O Insulto é um filmaço, uma obra-prima, uma coisa absolutamente extraordinária. Parte de um incidente pequenino, um desentendimento meio bobo, para fazer um amplo afresco sobre o Líbano de hoje, o país que já foi tido como a Suíça do Oriente Médio, e tem passado nas últimas décadas por guerra civil, invasões, ocupações, bombardeios, e permanece dividido por grupos políticos e religiosos que se odeiam profundamente.
Toda a ação (com a única exceção de uma sequência) se passa em Beirute, a capital, a cidade que era conhecida como a Paris do Oriente Médio, com belos hotéis, cassinos, edifícios suntuosos, boulevares, e hoje, além de ter crescido demais, com bairros pobres, quase miseráveis, apresenta ainda as marcas de vários bombardeios. E o diretor Ziad Doueiri faz questão de apresentar, na segunda metade dos 113 minutos do filme, quando o incidente do insulto já se transformou num tema nacional, grandes tomadas aéreas de diferentes trechos da cidade – tomadas fortes, belas, apavorantes, em que a trilha sonora de Éric Neveux cresce, se eleva, e faz tremer o coração mais duro de um frade de pedra.
O incidente, o insulto do título, acontece bem no início do filme, e envolve um libanês cristão, Toni Hanna (nas duas fotos abaixo), e um refugiado palestino, Yasser Abdallah Salameh – muitíssimo bem interpretados, respectivamente, por Adel Karam e Kamel El Basha.
“Seu babaca do caralho”, diz o palestino para o libanês
O filme abre com Toni participando de uma gigantesca manifestação do partido político dos cristãos libaneses. (O Líbano é o país árabe com maior proporção de cristãos – são quase 40% da população, ante cerca de 60% de muçulmanos dos diferentes grupos, xiitas, sunitas, drusos.) No carro dele há um crucifixo – as primeiras tomadas deixam muito explícito que aquele homem é muito ligado à religião.
Toni tem uma oficina, é um bom mecânico. Mora na região cristã de Beirute num apartamento que sua mulher, a linda Shirine (Rita Hayek), acha muito pequeno, especialmente agora que está grávida de uns 7 ou 8 meses. Ela sugere que deveriam ir para Damour, a cidade da família dele, ao Sul de Beirute, onde seguramente teriam uma vida mais tranquila – mas Toni responde, de forma muito brusca, que gosta da sua vida como ela está.
Já nos primeiros minutos, fica claro que Toni é um sujeito nervoso, autoritário, passional.
Ele está regando flores e lavando a pequenina varanda de seu apartamento, quando a água que vaza cai sobre um homem que está chefiando uma equipe de trabalhadores da construção civil ali na rua. É Yasser, o palestino – e a equipe que ele chefia está vistoriando os prédios para identificar aqueles que têm problemas, que não seguem as posturas exigidas pela Prefeitura. É exatamente o caso do apartamento de Toni e Shirine, que não tem uma calha para recolher a água que cai no chão da varanda.
Yasser sobe até o apartamento com um ajudante, toca a campainha. Toni abre a porta com cara feia. Yasser diz que há um problema na varanda, e precisa dar uma olhada. Toni grunhe: – “Que tipo de problema?” Yasser diz que está vazando água. Toni diz para eles trabalharem do lado de fora do prédio – e bate a porta na carta de Yasser e do operário.
Trabalhando do lado de fora do prédio, usando escadas, os operários instalam uma calha junto do cano de onde caía a água da varanda de Toni. Estão quase terminando o trabalho quando Toni aparece na varanda, com ar furioso e um martelo na mão – e arrebenta o cano que acabava de ser instalado.
Yasser olha para cima, encara o sujeito, e diz o que a legenda traduz como: – “Seu babaca do caralho”.
Sei lá o que ele diz em árabe, mas seguramente é algo por aí como a legenda traduziu. “Seu babaca do caralho.” Uma expressão que perfeitamente descreve Toni Hanna naquele momento, porque ele foi sem dúvida um babaca do caralho.
Estamos com 7 minutos do filme que tem 113. Por causa desse insulto, e das consequências diretas dele, o caso será levado à Justiça, em primeira instância, e depois em segunda, a um tribunal de apelações.
O caso de um libanês cristão que exige que um palestino peça desculpas a ele, e depois vai à Justiça contra o refugiado, atrai a atenção da imprensa – e logo vira notícia nacional.
As sessões no tribunal acirram os ânimos dos libaneses cristãos e dos palestinos – há no Líbano um grande contingente de palestinos, a maior parte refugiada, sem asilo formal e portanto impedida de trabalhar legalmente.
A hostilidade sai do tribunal para as ruas. A história incendeia Beirute.
A humanidade que cria tanto ódio e tantas obras belas
Depois que consegui respirar direito, ao final deste filme magnífico mas também apavorante, atordoante, ficou martelando na minha cabeça aquela frase que uso sempre: a humanidade é uma invenção que não deu certo.
Em seguida me ocorreu que O Insulto é um dos mais belos dos tantos filmes que já foram feitos sobre o Oriente Médio e suas eternas lutas, guerras, invasões, atentados, massacres.
E logo veio a constatação: meu Deus do céu e da terra, quantos filmes belos já foram feitos sobre a tragédia que é a luta incessante entre etnias, grupos religiosos, países do Oriente Médio!
E como, nesses belos filmes, mostram-se os argumentos dos dois lados, os erros dos dois lados, as razões que cada lado tem.
São belos filmes que não são pró um lado ou pró o outro lado – e que mostram que seria possível uma convivência sem ódio, se houvesse conversa, diálogo, e cada um cedesse um pouco. Um tanto. Ou bastante.
A mesma humanidade que é capaz dessa cegueira, desse ódio milenar que não acaba nunca e só se realimenta é capaz também de obras de arte tão belas quanto este O Insulto – e vários outros.
Não resisto à vontade de enumerar alguns deles aqui. Uns poucos, apenas entre os que vi e que estão neste 50 Anos de Filmes. São em geral co-produções de países do Oriente Médio com países ricos da Europa ou com os Estados Unidos, e foram feitos tanto por árabes quanto por israelenses:
A Noiva Síria / The Syrian Bride / Ha-Kala Ha-Surit, de Eran Riklis, Israel-França-Alemanha, 2004;
Um Herói do Nosso Tempo / Va, vis et deviens, de Radu Mihaileanu, França-Israel-Bélgica-Itália, 2005;
Ó Jerusalém / O Jerusalem, de Élie Chouraqui, França-Inglaterra-Itália-Grécia-Estados Unidos-Israel, 2006;
A Banda / Bikur Ha-Tizmoret, de Eran Kolirin, Israel-França-EUA, 2007;
Lemon Tree, de Eran Riklis, Israel-França-Alemanha, 2008;
Valsa com Bashir / Waltz with Bashir, de Ari Folman, Israel-França-Alemanha, 2008;
O que Resta do Tempo / Le Temps qu’il Reste, de Elia Suleiman, França-Bélgica-Itália, 2009;
A Missão do Gerente de Recursos Humanos / The Human Resources Manager, de Eran Riklis, Israel-Alemanha-França-Romênia, 2010;
E Agora, Aonde Vamos? / Ou Halla La Weyn? / Et maintenant on va où?, de Nadine Labaki, Líbano-França-Egito-Espanha, 2011;
O Atentado / The Attack / L’Attentat, de Ziad Doueiri, Líbano-França-Catar-Bélgica, 2012;
Uma Garrafa no Mar de Gaza / Une Bouteille à la Mer, de Thierry Binisti, França-Canadá-Israel, 2012;
O Casamento de May / May in the Summer, de Cherien Dabis, Jordânia-Catar-EUA, 2013;
Dégradé, de Arab Nasser e Tarzan Nasser, Palestina-França-Catar, 2015.
Um diretor de poucos – e excelentes – filmes
Naturalmente, tinha já ouvido falar de O Insulto: sabia a coisa básica que era uma história que partia de um pequeno incidente cujas consequências adquiririam proporções imensas, e sabia que o filme tinha sido elogiadíssimo.
Desde as primeiras sequências dá para perceber que é um grande filme, que os elogios todos eram justos, e terminamos de ver absolutamente encantados, Mary e eu. Mas foi só algum tempo depois que vi o nome do diretor – Ziad Doueiri.
Este é o terceiro grande filme de Ziad Doueiri que vimos. Seu filme de 2004, Lila Diz…/Lila Dit Ça, uma co-produção França-Itália-Inglaterra, é uma maravilha – “um belo, inteligente, sensível, talentoso filme sobre a vida de imigrantes árabes na França, preconceito, racismo, violência, e também sobre amor e sexo na adolescência”, como defini no primeiro parágrafo do meu texto.
Em 2012 ele fez O Atentado, co-produção Líbano-França-Catar-Bélgica, outro filmaço, uma obra-prima: poucas horas depois de receber o maior prêmio da Medicina de Israel, pela primeira vez dado a um árabe, o cirurgião Amin Jaafari (Ali Suliman) começa a socorrer, no excelente hospital em que trabalha, em Tel Aviv, os feridos em um novo ataque terrorista: um suicida havia se explodido em um restaurante em que se comemorava o aniversário de uma criança. As autoridades desconfiam que o ataque tinha sido obra exatamente da mulher do médico Amin.
Ziad Doueiri filma histórias fascinantes – e com um talento, uma segurança impressionantes. Parece um veteraníssimo – não é velho, mas é, sim, experiente. Nasceu no Líbano em 1963, e estudou em escola francesa. Aos 18 anos, em 1981, em meio à guerra civil libanesa (1975-1990), emigrou para a Califórnia. Fez faculdade lá, e começou a trabalhar em videoclips, TV; foi assistente de câmara em quatro filmes de Quentin Tarantino, Jackie Brown, From Dusk Till Dawn, Pulp Fiction e Reservoir Dogs.
Já com alguma experiência, alternou trabalhos nos Estados Unidos e na França, e, depois de 2011, também em seu próprio país.
Faz poucos filmes – excelentes, mas poucos. Estreou como diretor com West Beyrouth, de 1998. Lila Diz… foi seu segundo longa como diretor, O Atentado, o terceiro, e este O Insulto, o quarto. É assim uma espécie de anti-Woody Allen, que faz um filme a cada ano. Entre Lila Diz… e Atentado passaram-se 8 anos, e entre O Atentado e O Insulto, 5 anos.
O Atentado se baseou em um romance, de autoria de Yasmina Khadra, uma prolífera escritora argelina. Já O Insulto é um roteiro original – baseado em história criada diretamente para o cinema do próprio Ziad Doueiri e Joelle Touma.
Os dois homens não são broncos, iletrados
Seguramente a pedido do governo do Líbano, o filme abre com o seguinte aviso, em árabe e em inglês: “As visões e opiniões expressas neste filme são aquelas dos autores e do diretor e não refletem a política oficial ou a posição do governo libanês”.
Excesso de zelo, excesso de amor ao muro. O que o filme expressa poderia perfeitamente ser encampado por qualquer governo bem intencionado. O que O Insulto demonstra é que os preconceitos, a intolerância, o racismo são doenças que poderiam ser combatidas, se houvesse vontade, empenho.
Toni se tornou anti-palestinos por causa de um trauma de infância – o massacre de Damour, perpetrado por grupos ligados à OLP, a Organização para a Libertação da Palestina, acontecido em 1976, quando ele estava com seis anos de idade. Yasser, de um povo ao qual a comunidade das nações insiste em negar uma pátria, reage com violência a uma provocação violenta, agressiva demais, insana, feita, num momento de ódio cego, por Toni. Violência leva a mais violência – mas, de maneira surpreendente, na história criada por Ziad Doueiri e Joelle Touma, é um soco na boca do estômago do outro que faz finalmente cair uma ficha de sabedoria na cabeça cheia de ódio de Toni.
E é fascinante que tanto Toni quanto Yasser não são pessoas broncas, que não tiveram a oportunidade de estudar, aprender. Ao contrário. Toni é classe média, pequeno empresário, toca sua oficina. Yasser teve boa formação, é engenheiro – só não pode trabalhar como engenheiro no Líbano porque é um refugiado sem documentos legais.
Há um detalhe interessante que os aproxima – esses dois seres tão diferentes, que, a partir de um incidente até um tanto bobo, menor, passam a travar longa luta nos tribunais. Os dois têm admiração por produtos alemães – sabem que os produtos alemães têm qualidade. A um cliente que argumenta que é nova a peça que Toni quer trocar, o mecânico mostra que aquela ali, provavelmente chinesa, é tão falsa que falta a letra C no nome Bosch, e ele sentencia: – “Alemão velho é melhor que chinês novo em folha”. Bem mais tarde, no tribunal, Toni faz uma expressão de espanto quanto a advogada de Yasser diz que ele exigia que determinada ferramenta fosse alemã.
Para realçar o absurdo de toda aquela situação, Ziad Doueiri e Joelle Touma incrustraram em seu roteiro a fantástica sequência em que o libanês cristão e o refugiado palestino saem ao mesmo tempo do palácio presidencial, desconfortabilissimamente lado a lado, e cada um se encaminha para seu próprio carro, estacionados a uma pequena distância um do outro – e Yasser tenta dar a partida mas o motor não pega.
É uma maravilha de sequência.
O primeiro filme do Líbano a ser indicado ao Oscar
O Insulto foi escolhido pelo governo libanês para concorrer à corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. É uma co-produção de empresas de Líbano, França, Bélgica, Chipre e Estados Unidos, mas a Academia aceitou a participação do filme como representante do Líbano, e o filme conseguiu ser um dos cinco indicados – o primeiro filme feito no Líbano a receber uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. O vencedor daquele ano de 2018 foi o chileno Uma Mulher Fantástica, de Sebastián Lelio.
O filme foi admitido para a competição no Festival de Veneza, e o ator Kamel El Basha, que faz o palestino Yasser, ganhou a Copa Volpi de melhor ator.
No excelente site AlloCiné, que tem tudo e um pouco mais sobre os filmes franceses e francófonos, há informações preciosas e trechos de entrevistas que Ziad Doueiri deu sobre o filme.
O ponto de partida para a criação da história original foi um embate entre o próprio realizador e um encanador que fazia um serviço na casa dele. Doueiri disse palavras duras para o encanador. Joëlle Touma estava presente na ocasião, e convenceu o amigo a pedir desculpas. Ele pediu, mas, irritado, o encanador disse que não aceitava. Doueiri acabou indo até a oficina em que o encanador trabalhava, para contar toda a história para o patrão dele e apresentar novamente seu pedido de desculpas.
Ele e Joëlle perceberam que ali poderia estar o início de um bom roteiro.
Exatamente como os dois personagens centrais da história, Ziad Doueiri e Joëlle Tourma vêm de famílias de contextos políticos e religiosos bem diversos. “Joëlle vem de uma família cristã falangista, e eu de uma família sunita, que defendeu a causa palestina de maneira muito virulenta”, disse o realizador. “Então nós tentamos, jovens adultos, e com o passar dos anos, a entender o ponto de vista do outro. Cada um deu um passo em direção ao outro, procurando encontrar um equilíbrio, uma forma de justiça, nessa história libanesa que não é branca nem negra, na qual é impossível dizer que estes aqui são bons e aqueles ali são maus.”
Ziad Doueiri diz que tentou fazer um filme sobre a busca da dignidade. E ele define O Insulto como um “resolutamente otimista e humanista”. O filme, diz ele, “mostra caminhos possíveis para se chegar à paz.”
Tiro meu chepéu para Ziad Doueiri.
Anotação em fevereiro de 2019
O Insulto/L’Insulte/The Insult
De Ziad Doueiri, Líbano-França-Bélgica-Chipre-EUA, 2017
Com Adel Karam (Toni Hanna, o libanês cristão), Kamel El Basha (Yasser Abdallah Salameh, o palestino)
e Camille Salameh (Wajdi Wehbe, o advogado), Diamand Abou Abboud (Nadine Wehbe, a advogada), Rita Hayek (Shirine Hanna, a mulher de Toni), Talal El Jurdi (Talal), Christine Choueiri (Manal Salameh, a mulher de Yasser), Julia Kassar (a juíza Colette Mansour), Rifaat Torbey (Samir Geagea), Carlos Chahine (o juiz Chahine), Walid Abboud (o entrevistador na TV), Georges Daoud (Georges Hanna, o pai de Toni), Elie Njeim (Elie, o assistente de Toni na oficina), Sami Hamdan (Ibrahim Nassar), Tony Mehanna (o presidente do Líbano)
Argumento e roteiro Ziad Doueiri & Joelle Touma
Fotografia Tommaso Fiorilli
Música Éric Neveux
Montagem Dominkique Marcombe
Casting Abla Khoury
Produção Ezekiel Films, Tessalit Productions,
Rouge International, Cohen Media Group, Scope Pictures, Douri Films,
Canal+, Ciné+.
Cor, 113 min (1h53)
****
Cada pessoa leva consigo uma história e um passado e mesmo que isso não seja argumento, tudo o que evoca algo traumático, vem à tona no pior dos momentos.
Acho que esse filme, assim como o Lemon Tree partem de uma premissa insignificante para se tornar algo imenso, que causa quase uma revolução, por falta de algo que percebo estar ainda mais em falta atualmente, a empatia. É muito complicado colocar-se no lugar do próximo e entender que ele carrega uma história por trás da pessoa e que esse legado pode ser um fardo pesado demais para ela e que em algum momento, a pessoa pode arriar e colocar tudo para fora.
São filmes como esses que nos ensinam tudo isso e nos mostram como a cultura de países que convivem com uma guerra civil e com refugiados precisam lidar com isso diariamente.
Vou buscar assistir os outros mencionados, mas como tudo que é excelente, sei que vai ser muito complicado encontrar…só encontrei Lemon Tree por acaso e esse O Insulto por ter concorrido ao Oscar. Se tiver dicas de onde buscar, aceito desde já!
Vou me intrometer aqui e te indicar dois filmes que não têm nada a ver com o assunto, mas são pérolas que não foram tão divulgadas e que são brilhantes: MR CHURCH com Eddie Murphy em um papel magnifico e O QUEBRA CABEÇA com Irfhaan Khan no mesmo nível.
Um abraço de seu assíduo leitor.