A primeira coisa que tem que ser dita sobre Cowboys do Espaço, o Clint Eastwood de 2000, é que ele não é um filme para ser levado a sério. Ele mesmo não se leva a sério. É uma aventura, uma grande brincadeira. É possivelmente o filme mais bem humorado da lavra desse respeitável senhor.
A segunda constatação também é óbvia: Cowboys do Espaço não existiria se não tivesse existido Os Eleitos/The Right Stuff, o filmaço de Philip Kaufman de 1983, que reconstitui – seguindo o livro-reportagem de Tom Wolfe – o lado americano da conquista espacial, dos primórdios até o Projeto Mercury, ou seja, de 1947 a meados dos anos 60.
Fiquei imaginando, ao rever agora, para fazer esta anotação, como Cowboys do Espaço se inspirou em Os Eleitos – e também como o filme de Clint, por sua vez, serviu de inspiração para os dois REDs, o Aposentados e Perigosos de 2010 e o Aposentados e Ainda Mais Perigosos de 2013, aquelas aventuras fantásticas, deliciosas, com Bruce Willis, Morgan Freeman, Helen Mirren e John Malkovich como os aposentados perigosos do título – retired and extremely dangerous.
Aqui, Clint Eastwood, Tommy Lee Jones, Donald Sutherland e James Garner fazem os velhinhos aposentados – mas ainda cheios de energia, humor e amor pra dar.
Um prólogo mostra os protagonistas quando jovens pilotos da Força Aérea
A trama de Space Cowboys é um achado, uma delícia – é um roteiro original, uma história escrita diretamente para o filme e roteirizada pelos próprios autores, Ken Kaufman e Howard Klausner. Eles souberam aproveitar maravilhosamente a rivalidade entre as duas então superpotências na corrida espacial nos anos 50 e 60, a época da Guerra Fria – e o fato de que, após o desmantelamento da URSS no início dos anos 90, Estados Unidos e Rússia passaram a colaborar em programas como o da estação espacial internacional.
Com esse contexto histórico como pano de fundo, Ken Kaufman e Howard Klausner usaram ainda aquele elemento tão comum nas atividades humanas, sejam quais forem – a eterna disputa entre os criadores, os que de fato realizam as coisas, e os administradores, os burocratas, que em geral são os que mandam nos outros, e muitas vezes se aproveitam da engenhosidade, dos esforços dos outros para galgar posições.
A narrativa começa com um intróito, um prólogo – 8 minutos de sequências em uma espécie de sépia azulada. Um letreiro avisa que é 1958. Numa base aérea localizada no meio do deserto (exatamente como a Andrews, a base na Califórnia em que a ação de Os Eleitos começa), uma dupla de pilotos faz testes. O piloto principal se chama Hawk, e é um aventureiro, um desafiador de perigos, um sujeito corajoso a toda prova. O navegador e co-piloto, Frank, ao contrário, é um sujeito mais cuidadoso.
Num vôo, estão a 100 mil pés de altitude (cerca de 30 mil metros). Hawk quer subir mais, Frank diz que não.
Num outro vôo, Hawk comemora: – “112 mil pés e estou ótimo”.
Segundos depois, perde o controle do avião, que começa a cair, rodando sobre si próprio como um parafuso. Uma asa se desprende. Os dois pilotos se ejetam. Durante a queda, Hawk berra que quer apostar quem chega primeiro.
Assim que se desvencilha do pára-quedas, Frank parte para cima de Hawk, e, assim que começa a dar porrada, reclama: – “Você sempre precisa levar as coisas no limite, não é?”
São levados ao oficial superior, o major Bob Gerson. O major comenta que o jato X-2 que naquele momento é um monte de ferro retorcido pegando fogo lá longe no deserto custou US$ 4 milhões. Hawk tenta argumentar que eles acabaram de quebrar o recorde de altura e velocidade – e também o salto livre a 30 mil pés.
– “Três aviões em 10 meses. Isso também é um recorde, Hawk.”
Corta, e o major Bob Gerson, tendo a seu lado os quatro homens do Time Dédalus – Frank, Kawk e mais dois –, está dando uma entrevista coletiva num hangar da base aérea. Informa aos jornalistas – e também aos pilotos a seu lado, que não sabiam de nada daquilo – que, por ordem do presidente dos Estados Unidos da América, o Programa Dédalus da Força Aérea estava sendo encerrado, extinto. – “Uma nova agência, civil, chamada Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (National Aeronautics and Space Administration, Nasa, na sigla em inglês), assumirá as tarefas.”
Agitação geral entre os repórteres – e surpresa total entre os quatro pilotos de Time Dédalus. Os repórteres perguntam quem será o primeiro americano a ser lançado ao espaço sideral.
Bob Gerson encosta a mão esquerda no ombro direito de Frank – para que ele, Frank, os jornalistas e os espectadores acreditassem que aquele era o homem – e anuncia que, depois de exaustivos testes, havia sido escolhido… um chimpanzé.
Alguém traz o chimpanzé para a cena, e Bob obriga Frank a dar a mão ao bicho.
Nos dias de hoje, a Rússia pede ajuda aos EUA para salvar um satélite
Um chimpanzé – sabemos muito bem disso – foi o primeiro norte-americano a ir ao espaço sideral, em janeiro de 1961, quatro meses antes de a União Soviética colocar o cosmonauta Iuri Gagarin orbitando ao redor do planeta, em abril.
Em Os Eleitos – que, diferentemente desta ficção aqui, é a reprodução de fatos reais –, é mostrado em detalhes o episódio da escolha do chimpanzé para fazer a primeira viagem espacial, quando os sete primeiros astronautas, os Mercury Seven, já haviam sido escolhidos.
Em Space Cowboys, logo após o major Bob Gerson dar a ordem para que Frank apertasse a mão do chimpanzé, há um corte, o filme passa a ser em cores e um letreiro diz “Dias de hoje”. Pulamos, portanto, de 1958 para 2000, o ano do lançamento do filme.
Naquele prólogo, Frank é interpretado por Toby Stephens. Nos dias de hoje, é o papel de Clint Eastwood. Hawk jovem é feito por Eli Craig; já velho, por Tommy Lee Jones.
O major Bob Gerson jovem é interpretado por Billie Worley; nos dias de hoje, por James Cromwell, aquele bom ator que tem em sua filmografia uma penca de personagens que excedem no quesito mau caráter.
E aí vem a cereja do bolo da trama bem sacada por Ken Kaufman e Howard Klausner: naqueles “dias de hoje” – 1999, 2000 – em que não havia mais Guerra Fria, já que não havia mais União Soviética, e a Rússia dava seus primeiros passos num capitalismo selvagem demais, um satélite de comunicações da Rússia, o Ikon, lançado ainda no tempo da falecida URSS, tinha pifado.
Não só não falava mais com o comando em terra, não se comunicava mais, como estava completamente avariado e começava uma viagem descendente. Iria se espatifar em algum lugar do planeta daí a uns dois meses.
E o governo russo havia pedido a ajuda do governo americano e da Nasa.
O representente da Rússia nas reuniões na Nasa, o general Vostov (Rade Serbedzija), explicava a um dos chefões da Nasa, o senhor Bob Gerson – ele mesmo – e à engenheira Sara Holland (a sempre simpática Marcia Gay Harden) que a Federação Russa não contava com a possibilidade de que seu satélite caísse, se espatifasse, se perdesse. Aquele satélite era absolutamente vital para o seu país.
Bob Gerson assegura ao general russo que a Nasa e os Estados Unidos farão todo o possível para impedir aquela calamidade.
Os soviéticos haviam roubado o sistema de orientação do Skylab!
Gerson e Sara Holland entram numa sala de controle da Nasa, em que um técnico tentava de todas as formas obter algum sinal do satélite Ikov – em vão. O técnico diz uma frase ótima para a dupla:
– “O sistema de orientação disso aí é um dinossauro. Nem eles (aponta para os técnicos russos a seu lado) entendem. É pré-microprocessador, é pré-tudo. Quem projetou esse lixo bizantino deve estar agora quebrando pedras na Sibéria!”
Sara Holland, engenheira competente, examina um grande gráfico que representa o sistema de orientação do satélite ex-soviético, agora russo, e conclui: – “Esse é o sistema de orientação do Skylab!”
Bob Gerson deixa escapar um “Não pode ser” que demonstra angústia.
Sara Holland vai para um computador procurar o nome do engenheiro que projetou o sistema de orientação do velho Skylab. Bob Gerson diz que não é preciso. – “Chama-se Francis D. Corvin.”
Frank. O velho e bom Frank.
Clint Eastwood nos diverte mostrando que os velhos é que são bons
Me empolguei e relatei talvez mais detalhadamente do que necessário essa base da trama, mas é que ela é de fato uma absoluta delícia.
Para não me alongar mais ainda, resumo o que vem a seguir: Sara Holland, em nome da Nasa e do governo americano, vai pedir a Frank que examine o sistema de orientação do satélite russo, e tente resolver o problema. Frank, perplexo com o fato de que seu sistema de orientação foi parar num satélite do então inimigo na Guerra Fria, suspeita que ali tem dedo de Bob Gerson, o sujeito que – como diz para Sara – desde 1958 leva crédito pelas coisas que ele, Frank, faz, e que o trocou por um macaco.
Primeiro, claro, se recusa a ajudar.
Depois aparece na Nasa e diz que topa ir até o satélite russo resolver o problema – desde que possa levar com ele os três companheiros do Time Dédalus: Hawk, e mais Jerry (Donald Sutherland) e Tank (James Garner).
Estamos aí, nesse ponto, com 20 minutos de filme. O espectador terá então pela frente mais 110 minutos de maravilhosa diversão.
Clint Eastwood – ao lado de Tommy Lee Jones, Donald Sutherland e James Garner – vai demonstrar que os velhos é que são bons.
En passant, como quem nem está dando grande importância ao fato, vai defemder a morte com dignidade para quem tem doença irreversível. Confesso que não tinha reparado nisso quando vi o filme pela primeira vez, na época do lançamento, nem reparei agora. Foi Mary que chamou atenção para isso.
Em Cowboys do Espaço, um divertissement, uma grande brincadeira, esse senhor que não perde tempo aproveita para fazer uma defesa da eutanásia. Tema ao qual voltaria – aí dando toda a ênfase, a importância a ele – em Menina de Ouro, seu opus de 2004.
Além da trama inteligente, o filme tem uma penca de maravilhosos diálogos
Além de terem criado uma história fascinante, gostosa, os roteiristas Ken Kaufman e Howard Klausner escreveram uma penca de ótimos diálogos. Transcrevo uns dois ou três.
No primeiro, os quatro veteranos estão se preparando para iniciar a viagem até o satélite russo. Frank pergunta a Tank Sullivan, que tinha virado pastor: – “O que você diz, reverendo? Acha que seria bom fazer uma oração?”
E Tank-James Garner responde: – “Eu estava exatamente recitando a Oração de Shepard. A Oração de Alan Shepard. Ó Senhor, por favor não permita que a gente foda tudo. Amém.”
Frank para seu velho amigo Hawk, com quem sempre brigava, muitas vezes também na porrada: – “Você sabe qual foi o pior dia da minha vida? O dia em que Neil Armstrong pisou na lua. Eu era provavelmente a única pessoa na América que queria se matar naquele dia.”
Hawk, com aquela cara e aquela voz inimitável de Tommy Lee Jones: – “Bem, muito obrigado, Frank. Tinha 12 anos que a gente não se falava e esta era basicamente a grande questão na minha cabeça: o que poderia fazer você se suicidar.”
Lá pelas tantas, a imprensa descobre que quatro veteranos pilotos estão sendo preparados pela Nasa para uma viagem espacial. Vira uma sensação nacional. Os quatro velhinhos passam a ser chamados de The Ripe Stuff, um jogo de palavras danado de interessante com The Right Stuff, o título do livro de Tom Wolfe e do filme de Philip Kaufman.
The right stuff é a matéria certa, a coisa certa. Coisa feita do material certo. The ripe stuff é matéria madura, coisa madura.
Os quatro velhinhos, the ripe stuff, são convidados para o programa de entrevistas de Jay Leno – o apresentador faz uma participação especial representando a si mesmo. A piada que ele faz remete, claro, à Guerra Civil americana (1861-1865), entre o Norte, a União, e o Sul confederado, escravagista.
Jay Leno: – “Vocês todos têm um histórico militar… Norte ou Sul?”
A página de Trivia – informações, curiosidades – sobre o filme no IMDb, riquíssima, com nada menos de 52 itens, informa que os quatro atores principais foram de fato ao programa de Jay Leno para divulgar o filme.
É tanta Trivia que me deu preguiça de ler tudo.
É necessário registrar, ao menos, que este foi o filme número 22 de Client Eastwood como diretor – se é que minhas contas estão certas. Veio depois de Poder Absoluto (1997) e Crime Verdadeiro (1999). Em seguida, o diretor faria Dívida de Sangue (2002) e Sobre Meninos e Lobos (2003). Para este último, versão do livro do então bem jovem escritor Dennis Lehane, um pesado drama policial que envolve abuso, ele chamou novamente a ótima Marcia Gay Harden.
O filme foi indicado a um Oscar técnico, o de montagem de som. Não levou, mas o som do filme é absolutamente extraordinário, desde a primeira tomada, em que, depois de uns instantes de absoluto silêncio, ouvimos o zumbido altíssimo do X-2 viajando a quase Mach 3, três vezes a velocidade do som,
N’est pas un chef-d’oeuvre – mas é um filme que saúda o triunfo dos velhos
Leonard Maltin não gostou muito. Deu apenas 2.5 estrelas em 4, e sentenciou: “Dificilmente crível, mas uma diversão bem humorada, especialmente para os fãs dos atores”.
O Guide des Films de Jean Tulard tasca o seguinte: “O triunfo dos velhos. Este vigésimo-terceiro filme de Clint Eastwood não é uma obra-prima, mas ele ganha nossa simpatia”.
Olha aí: o Guide contou 23 filmes do Clint até aí, eu contei 22. Provavelmente o Guide do mestre Tulard sabe contar melhor que eu. Mas o que importa é que ele define perfeitamente o filme. N’est pas un chef-d’oeuvre – mas é um filme que saúda o triunfo dos velhos.
E – melhor ainda – ao som de “Fly me to the moon”!
Anotação em maio de 2018
Cowboys do Espaço/Space Cowboys
De Clint Eastwood, EUA, 2000
Com Clint Eastwood (Frank Corvin), Tommy Lee Jones (Hawk Hawkins), Donald Sutherland (Jerry O’Neill), James Garner (Tank Sullivan)
e James Cromwell (Bob Gerson), Marcia Gay Harden (Sara Holland), William Devane (Eugene Davis), Loren Dean (Ethan Glance), Courtney B. Vance (Roger Hines), Barbara Babcock (Barbara Corvin), Rade Serbedzija (general Vostov), Blair Brown (Dr. Anne Caruthers), Jay Leno (ele mesmo), Nils Allen Stewart (Tiny)
e (no prólogo) Toby Stephens (Frank jovem), Eli Craig (Hawk jovem), John Asher (Jerry jovem), Matt McColm (Tank jovem), Billie Worley (Bob Gerson jovem)
Argumento e roteiro Ken Kaufman, Howard Klausner
Fotografia Jack N. Green
Música Lennie Niehaus
Montagem Joel Cox
Casting Phyllis Huffman
Produção Clint Eastwood, Malpaso Productions, Village Roadshow Pictures, Warner Bros.
Cor, 130 min (2h10)
R, ***
Eu gostei do filme. Não é um grande filme, é uma brincadeira bem feita. Já vi há muito tempo, não me lembro muito bem.