Dr. Fantástico / Dr. Strangelove Or: How I Learned To Stop Worrying and Love The Bomb

4.0 out of 5.0 stars

Há filmes que ficam velhos, datados. Os que abusam dos maneirismos, dos modismos de seu tempo, esses tendem a envelhecer bem rapidamente, ao contrário dos que optam por uma narrativa mais escorreita, mais clássica. Estes últimos são naturalmente mais tendentes a virarem clássicos.

Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, pertence a uma cepa mais rara – a dos filmes que, em vez de envelhecer, vão se demonstrando, à medida que o tempo passa, cada vez mais atuais.

Pensei muito nessa coisa da incrível atualidade do filme ao vê-lo novamente agora, neste duro, pesado 2020, 56 anos depois de seu lançamento. E me encantou ver que bons críticos já haviam assinalado essa característica do filme muitos anos atrás.

“… brilhante comédia de humor negro, que parece melhor a cada ano que passa”, escreveu Leonard Maltin, o autor do guia de filmes mais vendido do mundo no tempo em que se vendiam guias de filmes.

“Mais relevante a cada ano que passa, o Dr. Strangelove de Kubrick, ruidosamente engraçado mas mortalmente sério, contribuiu muito para trazer técnicas e preocupações do cinema anticomercial para as produções convencionais”, diz o CineBooks’ Motion Picture Guide.

(Na verdade, a expressão usada é “underground cinema”; preferi usar anticomercial, por achar mais apropriado do que subterrâneo, secreto. Mais adiante volto a essa questão de “underground cinema”.)

E o grande Roger Ebert escreveu: “Visto depois de 30 anos, Dr. Strangelove parece notavelmente fresco e sem data – uma sátira perspicaz, irreverente, perigosa.”

Um filme fresco, sem ser datado, que parece melhor, mais relevante a cada ano que passa…

E esses textos aí foram escritos há mais de dez anos… Muito antes de o planeta se vir às voltas com a crescente maré do populismo de extrema direita.

Dr. Strangelove – a gente constata a cada revisão – não é apenas um filme extraordinário que alerta sobre a iminência de um conflito de nuclear que aniquilaria todas as formas de vida no planeta.  Ele é exatamente isso, sim, sem dúvida alguma, e por isso causou um impacto tremendo mundo afora, quando foi lançado, em 1964, no auge da Guerra Fria, poucos meses depois da crise dos mísseis soviéticos em Cuba – o momento em que a humanidade chegou mais perto de sua extinção até agora.

É o mais brilhante, mais inteligente, e mais assustador filme que já foi feito sobre a iminência do fim do mundo, do Apocalipse com a Guerra Fria.

Mas é mais.

É um dos mais brilhantes, mais inteligentes e mais assustadores filmes que alertam para o perigo do fanatismo, da cegueira ideológica.

Dois anos depois da crise dos mísseis. Dezenove anos depois da derrota do nazismo ao final da Segunda Guerra. Uns 50 anos antes do avanço das trevas com Donald Trump, Steve Bannon, Matteo Salvani, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro.

A única comédia da obra densa, pesada do cineasta

Stanley Kubrick (1928-1999) era um sujeito que fazia dramas sérios, pesados, densos. Como é muito bem dito no verbete sobre Dr. Fantástico no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, “Kubrick retornaria ao tema da ameaça em potencial representada pela dependência para os computadores em 2001: Uma Odisséia no Espaço, à questão da violência política e institucional em Laranja Mecânica e à selvageria surreal da guerra em Full Metal Jacket”.

Realizou poucos filmes. Bem poucos, na verdade – apenas 12 longa-metragens, ao longo de 44 anos, entre 1955, ano de A Morte Passou por Perto/Killer’s Kiss, e 1999, o de De Olhos Bem Fechados/Eyes Wide Shut.

Dos 12 filmes que fez, 11 são dramas sérios, pesados, densos. Dr. Strangelove é a única comédia. É um filme ruidosamente engraçado, como bem disse o Cinebooks’ – ao revê-lo agora para finalmente anotar sobre ele, depois de ter visto três vezes, em 1968, 1981 e 1999, dei gargalhadas nas sequências horripilantemente engraçadas. Mesmo sabendo muito bem que é um filme mortalmente sério, para citar de novo a bela definição do Cinebooks’.

Esse é um ponto importante – por que motivo Kubrick teria resolvido fazer desse tema mortalmente sério uma comédia.

A base do roteiro é um livro mortalmente sério, de autoria de Peter George (1924-1966), um oficial da RAF, a Royal Air Force britânica, publicado na Grã-Bretanha com o título de Two Hours to Doom, duas horas para o fim  de tudo, e nos Estados Unidos como Red Alert. Nos créditos, é dito que o roteiro foi escrito por Kubrick, Terry Southern e o próprio Peter George.

Tanto o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer quanto o 501 Must-See Movies abordam esse ponto – a transformação de uma história mortalmente séria em uma comédia. Diz o 1001 Filmes: “Kubrick adorou a história, mas achou que as pessoas andavam tão impressionadas com a ameaça de aniquilação que, em processo de negação, ficariam apáticas a um documentário ou drama sobre a questão nuclear. Ele surpreenderia a platéia ao tornar a perspectiva concreta de exterminação global em alguma coisa engraçada e provocante, contada com tática de história em quadrinhos.”

O livro 501 Must-See Movies diz o seguinte: “Ao tentar adaptar Red Alert, de Peter George, um romance sério sobre o holocausto causado pela inflexível estratégia militar e política, Kubrick compreendeu que era impossível fazer um filme direto a partir da estrutura ridícula. Uma mudança para a sátira se provou muito mais bem sucedida, e permitiu uma segunda colaboração entre Kubrick e Peter Sellers (a primeira havia sido a auspiciosa colaboração em Lolita dois anos antes).”

Peter Sellers está extraordinário nos três papéis

Um pequeno documentário que acompanha o filme no DVD, A Arte de Stanley Kubrick dos Curtas ao Dr. Fantástico, traz depoimentos que indicam que a presença de Peter Sellers, aquele extraordinário ator, um dos maiores cômicos da História do cinema, pesou nessa decisão de Kubrick de transformar a história apavorante da destruição da humanidade e do planeta em uma sátira, uma comédia.

O longo texto do Cinebooks’ diz o seguinte sobre essa questão:

“Significativamente, Kubrick pretendia que sua adaptação do romance Red Alert de Peter George fosse um drama (…) Todavia, como notou Gene D. Phillips no livro Stanley Kubrick: A Film Odyssey, o realizador decidiu fazer o filme como uma ‘comédia de pesadelo’ depois de descobrir, enquanto tentava dar vida ao roteiro, que ele se via continuamente forçado a deixar de lado coisas ‘que eram ou absurdas ou paradoxais, a fim de evitar que o roteiro ficasse engraçado; e essas coisas pareciam estar perto da essência das cenas em questão’. Colaborando com George e Terry Southern, Kubrick criou um roteiro imensamente inteligente, cheio de cenas e diálogos hilariantemente memoráveis, enriquecidas pelas contribuições improvisadas do talentoso elenco.”

O Cinebooks’ afirma que “na época do lançamento do filme, nenhum dos membros do elenco tinha atingido realmente o status de astro (embora Sellers e Scott fossem atingi-lo mais tarde, naturalmente)”.

Não vou discutir com o Cinebooks’. Então vamos considerar que Peter Sellers ainda não era, em 1964, um astro – embora já tivesse feito o papel do Inspetor Clouseau em A Pantera Cor-de-Rosa original, também de 1964. E George C. Scott já tivesse feito filmes tão importantes quanto A Árvore dos Enforcados, Anatomia de um Crime (ambos de 1959) e Desafio à Corrupção (1961).

O documentário que citei logo acima mostra que Kubrick havia ficado impressionado com Peter Sellers quando filmaram Lolita – o ator inglês interpreta um dos personagens centrais, Clare Quilty, que, numa determinada sequência, se fantasia de uma outra pessoa completamente diferente – a rigor, parecem dois papéis diferentes.

Não tenho elementos para provar isso, mas penso que a presença de Peter Sellers no elenco, e seu fantástico talento cômico, também pesou na decisão de Kubrick de contar a história tenebrosa em forma de sátira, comédia.

Peter Sellers está não menos que brilhante, espetacular, nos três papéis que interpreta – o do capitão Lionel Mandrake (na foto acima), da Royal Air Force, que trabalha como o segundo em comando junto ao general Jack D. Ripper interpretado por Sterling Hayden, o do presidente dos Estados Unidos Merkin Muffley (na foto logo abaixo), e o do Dr. Strangelove (na foto mais abaixo), o cientista que havia servido ao nazismo e agora era o principal responsável pela criação das novas armas na máquina de guerra americana.

No auge da Guerra Fria, o pavor do extermínio

Sou dos que gostam de datas.

Em meados de abril de 1961 houve a fracassada tentativa de invasão de Cuba por adversários do regime comunista de Fidel Castro, que ficou conhecida como a Invasão da Baía dos Porcos. A tentativa teve todo o apoio do governo americano.

Em outubro de 1962 houve a crise dos mísseis: a União Soviética de Nikita Kruschev preparava-se para instalar mísseis atômicos em Cuba, a menos de 200 quilômetros do território americano. Os Estados Unidos de John F. Kennedy determinaram um bloqueio naval da ilha. Se navios soviéticos tentassem se aproximar de Cuba, haveria retaliação.

Ponto 999 na escala de 1 a 1.000 do perigo de uma guerra nuclear.

Não tem tanta importância assim na História da humanidade, mas em maio de 1963 foi lançado o segundo álbum do jovem Bob Dylan, em que ele cantava uma música, “A Hard Rain’s a-gonna Fall”, que era o perfeito reflexo do medo das pessoas de um holocausto nuclear. E, no mesmo ano, Joan Baez cantava em seus concertos – transformados logo em seguida nos discos Joan Baez In Concert 1 e 2 – a canção “What Have They Done to the Rain”, uma parábola sobre a chuva ácida pós holocausto nuclear.

Em 29 de janeiro de 1964 Dr. Sttrangelove estreou simultaneamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Em 7 de outubro daquele mesmo ano de 1964 iria estrear nos Estados Unidos outro filme falando exatamente sobre as mesmas coisas que Dr. Strangelove – um cochilo, um vacilo, e começa a guerra nuclear.

Chama-se Fail Safe, no Brasil Limite de Segurança – e é um filme extraordinário. É dirigido pelo grande Sidney Lumet, e, como Dr. Strangelove, mostra o presidente dos Estados Unidos falando ao telefone com o primeiro-ministro soviético. Embora não confesse isso nos créditos, Fail Safe também se inspira no livro do militar inglês Peter George, conforme anota o IMDb.

Quando vi Fail Safe, anotei: “Não poderia haver dois filmes mais diferentes sobre exatamente o mesmo assunto. Enquanto Kubrick optou pela farsa, pela comédia, pela ironia, pela gozação, o muitíssimo mais politizado, engajado Lumet fez seu filme de forma séria, pesada, densa, quase como um documentário. No filme de Kubrick, a guerra começa por causa da estupidez dos homens. No de Lumet, por causa do mal funcionamento da máquina de guerra: um problema técnico do quartel-general do Comando Aéreo Estratégico em Omaha faz com que a ordem de bombardear seja passada para um avião.”

A guerra é provocada da estupidez de um fanático

Em Dr. Fantástico, a guerra começa por causa da estupidez dos homens, eu escrevi. E este é um ponto importante, fundamental: no filme de Kubrick a guerra final acontece não por um erro de um computador, por uma falha mecânica, por um equívoco, por uma fatalidade – mas por causa da estupidez humana. Por causa do fanatismo, da cegueira ideológica.

O general Jack D. Ripper – o papel, repito, do grande Sterling Hayden, na foto abaixo – é um fanático. Um desses seres lunáticos, loucos de pedra, idiotas, imbecis, que falam coisas absolutamente sem sentido, sem nenhum lastro de verdade, sem nada a ver com a lógica.

É um anticomunista completamente fanático. Tem a mais absoluta certeza de que os russos estão tramando para dominar os Estados Unidos através do envenenamento da água.

Comandante de uma base aérea responsável por alguns dos gigantescos bombardeiros B-52 que carregam ogivas nucleares, ele dá a ordem em código para que eles ataquem alvos da União Soviética. E manda que sejam cortadas todas as ligações da base com o resto do mundo – de tal maneira que ninguém consiga entrar em contato com ela para mudar a instrução dada aos pilotos e suas tripulações.

Para seu auxiliar imediato, o capitão inglês Lionel Mandrake (um dos três papéis de Peter Sellers, repito), o general Ripper desfia seu discurso sem pé nem cabeça, sem lógica alguma, louco, completamente louco:

– “A fluoridação da água é a trama comunista mais monstruosamente concebida e perigosa que já tivemos que enfrentar.”

– “Mandrake, você já viu um comuna beber um copo de água?”

– “Mandrake, você sabe o que Clemenceau uma vez disse sobre a guerra? (Georges Benjamin Clemenceau, 1841-1929, primeiro-ministro da França entre 1917 e 1920, a época do final da Primeira Guerra Mundial.) Ele disse que a guerra é importante demais para ser decidida pelos generais. Quando ele disse isso, 50 anos atrás, ele poderia estar certo. Mas hoje a guerra é importante demais para ser decidida pelos políticos. Eles não têm nem a experiência, nem o treinamento, nem a inclinação para o pensamento estratégico. Não posso mais ficar sentado e permitir a infiltração comunista, a doutrinação comunista, a subversão comunista e a conspiração comunista internacional que pretende impurificar todos os nossos preciosos fluidos corporais.”

– “Mandrake, você entende que, além da fluoridação da água, veja, há estudos sendo conduzidos para fluoridar o sal, a farinha, os sucos de frutas, a sopa, o açúcar, o leite… O sorvete. O sorvete, Mandrake, o sorvete das crianças. (…) Você sabe quando a fluoridaçao começou? Em 1946, Mandrake. Coincide com a conspiração comuna do pós-guerra! É incrivelmente óbvio, não é? Uma substância estrangeira é introduzida nos nossos preciosos fluidos corporais sem que o indivíduo saiba. Certamente sem qualquer escolha. É assim que os comunas agem.”

Nessa altura, o capitão inglês resolve fazer uma pergunta: – “Ahn, Jack, Jack… Me diga, me diga, Jack. Quando foi que você começou a… se tornou… bem, a desenvolver essa teoria?”

E o general Ripper: – “A primeira vez que tomei consciência disso, Mandrake, foi durante o ato físico do amor. Sim, um profundo sentido de fadiga… Um sentimento de vazio se seguiu. Felizmente eu… eu fui capaz de interpretar esses sentimentos corretamente. A perda da essência. Posso assegurar a você que isso não voltou a ocorrer, Mandrake. As mulheres… Ahnn… As mulheres sentem meu poder e elas procuram a essência da vida. Eu, ahnn… Eu não evito as mulheres, Mandrake. Mas… eu nego a elas a minha essência.”

Pode um discurso desse?

Claro que pode. Temos ouvido coisas parecidas saídas da boca de Donald Trump e do sujeito que no Brasil macaqueia o americano.

Ou o governo Bolsonaro não tem falado de vírus chinês? O chanceler lelé, o tal do Ernesto Araújo, o Dudu Zero Três Bom de Chapa, o ex-ministro Abraham Weintraub não falaram muito do vírus comunista? Que a China, mancomunada com a OMS, espalhou pelo mundo o vírus da gripe aviária em 2013, para poder crescer economicamente?

A questão ambiental só importa “aos veganos que comem vegetais”, já afirmou Jair Bolsonaro. “O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer.” “Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também.”

E ainda:

“Vamos acabar com o cocô no Brasil. O cocô é uma raça de comunista e corrupto.”

Um filme fresco, sem ser datado, que parece melhor, mais relevante a cada ano que passa…

Insisto, repito: quando Leonard Maltin, Roger Ebert e o crítico cujo nome desconheço do Cinebooks’ escreveram isso, ainda não havia Donald Trump, Steve Bannon, Matteo Salvani, Viktor Orbán, Jair Bolsonaro…

Sequências antológicas – e hilariantes

Dr. Strangelove é repleto de sequências maravilhosas, marcantes, impressionantes – e hilariantes. Uma das mais faladas, uma que é especialmente tida como antológica (com toda razão) acontece na Sala de Guerra do Pentágono – um gigantesco espaço criado pelo autor do desenho de produção, Ken Adam, em que o presidente dos Estados Unidos, Merkin Muffley (outro dos três papéis de Peter Sellers), se reúne com seus principais assessores e os comandantes militares do país para decidir como fazer para transmitir a ordem de voltar para casa aos bombardeiros enviados contra a União Soviética. Para demonstrar sua boa vontade, o presidente convida para participar da reunião o próprio embaixador da União Soviética, Alexi de Sadesky (Peter Bull).

A presença do representante do inimigo dentro da Sala de Guerra irrita sobremodo o general Turgidson (o papel do grande George C. Scott), o comandante da Força Aérea, ele também um anticomunista fervoroso. E então, lá pelas tantas, o general crê ter visto o embaixador mexendo no que seria uma máquina fotográfica, e então atraca-se com ele.

O presidente dos Estados Unidos fala a frase maravilhosa, perfeita, antológica:

– “Cavalheiros, os senhores não podem brigar aqui! Aqui é a Sala de Guerra!”

Igualmente antológicas são as falas do personagem título, o Dr. Strangelove, o cientista alemão que chefiava a criação das novas armas para as Forças Armadas dos Estados Unidos. O dr. Strangelove é o personagem com que Peter Sellers se solta, em que exagera em tudo por tudo – os gestos, as caretas, o sotaque carregado, tudo muito distante de seus papéis como o presidente Merkin Muffley e o capitão Mandrake, em que ele está contido, discreto.

Conta-se que a figura do dr. Strangelove foi inspirada em Werner von Braun (1912-1977), o engenheiro que foi um dos responsáveis pela criação do foguete V-2 na Alemanha Nazista e depois se radicou nos Estados Unidos, onde trabalhou para o governo e participou da criação do foguete Saturno V.

O próprio Peter Sellers, segundo o IMDb, disse, em entrevistas, que o dr. Strangelove veio de von Braun.

Ao responder às perguntas do presidente americano, Werner von Braun, perdão, o dr. Strangelove, o dr. Fantástico do título brasileiro, deixava escapar um “Mein Führer!”. E tinha que fazer um gigantesco esforço para impedir que o braço direito se erguesse na tradicional saudação nazista.

Se for pensar bem, é apavorante, aterrorizante. No filme, é engraçadíssimo.

Há muita sequência brilhante, impagável, muitos diálogos inteligentíssimos. Mas, para mim, a coisa mais absolutamente hilariantes do filme é o personagem do comandante do bombardeiro que o filme acompanha, o major T.J. Kong, que a tripulação, por trás das costas dele, chama de King Kong. O major King Kong é interpretado por Slim Pickens (na foto acima).

Slim Pickens, nascido e morto na Califórnia (em 1919 e 1983), exibe no filme um danado de um sotaque sulista, acho (posso estar completamente errado, é claro) que texano, daqueles que a gente via muito em westerns. Ator com mais de 170 títulos em sua filmografia, Slim Pickens, como define o IMDb, “passou a primeira parte da carreira como um verdadeiro caubói e a segunda interpretando caubóis, e é mais lembrado por uma única imagem de caubói” – aquela do major King Kong em Dr. Strangelove”.

O major King Kong, a princípio, é todo cauteloso. Não acredita quando seus subordinados dizem que a ordem recebida de seu comandante na base aérea é mesmo de atacar. Exige que eles reexaminem tudo cuidadosamente.

Uma vez tudo checado, uma vez que a ordem era de fato para atacar, o major King Kong se levanta de sua cadeira de comandante do gigantesco bombardeiro, vai até um armário em que guarda suas coisas pessoais, tira o capacete de aviador – e bota na cabeça um chapéu de caubói!

Ouvimos, então, aquela conhecidíssima canção que os velhos westerns traziam quando a Cavalaria avançava contra os peles-vermelhas. Jamais soube o nome da canção que todos nós que vimos westerns conhecemos desde crianças; vejo agora no IMDb que se chama “When Johnny Comes Marching Home”, é de 1863, e foi composta pelo bandmaster do Exército da União, Louis Lambert.

Para o major King Kong, matar comunas era um dever patriótico – da mesma forma com que matar peles-vermelhas era para o general Custer.

Qualquer semelhança com Donald Trump e Jair Bolsonaro não é mera coincidência.

Tinha tudo para ofender o grande público

O Cinebooks’ fala que o filme “contribuiu muito para trazer técnicas e preocupações do cinema anticomercial para as produções convencionais” – e, como eu disse lá acima, a expressão usada na verdade é “underground cinema”. A mesma expressão e o mesmo conceito estão também no texto sobre Dr. Strangelove do livro The Films of the Sixties, de Douglas Brode.

O autor diz que Dr. Strangelove foi o sucesso mais improvável de 1964, porque era completamente diferente dos filmes do cinemão comercial, com diversas características que até então só eram vistas em filmes alternativos, do circuito universitário ou das salas de cinema de arte das grandes cidades:

“O inesperado sucesso de Strangelove convenceu seu estúdio, a Columbia, de que certas qualidades antes associadas ao underground – anti-Establishment, contracultura, realizadores não comerciais – estavam emergindo para a superfície, sendo absorvidas pelos realizadores do cinema padrão, convencional. Strangelove continha sátira contundente do governo dos Estados Unidos e dos militares; comédia de humor negro e humor doentio; linguagem crua e uma aura de intelectualismo; nenhuma grande estrela, mas atores de grande talento; e um fim pessimista (omito aqui a descrição do final do filme). Em suma, Strangelove continha tudo que, teoricamente, ofenderia a audiência de massa, e que deveria ser deixado para os cineclubes das universidades ou para o circuito de cinemas de arte. No entanto, apesar de tudo isso, Strangelove foi abraçado pelo público americano – um sinal de que as distinções antigas entre os filmes underground e os comerciais estavam desaparecendo, e também de que o público estava se tornando mais permeável a idéias e imagens que antes eram associadas apenas à vanguarda.”

No seu livro A Magia do Cinema, em que analisa os que considera serem os 100 melhores filmes de todos os tempos, o grande Roger Ebert diz que, ao ver Dr. Fantástico “talvez pela décima vez”, se concentrou na interpretação de George C. Scott (na foto acima) como o general Buck Turgidson – e fala longamente sobre ela. “A sua atuação é a coisa mais engraçada do filme – melhor até que a inspirada performance tripla de Peter Sellers ou do general de miolo mole protagonizado por Sterling Hayden.”

Depois de analisar detalhadamente as caras e gestos de George C. Scott, Ebert diz: “Dr. Fantástico, de 1964, está recheado de grandes, muito boas e hilariantes performances, pois não há muito mais além de faces, corpos e palavras. Kubrick o rodou em quatro locações principais (um escritório e o perímetro de uma base aérea, a ‘sala de guerra’ e o interior de uma fortaleza voadora B-52). Seus efeitos especiais são competentes, mas não eram deslumbrantes (obviamente, os aviões que sobrevoam a Rússia são de aeromodelismo).”

Ebert descreve um tanto as locações, e em seguida faz uma maravilhosa definição do filme:

“A partir destas rudimentares propostas físicas e de um brilhante roteiro (que Kubrick e Terry Southern tiraram de um romance de Peter George), Kubrick fez o que provavelmente é a melhor sátira política do século XX, um filme que puxou a tapete sob a Guerra Fria ao alegar que se uma ‘máquina de intimidação nuclear’ destrói toda a vida na Terra, é difícil dizer exatamente o que ela intimidou.”

Em pleno século XXI, a melhor sátira política do século XX nos demonstra o horror que se abate sobre nós quando idiotas, insanos, lunáticos ocupam posição de poder.

Anotação em agosto de 2020

Dr. Fantástico/ Dr. Strangelove Or: How I Learned To Stop Worrying and Love The Bomb

De Stanley Kubrick, Inglaterra-EU, 1964

Com Peter Sellers (capitão Lionel Mandrake/presidente Merkin Muffley/Dr. Strangelove)

e George C. Scott (general Buck Turgidson), Sterling Hayden (general Jack D. Ripper), Keenan Wynn (coronel Bat Guano), Slim Pickens (major T.J. “King” Kong, o piloto), Peter Bull (embaixador Alexi de Sadesky), Tracy Reed (Miss Scott, a secretária do general Turgidson), James Earl Jones (tenente Lothar Zogg), Jack Creley (Mr. Staines), Frank Berry (tenente H.R. Dietrich), Glenn Beck (tenente W.D. Kivel), Shane Rimmer (capitão G.A. “Ace” Owens), Paul Tamarin (tenente B. Goldberg), Gordon Tanner (general Faceman), Robert O’Neil (Randolph), Roy Stephens (Frank)

Roteiro Stanley Kubrick, Terry Southern, Peter George

Baseado no romance Red Alert, de Peter George

Fotografia Gilbert Taylor

Música Laurie Johnson

Montagem Anthony Harvey

Desenho de produção Ken Adam

Figurinos Bridget Sellers

Produção Stanley Kubrick, Columbia Pictures, Hawk Films. DVD Columbia.

P&B, 93 min (1h33)

R, ****

 

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