Fazia apenas três anos que Clyde Barrow e Bonnie Parker haviam morrido quando Fritz Lang fez e lançou seu segundo filme americano, You Only Live Once, no Brasil Vive-se Só Uma Vez, em 1937. Ao longo das várias décadas seguintes, historiadores, estudiosos, críticos diriam que o filme se baseia – embora muito vagamente – na história de Bonnie & Clyde, o casal de assaltantes de bancos mais famoso dos tempos da Grande Depressão.
Foi, muito provavelmente, o primeiro filme de toda a História do cinema em que o casal de protagonistas foge da polícia, da Justiça.
Depois dele, viriam vários. Às dezenas, às centenas, aos milhares. Do primeiro longa do mitológico Nicholas Ray, Amarga Esperança/They Live by Night (1948), até Wanted (2016), a série australiana, passando pelo primeiro longa do também mitológico Jean-Luc Godard, Acossado/À Bout de Souffle (1960), e Thelma & Louise (1991), de Ridley Scott.
Filme com dupla de protagonistas fugindo da polícia, da Justiça, deve ter mais do que de casal feliz. Virou arroz de festa.
Mas este aqui foi o primeiro – e então é preciso tirar o chapéu para ele.
Na Alemanha natal, fez obras-primas
Fritz Lang já chegou a Hollywood com aura de mitológico, ali por 1935, 1936 – quase tão mitológico quanto se tornariam bem mais tarde Nicholas Ray e Jean-Luc Godard. Na Alemanha onde fez carreira, antes da ascensão do nazismo, havia criado obras-primas, havia assegurado seu lugar na História como um dos maiores realizadores das primeiras décadas do cinema. A rigor, havia sido um dos diretores que estabeleceram o cinema como uma arte. Fez Dr. Mabuse, O Jogador (1922), Os Nibelungos (1923), Metrópolis (1926), A Mulher na Lua (1928), M, o Vampiro de Dusseldorf (1931), O Testamento do dr. Mabuse (1932) – cada um desses títulos é obrigatório em qualquer curso de cinema que possa existir.
Metrópolis é a primeira grande distopia da História do cinema, uma visão de um futuro tenebroso de uma cidade-fábrica, mas, como diz o historiador Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Lang não gostava de sua obra-prima que seria reverenciada sem parar nas décadas seguintes. “O que o interessa – escreve Tulard – é o realismo social.”
Era o maior realizador do cinema alemão – e por isso foi convidado para Joseph Goebbels para dirigir a indústria cinematográfica do seu país. Cascou fora imediatamente. Na França, fez um filme, Coração de Apache, 1933, e em seguida atravessou o Atlântico e a América rumo à Meca de quem faz cinema, Hollywood. (Décadas mais tarde, outro grande mestre, Milos Forman, fugindo de outra ditadura, a comunista da então Checo-Eslováquia, sintetizaria: Se eu fosse arquiteto 200 anos antes de Cristo, iria para o Egito. Como sou diretor de cinema, vim para Hollywood.)
Demorou para que Lang estreasse nos EUA
Antes de chegar de vez a You Only Live Once, é fundamental, é inescapável lembrar um pouco o contexto. Em meados dos anos 1930, enquanto a Alemanha de Fritz Lang, após atravessar um período durísimo de pós-Primeira Guerra Mundial, escassez, privação e hiperinflação, se rendia ao apelo do nazismo, os Estados Unidos estavam mergulhados no fundo do fundo do fundo da Grande Depressão iniciada com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929. Economia em debacle, falta de oportunidades, desemprego em massa – não há melhor caldo de cultura para a disseminação de ideologias extremadas e para a explosão de conflitos sociais.
Eis como o maravilhoso livro Cinema Year by Year 1894-2000, que apresenta textos sobre os grandes acontecimentos do cinema como se fossem notícias de jornais da época, fala da chegada de Fritz Lang à América:
“Fritz Lang, o grande realizador da Alemanha, se une às fileiras de Hollywood” é o título. Local e data, Nova York, 5 de junho de 1936.
“O primeiro filme americano do grande diretor alemão Fritz Lang, Fury, foi lançado com sucesso. É estrelado por Spencer Tracy e Sylvia Sidney numa história sombria sobre linchamento. Em 1933, após a proibição de The Testament of Dr. Mabuse na Alemanha e a sugestão de Goebbels de que ele assumisse como o chefe do novo cinema nazista, Lang fugiu para Paris. Depois de uma breve temporada na França, onde filmou Liliom (no Brasil Coração de Apache), com Charles Boyer, o diretor aceitou o convite de David O. Selznick de vir para os Estados Unidos.”
(Parênteses rápidos: meu, como o Selznick era poderoso. O cara importou Ingrid Bergman, Alfred Hitchcock e Fritz Lang!)
“Contratado pela MGM, Lang, com seu monóculo, se familiarizou com os costumes locais, aprendeu inglês conversando com motoristas de táxis, garçonetes e funcionários de postos de gasolina, e viveu por quase oito semanas com os navajos. Muitas de suas sugestões de roteiros foram postas de lado até que sua adaptação de uma sinopse de quatro páginas de Norman Krasna chamada Mob Rule (a regra da turba, a turba dita a regra), finalmente recebeu luz verde do estúdio.”
Fala-se então das dificuldades que houve durante as filmagens, Lang acostumado a uma disciplina férrea nos estúdios alemães tendo dificuldade de se adaptar ao estilo hollywoodiano em que os sindicatos obrigavam as filmagens a parar para o almoço, esse tipo de coisa. E a conclusão do texto é esta: “Fury é uma poderosa demonstração sobre um homem inocente preso como suspeito de um seqüestro que escapa do linchamento mas volta para provar sua inocência.”
Um homem que já havia sido preso três vezes
Fúria é um grande filme, uma obra-prima. Faz décadas que não vejo, mas me lembro bem do impacto que me causou.
Um homem inocente preso como suspeito, acusado de um crime que não cometeu. Exatamente o mesmo tema de seu primeiro filme americano Fritz Lang repetiu em seu segundo, este Vive-se uma Só Vez aqui. Exatamente o mesmo tema – igualinho, igualinho.
Tema de montanhas de filmes, também, é claro. Alfred Hitchcock faria uma obra-prima com exatamente o mesmo tema, e exatamente o mesmo ator, Henry Fonda, 19 anos depois. Mas em O Homem Errado o espectador sabe o tempo todo, absolutamente o tempo todo, que o protagonista, o músico Manny Balestrero, é inocente.
O personagem de Henry Fonda neste Vive-se Uma Só Vez, Eddie Taylor, não é apenas 19 anos mais jovem que o Manny Balestrero de O Homem Errado. Ele não é exatamente um homem errado, não é absolutamente inocente.
Quando começa a trama – criada por Gene Towne e C. Graham Baker –, Eddie Taylor está para ser libertado da prisão depois de cumprir sua terceira sentença. Havia sido preso uma vez por roubar um carro. Uma segunda vez por outro crime não muito grave. E uma terceira vez por ter participado, como motorista, de um assalto a banco perpetrado pela quadrilha mais procurada daquele Estado.
(Não se fala hora alguma o nome do Estado em que se passa a história. Mas, pela proximidade do Texas com o México, que é exposta lá bem para o final da narrativa, dá para imaginar que seja aquele Estado – não por coincidência, o Estado natal de Clyde Barrow e Bonnie Parker.)
O defensor público da cidade, Stephen (Barton MacLane), fez a defesa de Eddie, e usou todas as possibilidades da lei para que sua pena fosse diminuída. Até mesmo achou um emprego para ele, em uma empresa transportadora, como motorista de caminhão. Stephen é um bom homem, um advogado dedicado – mas ele se esforça especialmente na defesa de Eddie por causa da moça que trabalha como sua secretária, Joan (o papel de Sylvia Sidney). Joan está absolutamente apaixonada por Eddie – e Stephen faz tudo o que sua secretária quer. O filme não diz isso explicitamente, mas é muito claro que o advogado é apaixonado pela moça – e, bom caráter, generoso, quer vê-la feliz.
Não dar uma segunda chance, chaga feia da sociedade
Assim que Eddie é libertado da prisão, Joan e ele se casam.
Mas o patrão dele, o dono da tal transportadora, se revela um canalha. Nâo queria mesmo saber de ex-presidiário trabalhando ali, e aproveita a primeira oportunidade – um atraso de Eddie – para demiti-lo.
Eddie pede, suplica por uma nova oportunidade: está casado, acabou de alugar uma casa, não encontrará outro trabalho. O patrão é irredutível – e então, antes de ir embora, Eddie o derruba com um poderoso murro, enquanto diz uma frase do tipo “É, não dá para andar direito”.
Logo em seguida há um assalto ao carro-forte que levava dinheiro para um banco. Quatro ou cinco pessoas morrem. No local é encontrado um chapéu de Eddie Taylor – tem até suas iniciais, E.T.
Há aqui uma sacada importante dos criadores da história e do roteiro, Gene Towne e C. Graham Baker: o filme mostra o assalto, mas não permite que o espectador veja a cara de qualquer um dos bandidos. Assim, o espectador não pode ter certeza se Eddie participou ou não. A frase que ele diz quando seus apelos ao patrão são negados indicam que ele pode, sim, perfeitamente, ter procurado colegas da bandidagem e participado do assalto. Mas, quando ele reaparece em casa, jura de pé junto que é inocente. Só que, como tem a certeza de que ninguém vai acreditar nele, pede para Joan o carro para poder fugir.
O personagem de Eddie Taylor foi muitíssimo bem construído pelos roteiristas, pelo diretor Lang e pelo jovem Henry Fonda. Eddie não é, de forma alguma, um sujeito bonzinho, um homem calmo, tranquilo. Não poderia ser mais distante do músico Manny Balestrero de O Homem Errado. É uma pessoa conflituosa, tensa, nervosa – e violenta, dada a acessos de fúria.
You Only Live Once mostra essa chaga feia da sociedade, a coisa de as pessoas não aceitarem a convivência com ex-presidiários, a negação da segunda chance, mesmo para quem já cumpriu a pena e quer mudar de vida, viver do lado da Lei e não fora dela.
Essa chaga é feia, horrorosa – e é uma maravilha que a arte a exponha, a denuncie.
Mas o filme de Lang, na minha opinião, vai muito além da denúncia de que a sociedade em geral se recusa a dar uma segunda chance. You Only Live Once é um perfeito representante daquele pensamento, daquela postura, daquela ideologia de que o criminoso não tem culpa, sequer parte da culpa – a culpa é toda da sociedade.
O que é um evidente exagero. Um grande erro.
Há uma frase que deixa absolutamente explícito isso, quando o filme já se aproxima do final. Eddie Taylor-Henry Fonda faz uma cara de pobrezinho e diz: – “Eles me transformaram em um criminoso”.
Eles. Os outros. A sociedade, essa coisa cruel. A sociedade puxou o gatilho, não foi ele.
Bah.
Henry Fonda em geral só fez personagens de bom caráter
Henry Fonda, nascido em 1905, estava ainda em início de carreira no cinema quando fez o filme. Tinha já um certo nome no mundo teatral da Broadway, onde atuou a partir de 1929. Havia se mudado em 1934 para Hollywood, e trabalhado em nove filmes antes deste You Only Live Once. Era tão iniciante que, nos créditos, seu nome aparece abaixo do de Sylvia Sidney: em 1937, ela era mais conhecida, atraía mais gente às bilheterias do que ele.
Este Eddie Taylor foi um dos poucos papéis de homem mau, ou instável, com manchas na vida na carreira do ator. Na imensa maioria das vezes, Henry Fonda interpretou homens bons, íntegros, honestos, como, só para dar uns poucos exemplos, o jovem Abraham Lincoln em A Mocidade de Lincoln (1939), o agricultor pobre Tom Joad de Vinhas da Ira (1940) e o jurado calmo, ponderado, que se recusa a acreditar na culpa do réu de 12 Homens e uma Sentença (1957).
Só Sergio Leone ousou botar Henry Fonda como um bandido impiedoso – em Era uma Vez na América, aquela maravilha.
Uma coincidência; naquele ano de 1937 em que o filme foi lançado, Frances Ford Seymour, a segunda sra. Henry Fonda, deu à luz à primogênita dele, a quem deram o nome de Jane Seymour Fonda.
Um filme elogiadíssimo pelos críticos
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Drama lindamente elaborado sobre ex-presidiário Fonda tentando andar direito, descobrindo que o destino é contra ele. Vagamente baseado na lenda de Bonnie e Clyde, mas impressionante por si mesmo.”
Bem, bota “vagamente” nisso. Afinal, Bonnie e Clyde eram assaltantes de banco. Aqui, o personagem de Henry Fonda é suspeito de ter participado de um assalto – embora não haja evidências disso. E o personagem de Sylvia Sidney era absolutamente inocente, incapaz de matar uma flor.
Pauline Kael, que em 99% do tempo implica com tudo, gostou muito do filme. Eis o que escreveu, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira do livro 1001 Noites no Cinema:
“Esta primeira versão da história de Bonnie e Clyde, estrelada por Sylvia Sidney e Henry Fonda (nenhum dos dois jamais esteve melhor), talvez seja o mais primoroso dos filmes americanos de Fritz Lang, e sem dúvida um dos melhores melodramas americanos da década de 30. Nesta versão, os jovens proscritos são vistos como vítimas inocentes da indiferença e crueldade da sociedade – uma visão que o público da época partilhou de imediato. Embora a tendência social possa parecer Lang vendendo sua visão apocalíptica, e mesmo que o final cause uma impressão sentimentalóide, os detalhes e muitas das sequências isoladas são dirigidos com tanta clateza que transcendem o melodrama social.”
O próprio Jean Tulard escreveu o verbete sobre J’ai le Droit de Vivre para seu monumental Guide des Films. Deu 4 estrelas, a cotação máxima (coisa bastante rara):
“É em vão que Eddie tenta se reinserir na sociedade. Só sua mulher tem confiança nele. Acusado injustamente, ele escapa mas mata (aqui omito uma palavra, que considero spoiler demais). É lançada uma caçada ao homem. Eddie e Joan serão (diacho, a sinopse dele revela o fim do filme!).
“Uma obra-prima lírica e desesperada de Lang: a fatalidade e os pré-julgamentos da sociedade que recaem sobre um casal encurralado. Brilhantes interpretações de Sylvia Sydney e Henry Fonda.”
Anotação em maio de 2019
Vive-se Uma Só Vez/You Only Live Once
De Fritz Lang, EUA, 1937.
Com Sylvia Sidney (Joan Graham), Henry Fonda (Eddie Taylor)
e Barton MacLane (Stephen Whitney), Jean Dixon (Bonnie Graham, irmã mais velha de Joan), William Gargan (padre Dolan), Warren Hymer (Muggsy), Charles “Chic” Sale (Ethan), Margaret Hamilton (Hester), Guinn Williams (Rogers), Jerome Cowan (Dr. Hill, o médico da prisão), John Wray (o diretor da prisão), Jonathan Hale (o promotor público), Ward Bond (guarda), Ben Hall (mensageiro), Jean Stoddard (estenógrafa), Wade Boteler (policial), Henry Taylor (Kozderonas), Jack Carson (funcionário do posto de gasolina)
Argumento e roteiro Gene Towne e C. Graham Baker
Fotografia Leon Shamroy
Música Alfred Newman
Montagem Daniel Mandell
Fiugrinos Helen Taylor
Produção Walter Wanger Productions. DVD Versátil.
P&B, 86 min (1h26)
***
Título na França: J’ai le Droit de Vivre. Em Portugal: Só Vivemos uma Vez.
Sempre quis ver esse filme, mas agora esfriei. Vivemos numa sociedade injusta – num mundo cheio de injustiça, sim – mas negar o livre-arbítrio, negar o fato de que as pessoas fazem escolhas e devem assumir as consequências dessas escolhas, é discurso PC (Politicamente Correto) e eu não engulo. argh.
Prezada Carla,
De fato, esse aspecto de filme me deixou meio desapontado com ele… Mas não acho que você deveria deixar de vê-lo por causa disso. É um filme importante, tem coisas boas, é muito respeitado.
Um abraço!
Sérgio