Don Johnston, há uma moça bonita saindo. Sherry – o papel da gracinha da Julie Delpy – está abandonando a casa do namorado, levando embora, dentro de uma pequena mala com rodinhas, tudo o que havia de seu ali. Não havia conversado com Don, não havia tentado uma D.R. – decidiu-se a cascar fora, e estava cascando. Don, que naquele momento estava sentado na poltrona vendo na TV um filme antigo, levanta-se e tenta conversar com Sherry. Mas Sherry está decidida a partir, e Don não é lá de conversar muito, então ela vai embora e ele se senta de novo no sofá diante da TV. O filme que está passando na TV é The Private Life of Don Juan, no Brasil Os Amores de Don Juan (1934), com Douglas Fairbanks e Merle Oberon.
O vizinho de Don ali de lado, na casa pertinho, Winston (o papel de Jeffrey Wright, que está ótimo), dirá duas vezes que ele é um don juan – e veremos que ele tem razão. Don namorou muita mulher bela na vida.
Um delicioso texto vem dentro envelope cor de rosa
Don Johnston é um sujeito que mexia com computadores, e ganhou muito dinheiro na vida com isso. Não se explica exatamente o que ele fazia com computadores, mas fala-se várias vezes que ele mexia com computadores e ganhou muito dinheiro na vida com isso.
O vizinho Winston é casado com Mona (Heather Simms), tem cinco filhos bem pequenos e adora histórias de detetives, de mistérios. É muito amigo de Don – uma amizade meio engraçada, porque Winston é que fala, que toma todas as iniciativas. Don, um sujeito que após se aposentar ficou absolutamente indolente, às vezes segue o que Winston sugere. Não porque goste das sugestões de Winston – mas para não ter que discutir, argumentar.
Don lê para Winston a carta que chegou no envelope cor de rosa. O texto é interessantissimo – espero que o IMDb tenha. O IMDb tem. É assim:
Aahnnn… Antes de transcrever o que diz a carta, é necessário registrar que foi bastante divulgado que Jim Jarmusch pediu às quatro atrizes que representam as quatro ex-namoradas de Don Johnston que escrevessem uma carta como a de que trata o roteiro. Aí então ele teria retirado frases e/ou idéias das cartas escritas pelas quatro atrizes e com elas dado a forma final do texto que é apresentado no filme.
Não acredito nessa história. Acho que isso aí é cascata, papo furado, jogada de marketing. Jim Jarmusch é um danado de um marqueteiro de si próprio, mais ou menos na linhagem de um Alfred Hitchcock, um Federico Fellini.
De qualquer maneira, a carta que Don Johnston recebe, e lê para Winston e para o espectador (e que, na minha opinião, Jarmusch escreveu sem qualquer participação das quatro atrizes coisa nenhuma), é a seguinte:
“Caro Don. Às vezes a vida traz algumas estranhas surpresas. Faz quase 20 anos desde que nos vimos, mas agora há algo que eu preciso dizer para você. Anos atrás, depois que nossa história acabou, descobri que estava grávida. Decidiu manter a gravidez e tive um bebê. Um filho, seu filho. Decidi criá-lo sozinha porque nosso tempo juntos havia acabado. Meu filho está com quase 19 anos. Ele é um tanto tímido e reservado, ao contrário de você. Mas é uma pessoa sensível, maravilhosa. Uns dias atrás ele saiu de casa para fazer uma viagem misteriosa. Estou quase certa de que ele está procurando pelo pai. Contei para ele muito pouco sobre você. Mas ele é engenhoso e imaginativo. De qualquer maneira, se este for, de fato, seu endereço correto, bem, eu achei que deveria contar para você.”
O amigo prepara tudo – e nosso herói vai atrás das ex-amantes
O próprio Don Johnston não leva a carta a sério – como, de resto, não leva absolutamente nada a sério. Acha que deve ser uma piada, uma brincadeira, uma sacanagem. Mas Winston fica ligadão, ligadérrimo. Entende a carta como uma charada, um desafio, um mistério a ser desvendado – e ele é, repito, um apaionado por histórias de mistério.
Winston pede que Don faça uma lista das namoradas que teve 20 anos atrás. De posse dos nomes, vai à internet, descobre onde cada uma delas vive, e prepara todo um roteiro para que Don visite uma após outra, para tentar descobrir qual é a mãe do seu filho.
São quatro ex-namoradas vivas. Uma quinta da lista está morta.
Don jura que não fará nada daquilo – e logo em seguida começa a série de viagens atrás das quatro namoradas do passado distante.
Os encontros de Don com as quatro namoradas de 20 anos antes, o que cada uma é agora, 20 anos depois, as sequências que mostram os reencontros – o cerne do filme, afinal de contas –, tudo isso é uma absoluta maravilha.
É engraçado – há momentos de fato hilariantes. É triste, é sério – há momentos em que o espectador inevitavelmente se lembra de reencontros que teve com velhos amores, velhas paixões, e é de chorar.
É uma espécie de um painel da sociedade – a sociedade americana, no caso, mas semelhante, basicamente, ao de qualquer outra sociedade, se conseguirmos nos abstrair do fato de que aquela ali é a mais rica deste mundo de Deus e o diabo.
As atrizes que representam as ex-namoradas são, pela ordem de entrada em cena, Sharon Stone (meu Deus do céu e também da terra, como está fulgurantemente bela), Frances Conroy, Jessica Lange e Tilda Swinton.
Quando vi o filme pela primeira vez, em 2005, o ano em que foi lançado, fiz uma anotação rapidíssima, para mim mesmo: “Uma delícia de encontro do minimalismo de Jarmush com a cara única de enfado de Bill Murray, que faz um personagem à procura das ex-mulheres para tentar descobrir qual delas é a mãe de um filho adolescente que ele não sabia que tinha.”
Enquanto revia o filme agora, para escrever sobre ele para o site, fiz anotações sobre os nomes das quatro ex-namoradas, profissão de cada uma, o tipo de gente que cada uma é agora, 20 anos depois da época em conviveram com Don Johnston. Mas cheguei à conclusão de que adiantar qualquer informação sobre elas seria spoiler. Tiraria a graça (e a tristeza) de cada uma das sequências para quem ainda não viu o filme.
Basta dizer que são ótimas as sequências, todas elas.
“Um dos melhores filmes das carreiras de ambos.”
Algumas informações:
* Durante boa parte das filmagens, o título ainda era Dead Flowers, flores mortas. Num dos rápidos especiais que acompanham o filme no DVD lançado no Brasil pela Europa Filmes, aparecem as claquetes com o título Dead Flowers. Ainda bem que Jarmusch mudou para Broken Flowers. Tem muito mais a ver com o tom do filme, acho.
* Bill Murray disse que sua atuação no filme foi a melhor da sua carreira.
* Nos créditos iniciais, há uma dedicatória: “Para Jean Eustache”. O francês Jean Eustache (1938-1981) dirigiu 12 filmes; vários são documentários, outros são curtas. Entre os três longas que dirigiu está A Mãe e a Puta/La Maman et la Putain (1973), com os truffautianos Bernadette Lafont e Jean-Pierre Léaud.
* O filme tem uma das marcas registradas de Jim Jarmusch: um CD de música gravado em computador aparece em alguns de seus filmes. Aqui, o protagonista Don Johnston ganha um CD gravado por seu amigo Winston.
* O jovem que aparece na sequência final, sentado no banco de carona num carro que passa perto de Don Johnston, se chama Homer Murray. Vem a ser filho de Bill Murray.
Leonard Maltin não gostou do filme. Deu apenas 2 estrelas em 4. “O autor-diretor Jarmisch, o minimalista definitivo do cinema, está inescrutável como sempre, mesmo com um elenco classe A. Intrigante, mas a rigor não satisfatório.”
Já o maravilhoso site AllMovie deu 4 estrelas em 5, e a crítica de Perry Seibert termina assim: “A dupla compreende como investir os menores momentos e gestos com profundeza e sentimento. Broken Flowers é um dos melhores filmes das carreiras de ambos.”
É de fato uma beleza de filme. Uma maravilha de filme. Adorei rever – dá vontade de ver mais uma vez ainda.
Anotação em agosto de 2019
Flores Partidas/Broken Flowers
De Jim Jarmusch, EUA-França, 2005
Com Bill Murray (Don Johnston)_
e Jeffrey Wright (Winston), Julie Delpy (Sherry, a namorada), Sharon Stone (Laura, a primeira ex), Alexis Dziena (Lolita, a filha de Laura), Frances Conroy (Dora, a segunda ex), Christopher McDonald (Ron, o marido de Dora), Jessica Lange (Carmen, a terceira ex), Chloë Sevigny (a secretária de Carmen), Tilda Swinton (Penny, a quarta ex), Pell James (Sun Green), Mark Webber (o garoto), Homer Murray (o garoto no carro), Heather Simms (Mona, a mulher de Winston), Jennifer Rapp (garota no ônibus), Nicole Abisinio (garota no ônibus)
Roteiro Jim Jarmusch
“Inspirado em uma idéia de Bill Raden e Sara Driver”
Fotografia Frederick Elmes
Música Mulatu Astatke
Montagem Jay Rabinowitz
Casting Ellen Lewis
No DVD. Produção Focus Features, Five Roses, Bac Films. DVD Europa Filmes.
Cor, 106 min (1h46)
R, ***1/2
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