The Pleasure of His Company, no Brasil Papai Playboy, de 1961, pode ser visto como uma comédia agradável, com bom elenco, mas bobinha, tolinha, daquelas que passam na sessão da tarde e a gente esquece dois minutos depois que terminam.
Para as platéias de hoje, seguramente poderá parecer não apenas bobinha, tolinha, como também terrivelmente antiga, démodé, ultrapassada. Anacrônica. Houve quem usasse esse adjetivo, anacrônico, já bastante tempo atrás – imagine-se hoje.
No entanto, essa comedinha tem lá seu lado sério. Permite uma discussão sobre valores, escala de valores – e acaba demonstrando que nem sempre o que parece glamouroso, fascinante, aventureiro, fora do padrão, fora do normal é o melhor. E que as pessoas que vivem uma vida mais simples, mais rotineira, mais comum também podem, sim, ser felizes.
Um elogio à simplicidade, às pessoas comuns, gente como a gente. Como os melhores filmes de Philippe de Broca, um autor que se dedicou a esse tema que, a rigor, é raro. O cinema, vamos e venhamos, muitas vezes é escapismo puro: quanto mais longe da dura realidade da vida, melhor – e aí estão os sucessos com super-heróis e tantas e tantas comédias musicais para não me deixar mentir.
O pai da noiva é absolutamente ausente
É bem verdade que os personagens deste Papai Playboy não são propriamente pessoas comuns, gente como a gente, porque são podres de ricos. Jessica, a mocinha que está para se casar (o papel de uma Debbie Reynolds novinha e linda feito uma boneca), mora com a mãe e o padrasto numa mansão gigantesca num dos melhores bairros de San Francisco, a cidade mais charmosa dos Estados Unidos, com direito a uma vista deslumbrante para a baía e a Golden Gate.
Na primeira sequência do filme, Jessica está com a mãe, Kate (o papel de Lilli Palmer, lindérrima, de arrasar), e o padrasto, Jim (Gary Merrill, na foto abaixo) numa elegante maison de haute couture experimentando seu vestido de noiva.
E nessa sequência há um detalhe que é delícia pura para quem gosta do cinema americano dos anos 1940 a 1960 e muitos: a figurinista que atende a família milionária – e que só aparece bem rapidamente – é interpretada, numa participação especialíssima, por Edith Head (1897-1981, a lendária chefe do departamento de figurinos da Paramount, autora das roupas de 440 produções, vencedora de oito Oscars de melhor figurino.
Enquanto Jessica prova o vestido, mãe e padrasto conversam sobre o pai da garota, o primeiro marido de Kate, Biddeford Poole, que todos conhecem pelo apelido de Pogo. Jim enumera os lugares para os quais mandou telegramas, na tentativa de encontrar Pogo: Londres, Paris, Roma, Atenas, Madri, Cairo, Marrakesh, Bermudas, Bombaim, Nice, Monte Carlo, Salzburg, Viena, Lausanne.
E contabiliza: gastou um total de US$ 540,85. E não obteve uma resposta sequer.
Pelo diálogo entre Kate e Jim, ficamos sabendo as informações básicas: o tal do Pogo Poole é, nas palavras da própria ex-mulher, um “playboy internacional, viajante, desportista – um patife”. Separaram-se muito, muito tempo atrás – faz 15 anos. Neste período, o pai jamais fez uma visita à filha que agora está com 20 e poucos – e escreveu para ela apenas três vezes.
Jim acha que o pai de Kate, avô de Jessica, deveria levá-la ao altar – e veremos que Mackenzie Savage (Charlie Ruggles) é uma bela figura, e se dá muito bem com a filha, a neta, o genro. Mas Kate diz que Jessica espera é que o seu pai, o sempre ausente pai, a entregue ao noivo na igreja.
O noivo, Roger (o papel de Tab Hunter) – veremos logo – é dono de uma fazenda em que cria gado de raça. O americano típico, grandalhão, bonzinho, ex-jogador de futebol americano na universidade, agora um sujeito que trabalha duro na fazenda, meio bronco, ou ao menos com jeito de meio bronco.
De um lado, a previsibilidade. Do outro, a aventura
Sem se fazer anunciar, sem avisar nada, Pogo Poole (o papel de Fred Astaire) aparece em San Francisco para o casamento da filha, sim. Chega à mansão quando todos estão fora, e é recebido pelo mordomo chinês, Toy (Harold Fong), a quem seduz com uma nota de sei lá quantos dólares e uma fluência inacreditável em mandarim, segundo ele aprendido em Hong Kong, onde esteve baseado por um tempo durante a Guerra da Coréia (1950-1953). Recusa-se a ficar num dos quartos dos hóspedes e acomoda-se no escritório do dono da casa, que tem vista direto para a Golden Gate.
Jessica, é claro, fica absolutamente encantada com o pai que ela praticamente não conhecia, e cuja vida acompanhava pelas notas nas colunas sociais – tinha um livro de recortes em que colava tudo o que saía sobre Pogo na imprensa.
Pogo, por seu lado, fica convencido de que Jessica não conhece nada da vida e merece, em vez de casar com aquele caubói, passar alguns anos passeando pelo mundo ao lado do pai.
É aí que o filme define a que veio. De um lado, aquela família toda certinha, vivendo um dia-a-dia “normal”, nada aventureiro, nada surpreendente, nada excitante. Do outro, o Mr. Adventure em carne e osso (pouca carne e muito osso, é verdade), o playboy, o homem do mundo, eternamente flanando, sem raízes, sem rotina.
De um lado, a previsibilidade mais absoluta. A chatice, segundo boa parte das pessoas. O tédio. L’ennui – aquela coisa sem a qual os intelectuais franceses simplesmente não conseguiriam viver. Do outro, a aventura, o glamour, o invejável.
E é aí que a comedinha boba alça vôo e fala sério, como quem não quer nada.
Pogo Poole, o playboy, o charmoso aventureiro, na verdade é um danado de um sem caráter, que, além de tentar desfazer o casamento marcado da filha, vai também se esforçar para seduzir a ex-mulher, hospedado embaixo do teto do atual marido dela.
Há um diálogo maravilhoso, quando o filme já vai se aproximando para o final. Pogo interroga a ex-mulher, pergunta o que ela faz da vida, se ela não tem saudade dos tempos em que os dois juntos se divertiam para valer. Kate-Lilli Palmer, aquela mulher linda de matar, dá a resposta: – “Encontrei outro tipo de diversão. A diversão da abençoada tranquilidade.”
Uau!
O tal do amor em paz de que falava Vinicius.
O pé de valsa e duas mulheres maravilhosas
The Pleasure of His Company foi o segundo filme da carreira de Fred Astaire que não é um musical. Dois anos antes, em 1959, ele havia tido seu primeiro papel dramático, em A Hora Final/On the Beach, de Stanley Kramer, um produto típico da época da Guerra Fria, do medo de uma guerra nuclear que dizimaria a humanidade.
Papai Playboy não é um musical – mas Fred Astaire dá umas dançadinhas. O noivo Roger é chamado por seu capataz para cuidar de um touro caríssimo que adoeceu, e Pogo Poole se encarrega de levar a filha a uma festa que ela não poderia perder. Dança com ela – e logo todas as mulheres querem dançar com o pai de Jessica, aquele magnífico pé de valsa.
Lilli Palmer, àquela altura de sua vida, já não morava mais nos Estados Unidos – estava de volta à Europa, trabalhando basicamente em filmes na Alemanha do pós-guerra e na França. De vez em quando era chamada para fazer um filme nos Estados Unidos – como foi o caso deste aqui.
Nasceu Lilli Marie Peiser em 1914 em Posen, à época Prússia, Alemanha, filha de uma atriz judia austríaca, e estudou artes dramáticas em Berlim. Estreou no teatro na capital alemã aos 18 anos, em 1932 – mas logo em seguida, com a ascensão do nazismo, a família teve que deixar o país,. Na Inglaterra, onde se radicou, começou a carreira no cinema; ao final da Segunda Guerra, em 1945, mudou-se com o então marido, o ator Rex Harrison, para os Estados Unidos. Em 1954, no entanto, preferiu voltar para o Europa.
No ano seguinte ao deste Papai Playboy, 1962, faria, ao lado de William Holden, o papel central em um belo drama de guerra, O Falso Traidor, dirigido pelo mesmo George Seaton que fez este filme aqui. O garoto Sérgio Vaz viu O Falso Traidor duas vezes em 1964, depois de novo em 1966 – e se apaixonou por Lilli Palmer. Em 2010, já em outra encadernação, veria o filme mais uma vez e escreveria sobre ele.
Debbie Reynolds havia feito, no ano anterior ao de Papai Playboy, 1960, um drama dirigido pelo ótimo Robert Mulligan, The Rat Race, no Brasil A Taberna das Ilusões Perdidas – também dirigido por George Seaton e produzido pelo mesmo William Perlberg. Ela fazia uma moça do interior da Flórida que tentava a vida em Nova York, trabalhando como taxi girl em um salão de danças e dividindo um pequeno apartamento com outro recém-chegado à grande metrópole, um jovem saxofonisata interpretado por Tony Curtis. O adolescente Sérgio Vaz viu o filme, claro – duas vezes, em 1962, seis anos, portanto, de emigrar ele mesmo para tentar a vida na grande metrópole. Quando revi o filme em 1999, anotei apenas um parágrafo, em que dizia: “Acho que ela (Debbie Reynolds) nunca esteve tão bela quanto no papel da moça do interior que vai pra capital do mundo em busca de um lugar ao sol, só encontra sordidez e não consegue sair.”
Debbie Reynolds está absolutamente bela como a pobre noivinha rica que cresceu sem pai neste The Pleasure of His Company – mas é de fato algo anacrônico vê-la como garotinha casadoira em um filme de 1961 depois que ela interpretou em 1960 uma mulher que sofre o diabo na procura por um lugar na maior cidade do seu país. Afinal, em 1961 ela estava com 27 anos, já havia se divorciado do primeiro marido, Eddie Fisher, que se casara com a amiga da família Liz Taylor; Carrie Fisher, sua primogênita, já estava com 5 anos de idade…
Uma comédia leve, cheia de diálogos inteligentes
O livro The Paramount Story é que qualifica o filme como “anacrônico”: “The Pleasure of His Company era um anacronismo nos fervilhantes anos 60. Mas um deleite para espectadores nostálgicos dos dias em que o cinema falado era novidade, peças de teatro eram filmadas como tal, e você mal podia ouvir os diálogos acima do barulho das taças de coquetel e xícaras de chá. A comédia leve, suave, cheia de diálogos que Samuel Taylor e Cornelia Otis Skinner escreveram para o teatro não quebrou recordes na Broadway ou no West End, mas continuou sendo uma favorita de grupos profissionais e amadores, e virou um agradável filme de 114 minutos (115, segundo outras fontes), com seus diálogos frequentemente inteligentes e um elenco cheio de charme. Em sua segunda aparição não-musical (a primeiro: On the Beach, 1959), em seus 55 anos de palco e tela, Fred Astaire comprovou o que já sabíamos, que ele era um ótimo ator, tanto quanto o supremo homem de canção-e-dança. Ele interpreta um pai devasso que aparece depois de uma longa ausência para o casamento da filha (Debbie Reynolds), para o deleite dela e para a consternação de sua ex-esposa (Lilli Palmer) e do novo marido dela (Gary Merrill). A perplexidade do noivo Tab Hunter e os comentários irônicos de Charlie Ruggles adicionam mais graça à adaptação direta de sua peça, elegantemente produzida em Technicolor pela dupla William Perlberg e George Seaton, e dirigida por Seaton.”
O ator Charlie Ruggles, que o texto menciona, é o que interpreta o avô da noiva. Ele já havia interpretado o mesmo papel no teatro, na Broadway, e tinha tido uma indicação ao Tony de melhor ator secundário. A peça estreara em outubro de 1958 e, se não bateu recordes, como diz o livro sobre os filmes da Paramount, também não foi um fracasso: teve nada menos que 474 apresentações.
E aproveito para fazer um registro sobre Tab Hunter, o ator que faz o noivo fazendeiro, um tanto simplório. Grandão, bonitão, Tab Hunter (1931-2018) foi o que os americanos chamam de matinee idol, ou, na definição do IMDb, “um dos mais quentes ídolos dos adolescentes dos anos 60” – “louro, bronzeado, com bela aparência de surfista, ele ganhou do studio system de Hollywood o apelido de ‘o rapaz do suspiro’”.
Nunca foi propriamente um excelente ator – mas chegou a namorar, na tela, até mesmo Sophia Loren, em um dos piores filmes que ela fez nos Estados Unidos, e um dos piores da carreira do diretor Sidney Lumet, Mulher Daquela Espécie (1959). Quando Tab Hunter morreu, aos 86 anos, agora em 2018, Artur Xexéo escreveu em O Globo um belo, sensível artigo. Transcrevo um trecho:
“Tab Hunter era homossexual. Discreto, como convinha a galãs daquela época. Só tinha dado uma escorregada na vida. Em 1950, foi preso durante uma batida policial numa boate gay. Naquele tempo, prendiam-se frequentadores de boates gays. Hunter ainda não tinha feito nenhum filme, mas tinha um agente poderoso. Henry Wilson era famoso por manter sob contrato só jovens atores bonitos, como Robert Wagner e Guy Madison. Tab Hunter estava no time.
“Wilson o tirou da cadeia e abafou o caso. A partir daí, seu comportamento foi impecável. Conseguiu, por exemplo, participar de um dos segredos mais bem guardados de Hollywood. Durante um bom tempo, Tab Hunter foi namorado de Anthony Perkins. Os dois não moravam juntos e, quando saíam para jantar, davam um jeito de disfarçar sua relação acompanhados por supostas namoradas. Hunter saía com Natalie Wood, e Perkins, com Debbie Reynolds. Ou Hunter com Debbie, e Perkins com Natalie. O namoro durou enquanto a ambição de cada um permitiu.”
Uma comédia que vai mais longe do que parece
Leonard Maltin deu ao filme 3.5 estrelas em 4: “Maravilhosa gostosura, da peça de Samuel Taylor e Cornelia Otis Skinner sobre charmoso ex-marido que vem visitar, encantando sua filha e deixando apavorado o novo marido da mulher. Todo o elenco em forma rara.”
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre Mon Séducteur de Père, como o filme se chamou na França:
“É teatro filmado, é verdade, não é cinema revolucionário, seguramente, mas é uma diversão muito boa, encenada com elegância, interpretada por atores cheios de charme. No papel saboroso do pai indigno e cheio de si, Fred Astaire prova que é tão bom ator quanto dançarino. Além do mais, essa comédia americana vai mais longe do que parece a princípio: essa empreitada de sedução da filha adulta por um pai sem escrúpulos não é bem sucedida o tempo todo. Simplesmente a análise permanece discreta e sempre marcada pelo selo do humor.”
É exatamente isso. Uma comédia que vai mais longe do que parece a princípio, como sintetiza perfeitamente o Guide des Films.
Anotação em novembro de 2018
Papai Playboy/The Pleasure of His Company
De George Seaton, EUA, 1961
Com Fred Astaire (Biddeford Poole, Pogo), Debbie Reynolds (Jessica Poole), Lilli Palmer (Katharine Dougherty), Tab Hunter (Roger Henderson, o noivo de Jessica), Gary Merrill (James Dougherty, o marido de Katharine), Charlie Ruggles (Mackenzie Savage, o pai de Katharine), Harold Fong (Toy, o mordomo chinês), Elvia Allman (Mrs. Mooney, do cerimonial do casamento), Edith Head (figurinista na loja de vestidos de noiva)
Roteiro Samuel Taylor
Baseado na peça de Samuel Taylor e Cornelia Otis Skinner
Fotografia Robert Burks
Música Alfred Newman
Montagem Alma Macrorie
Choreografia Fred Astaire e Hermes Pan
Figurinos Edith Head
Produção William Perlberg, Paramount
Cor, 1h55 (115 min)
R, ***
Título na França: Mon Séducteur de Père. Em Portugal: O Prazer da Sua Companhia.
5 Comentários para “Papai Playboy / The Pleasure of His Company”