11 Homens e um Segredo/|Ocean’s Eleven é, em mais de uma maneira, um exercício de metalinguagem. Frank Sinatra, Dean Martin e Sammy Davis Jr. ficam ali passeando pelos hotéis-cassinos de Las Vegas em que eles, naquela época, 1960, sempre se apresentavam.
Os 11 homens de Danny Ocean – esse é o nome do personagem de Sinatra – assaltam os cassinos que cantor-ator e seus companheiros do Rat Pack frequentavam – nos bares e também, é claro, nos palcos.
Os cartazes diante dos cassinos anunciam diversas grandes atrações – inclusive Frank Sinatra, Dean Martin, Sammy Davis Jr.
Anunciam também o comediante Red Skelton – que tem no filme uma participação especial como um jogador inveterado que havia pedido ao caixa para nunca mais voltar a aceitar cheque emitido por ele mesmo.
George Raft, o ator que interpretou gângsteres tantas vezes na vida que passou a ter cara de gângster, tem uma participação especial como o dono de um cassino que tem cara e jeitão de gângster.
Para fazer o papel da mulher de Danny Ocean-Frank Sinatra, foi escolhida a bela Angie Dickinson, que namorava The Voice na época em que o filme foi feto.
Não havia papel na trama para a jovem e linda Shirley MacLaine, grande amiga de todos do Rat Pack – e então inventaram uma cena em que aparece uma moça bebadinha, bebadinha, atrapalhando o trabalho de Tony Bergdorf, o mestre eletricista encarregado de preparar a instalação elétrica dos cinco cassinos para o momento do assalto. (Tony Bergdorf é o papel de Richard Conte.) E então lá pelas tantas surge Shirley MacLaine fazendo a mocinha bebadinha. É só um caco, uma brincadeira – não tem função alguma na história. Todos devem ter se divertido muito com aquilo – e, para maior diversão, não puseram o nome dela nos créditos iniciais, para surpreender os espectadores.
Aliás, os créditos iniciais, maravilhosos – uma peça gloriosa de design que brinca com as luzes dos cassinos, as maquininhas de moedas, as cartas de baralho – são de autoria de Saul Bass, o gênio dos créditos iniciais dos grandes filmes de Hollywood na passagem dos anos 50 para os 60.
Lá pelas tantas, Sinatra, Martin e Peter Lawford brincam sobre como ficar rico na política, e ainda fazem piada com os republicados. Mais metalinguagem: o Rat Pack era todo próximo dos democratas, dos Kennedys – Peter Lawford foi casado com Patricia Kennedy, irmã de John F., Bob e Ted Kennedy. (Tinha o apelido – um trocadalho do carilho, um jogo de palavras danado – de Peter InLawford. Broher Inlaw é cunhado.)
A trilha sonora foi composta e executada por Nelson Riddle, o maestro que fazia os arranjos e dirigia a orquestra que acompanhava Sinatra em seus discos daquela época, final dos 50, começo dos 60.
São todos velhos companheiros e amigos
Por tudo isso, e muito mais, para quem tem 50 e tantos anos, ou 60 e tantos, é uma delícia rever 11 Homens e um Segredo. Adorei rever – embora a rigor, a rigor, fosse como se estivesse vendo pela primeira vez, porque não me lembrava de quase nada.
Para os mais jovens, os que conheceram o nome Ocean com a refilmagem homônima feita por Steven Soderbergh em 2001, com um elenco que tem George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, ou os que começaram a falar nesse tal de Ocean por causa de Oito Mulheres e um Segredo/Ocean’s Eight, a versão feminina de 2018… Hum… Acho que aí complica.
Os mais atentos, os que não acham que o mundo começou no dia em que nasceram poderão até curtir.
Mas é bem provável que a maioria dos mais jovens ache o filme meio arrastado, meio lento, e meio comprido demais.
E, se acharem isso, não deixarão de ter alguma razão – talvez até muita.
O roteiro escrito a quatro mãos por Harry Brown & Charles Lederer, com base em história de George Clayton Johnson & Jack Golden Russell, prolonga bastante a apresentação para o espectador de Danny Ocean e seus homens.
São todos velhos companheiros, Ocean e seus homens. Todos lutaram juntos na guerra, foram pára-quedistas ou pilotos na 82ª Divisão Aerotransportada. Não se especifica em quais das tantas guerras em que os Estados Unidos lutam foi aquilo, mas pode-se depreender que foi na Segunda Guerra Mundial, 15 anos antes da ação do filme. Ou pode ter sido na Coréia. O fato é que são todos velhos companheiros, com ênfase no conceito “velhos”.
Até ficamos sabendo que Danny Ocean era sargento, e Jimmy Foster, o papel de Peter InLawford, era tenente, mas na vida civil o chefe da turma é mesmo Danny Ocean, o papel de Frank Sinatra – até porque Frank Sinatra era o chefe daquele grupo, o Rat Pack, e sobre isso jamais houve dúvida alguma.
Não são fornecidos muitos detalhes sobre vários dos outros velhos companheiros – e, ao longo da primeira metade do filme, sequer se explicita qual é exatamente o golpe que está sendo planejado e que vai reunir todo o grupo novamente. Sabemos que será um golpe, um roubo, é claro, e que o idealizador (e financiador) da coisa é um grego tão rico quanto tonto, sonso, zonzo, atrapalhado, chamado Spyros Acebos e interpretado por Akim Tamiroff (1899-1972), um russo de origem armênia que trabalhou em mais de 150 filmes.
Sabemos também que haverá necessidade de fazer explodir alguma coisa – e um dos homens da 82ª Airborne é perito em explosivos.
E sabemos também que o personagem Spyros Acebos e a interpretação extremamente caricatural de Akim Tamiroff são das piores coisas do filme.
O plano é assaltar cinco cassinos – de uma vez!
Vamos vendo Danny Ocean convocando os velhos companheiros, enquanto o tal Spyros Acebos se contorce de nervosia, ansiedade.
Só quando o filme já está com 1 hora inteira – 60 minutos dos 127 de duração – é que Danny Ocean explica para os companheiros, e também para os espectadores, que o plano é assaltar não um, mas cinco dos maiores cassinos de Las Vegas.
Cinco cassinos! Ao mesmo tempo! Na noite de Ano Novo, logo após a meia-noite. Logo após o povo todo cantar “Auld Lang Syne”, o hino não oficial mas oficialíssimo do Natal nos países de língua inglesa, aquela canção melancólica e linda que diz “Should auld acquaintance be forgot / and never brought to mind? / Should auld acquaintance be forgot / and days of auld lang syne?”. Aquela da letra com expressões escocesas antigas sobre a qual o sempre falante Harry resolve discutir com a linda Sally em plena festa de réveillon, no delicioso When Harry Met Sally… (1989).
Danny Ocean tinha cronometrado: “Auld Lang Syne” dura exatos 1 minuto e 38 segundos, e então, quando a canção estivesse terminando, em todos os cassinos de Las Vegas, uma das torres de transmissão perto da cidade explodiria, a luz acabaria, e ele, Danny Ocean, e seus homens agiriam.
O que vem a ser mais um exercício de metalinguagem, porque tanto Sinatra quanto Dean Martin quanto Sammy Davis se cansaram de cantar “Auld Lang Syne” nos cassinos de Las Vegas e em dezenas e dezenas de outros clubes Estados Unidos afora, em suas carreiras. Sinatra e Dean Martin fizeram juntos pelo menos uma gravação da canção – linda.
Os guias não falam nada bem do filme
Há muita brincadeira de o filme imita a vida, ótimas piadas, situações gostosas, belas canções cantadas por Dean Martin e Sammy Davis em 11 Homens e um Segredo. Assim muita lógica, ah, disso o roteiro não está muito bem servido, não – e a segunda metade do filme, já passada em Las Vegas, antes, durante e após o assalto, tem mais buracos que o asfalto de São Paulo.
Mas é um gostoso divertimento. Tão gostoso que marcou época – e deu origem não apenas à refilmagem de Soderbergh em 2001 como também a duas sequências com a mesma turma, Doze Homens e Outro Segredo/Ocean’s Twelve (2004) e Treze Homens e um Novo Segredo/Ocean’s Thirteen (2007). E mais, agora, este Oito Mulheres e um Segredo/Ocean’s Eight.
Leonard Maltin não gostou muito. Deu 2.5 estrelas em quatro e disse apenas isto: “Extravagante comédia sobre crime de um grupo de 11 homens liderados por Danny Ocean (Sinatra) tentando roubar cinco cassinos de Vegas simultaneamente. Todo mundo participa, mas ninguém faz muita coisa, inclusive alguns convidados-surpresas. Mas há uma reviravolta final inteligente.”
Hê hê: a reviravolta final de fato é inteligente. Dá para prever alguns minutos antes que ela seja explicitada, mas é de fato inteligente.
O Guide des Films de Jean Tulard gostou menos ainda de L’Inconnu de Las Vegas, o estranho título que o filme recebeu na França: “Nada a reprovar da parte de Milestone (Lewis Milestone, o diretor) ou do roteiro, mas a turma de Sinatrra afunda numa cabotinagem descarada”.
Hê hê: de fato, há poucos artistas tão absolutamente cabotinos quanto The Voice, conforme o grande Gay Talese, o jornalista de texto fino, elegante, dissecou em sua reportagem “Frank Sinatra Está Resfriado”: “Sinatra resfriado é Picasso sem tintas, Ferrari sem gasolina – só que pior… Pois o resfriado comum rouba-lhe aquela jóia inestimável, a voz, mergulhando até o âmago de sua segurança e afetando não só a psique como também aparentemente causando uma espécie de coriza psicossomática em dezenas de pessoas que trabalham, bebem, amam com ele e dele dependem para o seu bem-estar e estabilidade. Sinatra resfriado pode, de certo modo, causar vibrações que percorrem toda a indústria de entretenimento e vão mais além, tão certo como o presidente dos Estados Unidos, adoecendo subitamente, pode abalar a economia nacional.”
Muitas brincadeiras, muito improviso
Mais uma brincadeira de metalinguagem: quando surge a garota bebadinha interpretada por Shirley MacLaine, e o personagem de Dean Martin vai falar com ela, para distrai-la, para que ela não perceba que Tony, o gênio eletricista, está entrando numa porta de serviço de um dos hotéis-cassinos, ela diz que ele se parece com Ricky Nelson.
Ricky Nelson era em 1960 um jovem cantor bonitinho que fazia extraordinário sucesso entre as moças. Ele e Dean Martin havia acabado de fazer Onde Começa o Inferno/Rio Bravo (1959), de Howard Hawks, ao lado de John Wayne.
E então Sam Harmon, o personagem de Dean Martin, responde: – “Eu já fui Ricky Nelson, mas agora sou Perry Como”. Perry Como era um cantor romântico também de sucesso, adorado pelas fãs mas mal visto pela crítica – e os críticos diziam que a voz de Dean Martin se parecia com a dele.
Outra: Danny Ocean brinca ao telefone que é o detetive Brannigan. O detetive Branigan é o policial que Sinatra interpreta em Eles e Elas/Guys and Dolls (1955).
Outras curiosidades, histórias interessantes sobre o filme e sua produção, a maioria tirada da página de Triva do IMDb:
* Muitas das falas foram improvisadas pelos atores principais – todos amigos próximos. Houve até uma improvisação que surpreendeu todos os que estavam presentes na hora da filmagem da sequência em que Adele, a moça que Danny Ocean namora e depois abandona, conversa com ele em um cassino. De repente, a atriz que fazia Adele, Patrice Wymore, resolveu jogar um prato de doce na cara de Sinatra. Não há informações sobre se Sinatra a encheu de porrada em seguida.
* Não está no maravilhoso livro Billy Wilder – E o resto é loucura, de Hellmuth Karasek, mas consta que o mestre da comédia e da ironia deu umas colaboradinhas no roteiro. Como agradecimento, Sinatra presenteou Wilder com um desenho de Pablo Picasso.
* Muitas sequências foram filmadas cedinho, antes mesmo de o sol nascer, já que um ou outro ator estava se apresentando em um dos teatros dos cassinos de Las Vegas.
* Esta aqui é especialmente deliciosa: consta que o ator George Raft ajudou o gângster Bugsy Siegel a construir e promover o Flamingo Hotel – um dos cinco hotéis-cassinos que são assaltados no filme. Bugsy Siegel foi um dos responsáveis pela criação de Las Vegas como centro do jogo no Oeste americano; ele teve uma cinebiografia em 1991, Bugsy, dirigida por Barry Levinson, em que foi interpretado por Warren Beatty, o irmão de Shirley MacLaine.
E é isso aí. Agora me sinto preparado para ver Oito Mulheres e um Segredo.
Anotação em setembro de 2018
11 Homens e um Segredo/Ocean’s Eleven
De Lewis Milestone, EUA, 1960
Com Frank Sinatra (Danny Ocean), Dean Martin (Sam Harmon), Sammy Davis Jr. (Josh Howard), Peter Lawford (Jimmy Foster), Angie Dickinson (Beatrice Ocean), Richard Conte (Anthony Bergdorf, o eletricista), Cesar Romero (Duke Santos), Patrice Wymore (Adele Ekstrom), Joey Bishop (Mushy O’Connors), Akim Tamiroff (Spyros Acebos), Henry Silva (Roger Corneal), Ilka Chase (Mrs. Restes, a mãe de Jimmy), Buddy Lester (Vince Massler), Richard Benedict (Curly Steffans), Jean Willes (Mrs. Bergdorf), Norman Fell (Peter Rheimer), Clem Harvey (Louis Jackson), Hank Henry (Mr. Kelly, da agência funerária), Robert Foulk (xerife Wimmer)
e, em participações especiais, Red Skelton (jogador), George Raft (Jack Strager, dono de um dos cassinos), Shirley MacLaine (a moça bebadinha)
Roteiro Harry Brown & Charles Lederer
Baseado em história de George Clayton Johnson & Jack Golden Russell
Fotografia William H. Daniels
Música Nelson Riddle
Montagem Philip W. Anderson
Créditos Saul Bass
Produção Lewis Milestone, Dorchester Productions, Warner Bros.
Cor, 127 min (2h07 min)
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Título na França: L’Inconnu de Las Vegas. Em Portugal: Os Onze de Oceano.
No mesmo ano foi feito o “Sete Ladrões”, feito com mais seriedade. Vale mais a pena, na minha opinião. Esse eu só vi por causa do elenco, Richard Conte sobressai.