O mais aparente, visível, é a homenagem à Cavalaria do Exército americano – e este Rio Grande é, de fato, o terceiro filme da trilogia do mestre John Ford sobre a Cavalaria, depois de Sangue de Heróis/Fort Apache (1948) e Legião Invencível/She Wore a Yellow Ribbon (1949).
Mas, para mim, é o pano de fundo da epopéia mostrada na tela que torna o filme precioso. Por trás da ode à Cavalaria, há uma bela história de amor.
Fala-se muito pouco daquela história de amor – e, quando se fala dela, não é abertamente, explicitamente, às claras. É como se mestre John Ford e seu roteirista James Kevin McGuinness não se sentissem à vontade de se meter na vida particular de Kirby e Kathleen – os papéis de John Wayne e Maureen O’Hara. Como se considerassem que contar com todas as palavras para o espectador o que havia acontecido na vida do casal, lá atrás, fosse algo impróprio, uma invasão de privacidade.
Quando a ação começa, o coronel Kirby Yorke chefia um destacamento da Cavalaria no Sudoeste, não muito longe do Rio Grande, que faz a fronteira dos Estados Unidos com o México. Não há um daqueles letreiros que indicam o onde e o quando, mas os mais atentos saberão que estamos aí por volta de 1880, 15 anos após o fim da Guerra da Secessão entre a União e os Estados Confederados do Sul. Boa parte dos índios da região já está em paz com o homem branco e vive em reservas – mas há grupos de rebeldes, de diversas tribos que se unem e lutam contra os brancos.
A primeira sequência do filme mostra o coronel Kirby voltando com seu destacamento para um grande forte do Exército, o Forte Starke, onde vivem dezenas e dezenas de mulheres e crianças. Acabavam de ter um enfrentamento com um grupo de índios rebeldes; haviam feito uns tantoas prisioneiros, mas alguns homens seus também haviam sido feridos. Os índios rebeldes tinham atravessado o Rio Grande e se refugiado no México – e a Cavalaria tinha ordens expressas da chefia do Exército, em Washington, para não cruzar a fronteira com o México.
Depois de 15 anos, o coronel revê primeiro o filho, e em seguida a mulher
Ao chegar de volta ao forte, o coronel Kirby tem um encontro com seu superior e velho conhecido dos tempos da Guerra da Secessão, o general Philip Sheridan (J. Carrol Naish), que estava de passagem por ali. É a ocasião perfeita que o roteirista James Kevin McGuinness encontrou para, através do diálogo entre os dois, explicar a situação ali, o contexto.
– “Obedeci às ordens de não cruzar o rio. Os homens não gostaram disso”, diz o coronel Kirby.
– “Nem você. E nem eu”, responde o general Sheridan. “Mas isso é política. E soldados não fazem política – só cumprem ordens.”
Depois de um diálogo sobre o contexto amplo, o general Sheridan passa a falar de assunto mais pessoal: diz que sente muito pelo filho de Kirby. O coronel diz que não está sabendo de nada – veremos que faz 15 anos que ele não vê o filho, que agora está com uns 18 anos. Sheridan conta que, por ter ido mal na prova de Matemática, o rapaz não conseguiu ser admitido em West Point, a academia militar de elite do país, formadora dos oficiais das forças armadas.
Na sequência seguinte, um grupo de uns 20 recrutas chega ao Forte Starke e é recebido com um pequeno discurso pronunciado pelo primeiro-sargento Quincannon – o papel de Victor McLaglen, um dos atores preferidos de John Ford. Naturalmente, o filho do coronel Kirby Yorke, Jeff Yorke (Claude Jarman Jr.), reprovado em West Point por causa da Matemática, está entre eles.
A chegada dos recrutas acontece quando o filme está com uns 8 minutos de seus 105.
Quando estamos com uns 25 minutos, a mãe do recruta, a mulher do coronel Kirby, Kathleen Yorke, chega ao forte. Quer proteger o filho, tirá-lo dali, levá-lo para longe do front da guerra contra os índios.
Fazia 15 anos que marido e mulher não se viam.
No meio daquela terra selvagem, o coronel e a mulher se tratam como elegância
Ao se reencontrarem ali, num forte do Exército em território povoado por índios hostis, após 15 anos sem se verem, o coronel Kirby e Kathleen Yorke se tratam como um lord e uma lady ingleses: polidos, educadíssimos, gentis.
É a base do que John Ford mostra em seus westerns todos, e em especial nesta trilogia feita entre 1948 e 1950: a Cavalaria que ajudou o homem branco a conquistar o Oeste, embora para isso tivesse que dizimar centenas e centenas de milhares de índios, era formada por homens gentis.
Não eram apenas cavaleiros – eram perfeitos cavalheiros.
Kirby e Kathleen se tratam como lord e lady – e, tal como manda o receituário mais fino da civilização britânica, de que afinal descendem, não demonstram seus sentimentos em público. Não discutem abertamente seus problemas. Não lavam roupa suja.
É só bem aos poucos, bem devagar, através de uma frase aqui, outra bem mais adiante, que o espectador vai podendo formar o quadro.
Quinze anos antes, Kirby e Kathleen já eram casados – e explodiu a Guerra da Secessão. Kirby era oficial da União, Kathleen era de família sulista, de fazendeiros sulistas. Kirby recebeu ordens de atacar a fazenda da família da mulher e queimar suas plantações. Entre o amor e a honra, entre a mulher e a obrigação de obedecer às ordens, escolheu a segunda opção.
John Wayne e Maureen O’Hara fizeram cinco filmes juntos
Foi o primeiro dos cinco filme em que John Wayne e Maureen O’Hara contracenaram – e só por isso Rio Grande já seria importante.
Dois anos depois, em 1952, fariam um dos casais mais fascinantes, mais apaixonantes da História do cinema – ela como Mary Kate Danaher, a mulher mais bonita da pequenina cidade do interior da Irlanda para onde Sean Thornton, o papel dele, retorna, após quase uma vida inteira passada na América, em Depois do Vendaval/The Quiet Man. O diretor da obra-prima era o mesmo John Ford, filho de irlandeses que chegaram à América em 1872; a atriz era irlandesa de Ranelagh, subúrbio de Dublin, e havia estreado num filme horroroso dirigido por Alfred Hitchcock antes que ele mesmo, e ela também, fossem para Hollywood, A Estalagem Maldita/Jamaica Inn (1939).
A sequência em que John Wayne puxa Maureen O’Hara para beijá-la pela primeira vez como Sean Thornton e Mary Kate Danaher é uma das mais antológicas do cinema americano – não é à toa que Steven Spielberg, que viu The Quiet Man pela primeira vez quando era garoto, assim como eu e tantos milhões de pessoas, refez a cena em E.T. – O Extra-Terrestre (1982).
Em uma outra sequência antológica de The Quiet Man, o personagem de John Wayne enfrenta, numa longa, longa, longa e divertida briga de socos, o irmão de Mary Kate, o grandalhão Will Danaher – interpretado pelo mesmo Victor McLaglen que neste Rio Grande interpreta o primeiro-sargento Quincannon.
John Wayne e Maureen O’Hara voltariam a se encontrar em 1957 em Asas de Águias/The Wings of Eagles, mais uma vez sob a direção de John Ford. E se encontrariam de novo em Quando um Homem É Homem/McLintock!, de 1963, e, finalmente, em Jake Grandão/Big Jake (1971).
Cinco filmes, ao longo de 21 anos. Uma beleza de casal.
Em 1950, o ano de Rio Grande, Maureen O’Hara estava com apenas 29 anos. O departamento de maquiagem teve que preparar uns fios de cabelos brancos na sua cabeleira ruiva para que ela pudesse ter a aparência da mãe daquele rapagão de 18 anos, Jeff Yorke. Na verdade, o ator Claude Jarman Jr. tinha apenas 14 anos menos que Maureen O’Hara.
Em vários filmes, o personagem de John Wayne tem problemas com os filhos
É interessantíssimo observar que a relação complexa, problemática, entre o coronel Kirby Yorke e seu filho Jeff é apenas uma entre as relações complexas, problemáticas, entre personagens interpretados por John Wayne e os filhos deles.
Jeff estava com 18 anos e havia 15 anos que ele e o pai não se viam, quando se reencontram no Forte Starke. O rapaz simplesmente não se lembrava do pai – era como se nunca o tivesse visto. Tinha ouvido muita coisa sobre ele, que era um grande soldado, um experiente, bravo oficial, e tinha optado por seguir a mesma carreira do pai na vida.
O coronel Kirby se vê abalado emocionalmente ao reencontrar o filho – ao praticamente ficar conhecendo o filho, quando ele já estava com 18 anos de idade. Teme que o filho enfrente situações perigosas, naquele lugar perigoso – mas, ao mesmo tempo, não pode impedir que o filho vá à luta contra os índios. Sente um misto de medo e de orgulho ao ver que o garoto não é covarde.
É uma situação que tem muitos pontos em comum com aquela que se dá entre o capitão da Marinha Rockwell Torrey, conhecido como The Rock, A Rocha, e seu filho, Jare Torrey, um jovem tenente, em A Primeira Vitória/In Harm’s Way (1965). The Rock é interpretado por John Wayne; Jare, por Brandon De Wilde, o ator que, aos 10 anos, fez o garotinho fica berrando “Shane, Shane!” no grande clássico de George Stevens.
The Rock e o filho não se viam fazia 18 anos: quando Jere tinha apenas 4 anos de idade, o militar havia se divorciado de sua mulher, uma milionária da Nova Inglaterra, e jamais voltara a ver o filho e a ex,
Também em Big Jake, o quinto e último filme que John Wayne e Maureen O’Hara fizeram juntos, há situação semelhante. Ele faz o Big Jake do título, um fazendeiro do Texas que, por algum motivo que não chega a ser explicitado no filme, havia se separado da mulher, Martha, muito tempo antes de a ação começar. Bandidos atacam o rancho rico de Martha e sequestram um neto dela e de Big Jake, e então Martha diz que a luta para recuperar o garoto “vai ser um troço muito duro e desagradável, e então vai precisar de uma pessoa igualmente dura e desagradável” – o próprio marido, Big Jake, é claro.
Big Jake e a bela Martha haviam tido três filhos. Um deles, James (o papel de Patrick Wayne), chama o pai que não via fazia uns dez anos de daddy – papai, paizinho. Jake Grandão dá-lhe várias porradas, e esclarece: – “Você pode me chamar de pai, de Jacob ou de Jake. Mas se me chamar de daddy de novo, eu termino essa briga”.
Ao contrário de nos filmes, na vida real John Wayne era próximo dos filhos
Se nas telas John Wayne fez várias vezes o papel de homem que passava vários anos sem ver os filhos, na vida real não podia ser mais diferente. Gregário, o grandalhão Duke gostava de filmar junto com os amigos – e com os filhos. Com o recém-citado Patrick, papai John fez dez filmes. O primeiro deles foi exatamente este Rio Grande. Patrick faz só uma pontinha – seu nome sequer consta dos créditos. Faria de novo uma pontinha em Depois do Vendaval/The Quiet Man, de novo não creditado.
John Wayne era gregário como o homem que o transformou em astro, com No Tempo das Diligências/Stagecoach (1939): John Ford gostava de usar sempre os mesmos atores. Como já se mostrou aqui, fez vários filmes com John Wayne e Maureen O’Hara – e também com Ben Johnson, Harry Carey Jr., Chill Wills e Victor McLaglen, todos eles atores que estão em Rio Grande.
Um filho de Victor McLaglen, Andrew V. McLaglen, iria se tornar diretor de cinema. E em alguns de seus filmes, como Heróis do Inferno 1968) e Chisum, uma Lenda Americana (1970), dirigiu John Wayne.
Serm qualquer lógica, os exibidores chamaram Rio Grande de Rio Bravo
Rio Grande no Brasil teve o título de Rio Bravo.
Por que raios os exibidores brasileiros tiveram a idéia de mudar o título de Rio Grande para Rio Bravo é seguramente um dos maiores mistérios neste mundo de mistérios – mesmo que Renato Teixeira afirme que o maior mistério é haver mistérios.
Rio Grande é um título que tem todo sentido, entendimento, razão, para citar outra canção. O Rio Grande é o que separa os Estados Unidos da América do México, o Império de nuestra America Latina, às vezes tão America Latrina. É o rio que os índios atravessam para escapar da jurisdição do regimento de cavalaria chefiado pelo coronel Kirby. É o rio que aparece várias vezes no filme – e, rasinho, naquele trecho ali, não tem nada de bravo.
Ao chamar Rio Grande de Rio Bravo, os exibidores brasileiros, além de fugirem de todo tipo de lógica, tornaram ainda mais confusas as coisas na cabeça de quem gosta de western, porque são muitos os filmes de bangue-bangue que têm rio no nome.
Título original | No Brasil | De | Com |
Red River | Rio Vermelho | John Ford, 1948 | John Wayne, Montgomery Clift |
Rio Grande | Rio Bravo | John Ford, 1950 | John Wayne, Maureen O’Hara |
River of No Return | O Rio das Almas Perdidas | Otto Preminger, 1954 | Robert Mitchum, Marilyn Monroe |
Rio Bravo | Onde Começa o Inferno | Howard Hawks, 1959 | John Wayne, Dean Martin, Angie Dickinson |
Rio Lobo | Rio Lobo | Howard Hawks, 1970 | John Wayne, Jennifer O’Neill |
O estúdio exigiu que Ford fizesse este filme antes de fazer The Quiet Man
Consta que John Ford concordou em fazer este filme assim como uma espécie de pagamento de uma prestação à Republic Pictures para poder ter o capital suficiente para filmar The Quiet Man. O estúdio achava que The Quiet Man teria um orçamento muito alto, por ser a cores e com locação na Irlanda, e então teria exigido que antes Ford fizesse um western de custo baixo, com o mesmo casal de atores do projeto que o realizador acalentava realizar.
O orçamento de Rio Grande foi a metade do de Sangue de Heróis, realizado dois anos antes, em 1948.
O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer diz: “A última parte da ‘Trilogia da Cavalariua’ de John Ford (…), Rio Grande é um filme menor, embora essencial, supostamente realizado para garantir o financiamento para o projeto pessoal do diretor, Depois do Vendaval (1952).”
É uma beleza quando um filme “menor” de um diretor figura na lista dos 1001 filmes para se ver antes de morrer.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4, lembrou que o filme é o último da Trilogia da Cavalaria feita por Ford, e afirmou que é o mais subapreciado dos três: “um olhar vibrante sobre o espírito cavalheiresco da Cavaria durante os dias pós-Guerra Civil… e o difícil relacionamento entre um pai distante (o comandante Waye) e seu filho (o recruta Jarman).”
Pauline Kael, a cricrítica capaz de enxergar qualquer tipo de pequeno defeito em um grande filme, diz: “A ação envolve uma rebelião apache, mas o conflito maior é o emocional entre o senso de dever do coronel e o amor dele por sua esposa; Wayne e O’Hara funcionam muito bem juntos, e então o espectador deseja profundamente que no final haja uma reconciliação.”
Quando não se põe a catar pêlo em ovo, Pauline Kael nem parece Pauline Kael…
A verdade dos fatos é que ver um bom western, e especialmente um western de John Ford, dá uma vontade danada de a gente ficar vendo westerns um atrás do outro.
Anotação em abril de 2018
Rio Bravo/Rio Grande
De John Ford, EUA, 1950
Com John Wayne (coronel Kirby Yorke), Maureen O’Hara (Kathleen Yorke)
e Ben Johnson (recruta Tyree), Victor McLaglen (primeiro-sargento Quincannon), Claude Jarman Jr. (recruta Jeff Yorke), Harry Carey Jr. (recruta Daniel Boone, o Sandy), Chill Wills (Dr. Wilkins), J. Carrol Naish (general Philip Sheridan), Grant Withers (delegado), Peter Ortiz (capitão St. Jacques), Gaylord Pendleton (capitão Prescott), Karolyn Grimes (Margaret Mary), Alberto Morin (tenente), Stan Jones (sargento), Patrick Wayne (soldado), Ken Curtis, Hugh Farr, Carl Farr, Lloyd Perryman, George Fisher, Tommy Doss (os cantores do regimento)
Roteiro James Kevin McGuinness
Baseado na história “Mission with No Record”, de James Warner Bellah, publicada originalmente no Saturday Evening Post
Fotografia Bert Glennon
Música Victor Young
Montagem Jack Murray
Produção John Ford, Merian C. Cooper, Argosy, Republic Pictures. DVD Paramount.
P&B, 105 min (1h45)
***
Esse tipo de filme merece esse tipo de texto: sublimes.
PS: “Por que raios os exibidores brasileiros tiveram a idéia de mudar o título de Rio Grande para Rio Bravo é seguramente um dos maiores mistérios neste mundo de mistérios”, mas nada que supere “Uma rua chamada Pecado”.