Ô saco: mais um filme americano sobre família disfuncional.
Os mal-humorados poderiam perfeitamente dizer a frase acima. Prefiro dizer “ô delícia: mais um filme americano sobre família disfuncional”.
É um bom filme – e bem-intencionado, que defende valores corretos.
São sempre bem-vindos filmes que falam sobre dramas familiares, e também as inevitáveis situações engraçadas, cômicas, muitas vezes ridículas que sempre vêm junto com os dramas das relações familiares. São sempre bem-vindos filmes que falam de gente como a gente, pessoas, digamos, normais, como a imensa maioria. É um absurdo que se façam mais filmes sobre super-heróis, bandidos e universos imaginários tipo Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis do que sobre seres humanos que nem eu e o eventual leitor.
Talvez os Altman, a família retratada nesta produção americana de 2014 com bom elenco (Jane Fonda, Tina Fey, Jason Bateman) e dirigida por profissional experiente (o canadense Shawn Levy, de Uma Noite no Museu 1 e 2, a refilmagem de A Pantera Cor de Rosa, Uma Noite Fora de Série, Gigantes de Aço), sejam um pouco mais disfuncionais do que muitas das famílias que eu e o eventual leitor conhecemos.
Talvez. Mas, se a gente pensar bem, nem tão mais disfuncionais assim. Até porque, parafraseando Caetano, de perto nenhuma família é normal.
Aproveitando, então, e parafraseando outro autor, daria para dizer que todas as famílias – digamos – menos anormais se parecem; cada família disfuncional é disfuncional à sua maneira.
O papel da matriarca parece ter sido escrito especialmente para Jane Fonda
A disfuncionalidade dos Altman se deve em boa parte, creio, à matriarca, Hillary – o papel de Jane Fonda. E é fantástico como o personagem de Hillary Altman parece ter sido escrito especificamente para Jane Fonda, essa mulhrt fantástica que já foi símbolo sexual, ativista política e depois ativista da boa forma física.
Hillary é uma daquelas mulheres inteligentes, fortes, independentes, de vontade própria e firme, feministas, progressistas, que se tornaram adultas nos anos 60 e 70 e participaram da maior revolução de costumes que já houve na História da humanidade: a luta pela igualdade de direitos dos gêneros.
A partir dos 80 os tempos mudaram muito – seguramente bem mais do que Bob Dylan conseguia enxergar quando em 1963 compôs “The Times They Are A-Changin’”, o hino de gerações –, e houve uma volta da gangorra rumo a algo próximo da caretice, do conservadorismo, em muitas frentes de batalha. E então acontece que Hillary Altman foi no passado uma feminista batalhadora, uma defensora de que se falasse de sexo às claras – e que se fizesse muito sexo às claras -, e escreveu um livro de muito sucesso, em que contava as intimidades sexuais dela e das pessoas de sua geração, não deixando de mencionar as dos próprios filhos adolescentes.
Já caminhando para a meia-idade, os filhos todos ficam bastante embaraçados quando a mãe se põe a falar de sua vida sexual com aquela liberalidade que era comum nos anos 70, mas hoje parece, além de bastante démodé, um tanto grotesco.
E é delicioso o modo com que os filhos encaram a recente operação que a mãe fez para realçar os seios. O olhar deles, a insistência para que ela feche os botões da blusa…
Os quatro irmãos são forçados a conviver durante uma semana na casa dos pais
São quatro filhos, que estão hoje, na época em que se passa a ação, aí na faixa dos 40 e pouquinho até os 40 e muitos. Criados numa pequena cidade interiorana não especificada – a melhor maneira de se dizer que pode ser qualquer pequena cidade interiorana –, haviam-se espalhado país afora.
Quando morre o pai, os quatro são convocados por Hillary para um Shiva – um antigo ritual judaico em que a família de um morto se reunia durante sete dias para um velório, um reencontro, uma expiação de culpas, um processo em comum de aceitação da perda.
Vemos Wendy (o papel de Tina Fey), a única filha mulher, ligar para o irmão Judd (Jason Bateman), o segundo mais velho dos três homens, e avisar que o pai havia morrido, e havia pedido a Hillary que reunisse a família inteira para um Shiva.
Judd se espanta: – “Mas como assim, se nosso pai era um judeu ateu, e nossa mãe não é judia?”
Pois é. Nas famílias acontece de tudo, acontecem as coisas mais malucas – até mesmo uma família de judeus que não são religiosos ser obrigada pela matriarca, que sequer judia é, a cumprir o antigo ritual religioso do Shiva.
Raras vezes vi uma sinopse tão absolutamente perfeita quanto a que o IMDb traz deste This is Where I Leave You, no Brasil Sete Dias Sem Fim – na verdade, o trecho de uma sinopse maior distribuída pelo estúdio, a Warner Bros:
“Quando seu pai morre, quatro irmãos adultos são forçados a voltar para a casa da sua infância e viver sob o mesmo teto juntos por uma semana, junto com sua mãe aberta demais, franca demais, e uma variedade de cônjuges, ex e que-poderiam-ter-sido.”
Essas quatro linhas resumem de maneira extraordinária a trama do filme. Com sou um sujeito que não foi dotado pelo criador de qualquer capacidade de síntese, fico maravilhado quando alguém consegue fazer algo tão correto, tão demonstrativo do que se trata.
Judd chega cedo em casa e flagra a mulher trepando com o chefe dele!
São quatro os irmãos Altman, mas a história dá muito mais importância a Judd, o segundo mais velho dos três homens. Judd é o protagonista da história, que foi criada em livro por Jonathan Tropper, ele mesmo autor do roteiro do filme – e desconfio que o livro de Jonathan Tropper tenha muita coisa parecida com sua própria vida.
Judd é quem vemos primeiro. Ele trabalha num programa de grande audiência de uma rádio de grande audiência de Nova York – é o principal assessor de um “comunicador” (eta termo ridículo, mas é o que existe), um sujeito que tem um programa muito popular: Wade (Dax Shepard) é uma espécie assim de Datena que em seu programa fala as maiores abobrinhas acerca da questão homens x mulheres. É um monstruoso de um machista filho da mãe – mas tem seu público cativo, vasto, e o cara ganha montes de grana.
Estamos ao final dos créditos iniciais quando Judd Altman – que já havia sido mostrado naqueles primeiros 5 minutos de filme como um sujeito muito legal, que leva café para a secretária, é boa gente, é amado pelos colegas – chega em casa levando um bolo de aniversário para sua mulher Quinn (Abigail Spencer)… e flagra Quinn trepando com Wade e berrando para Wade enfiar mais fundo.
Já houve várias cenas de maridos chegando em casa antes da hora prevista, sem avisar, e flagrando a mulher no ato, mas a sequência de abertura deste This is Where I Leave You é uma das melhores de todas. É chocante, apavorante – e, no entanto, é mostrada pelo diretor Shawn Levy e com a interpretação de Jason Bateman como algo frio, gélido.
É daqueles choques dos quais a pessoa só vai sofrer inteiramente as consequências mais tarde. Trauma de efeito retardado.
O pobre coitado desse Judd Altman consegue a proeza de perder a mulher e o emprego num único flagrante de infidelidade.
Ele ainda está completamente zonzo, abobado, em choque, quando sua irmã Wendy liga para dizer que o pai morreu e a mãe insiste naquela história de Shiva.
Wendy tem saudade do amor que teve na adolescência por um vizinho
Reúnem-se, então, os quatro irmãos, na casa em que passaram a infância, na pequena cidade interiorana. Todos querem que aquilo acabe o mais depressa possível, mas Shiva – como informa o rabino muito jovem da comunidade, Charles Grodner (Ben Schwartz), rapaz que frequentava a casa dos Altman quando criança e adolescente – significa sete dias. Não dá para ser reduzido a três, como os irmãos chegam a sugerir, no início da convivência forçada.
Como tinha saído de casa no momento em que flagrou a mulher trepando com o patrão, Judd é o único que aparece sozinho. Para explicar a ausência de Quinn, inventa que ela teve um problema de saúde. Como está solteiro, é colocado por Hillary no porão, numa cama de armar.
A única filha mulher, Wendy, que se dá muito bem com Judd, chega com o marido, Barry Weissman (Aaron Lazar), um operador no mercado de capitais, o filho aí de uns 3 anos, Cole (Cade Lappin), e um bebê de menos de 1 ano.
Wendy – o filme vai mostrando claramente – não ama o marido. Na verdade, sente imensa saudade do amor que teve pelo vizinho Horry (Timothy Olyphant). Horry continua sendo vizinho da casa dos Altman; sua mãe, Linda (Debra Monk), é a maior amiga de Hillary. Quando Horry e Wendy tinham ali pelos 20 anos, e namoravam, tiveram um sério acidente de carro; Wendy não se feriu, mas Horry teve algum tipo de traumatismo craniano, e não é uma pessoa absolutamente “normal” – se é que há, entre nós, os 8 bilhões de habitantes atuais deste planeta, alguém que pode ser considerado normal.
“Me mostre um adulto feliz. Todos estão tristes, ou com raiva, mentindo, traindo”
O irmão mais velho é Paul (o papel de Corey Stoll, que em House of Cards interpretou o pobre coitado do deputado Peter Russo). Paul é o sujeito que ficou na cidade, enquanto os três mais jovens cascaram fora em busca de algo maior. Ficou na cidade, tomando conta do negócio do pai – uma boa, sólida loja de artigos esportivos.
Paul se casou com Annie (Kathryn Hahn). O problema grande dos dois é que Annie não consegue engravidar, e então os dois passam por aquela coisa cansativa, dura, de tentativa de trepar nos momentos em que ela está mais fértil. E há ainda uma questão: antes de namorar Paul e se casar com ele, Annie havia namorado Judd. O caçula dos Altman a todo momento lembra esse detalhe.
O caçula é Phillip (Adam Driver), uma dessas figuras tão comuns hoje em dia, adultos que não cresceram, que são eternos meninos, embora tenham passado dos 30, chegando aos 40.
Phillip aparece para o Shiva com uma mulher bem mais velha que ele, Tracy (Connie Britton), que havia sido sua terapeuta. É uma pessoa rica, resolvida, e apaixonada pelo garotão – mas o garotão vai querer rever algumas ex-namoradas durante aqueles sete dias sem fim, e aí não vai dar certo.
Judd, o personagem principal da história, este vai rever uma colega de escola, que quando garota tinha sido apaixonada por ele, Penny (Rose Byrne). E poderá rolar algo entre eles – só que Quinn, a ex mulher infiel, reaparece na vida dele, dizendo que está grávida, e que tem certeza de que a filha é dele, porque o amante, o radialista rico e famoso, é estéril.
Lá pelas tantas, quando o filme já passa bem da metade, os irmãos Judd e Wendy, que de fato se gostam muito, e procuram ajudar um ao outro, conversam sentados no telhado da casa paterna. Judd diz para a irmã uma frase tristíssima:
– “Me mostre um adulto feliz. Todos estão tristes, ou com raiva, mentindo, traindo.”
Sim, o mundo não está bem, diz este filme que se mostra sensível, terno, com um olhar simpático para as besteiras que todos nós cometemos, a cada momento, sem parar.
Como em vários filmes recentes, mostra-se que puxar um fuminho é bom
Sim, o mundo não está nada bem – e então talvez por isso mesmo, ou por outro motivo qualquer, ou sem motivo algum, é permitido a nós, estes seres de uma raça que muito provavelmente não deu certo mesmo, fugir um pouquinho da dura realidade, mediante o uso de alguma droga. Judd e Wendy fazem uso dessa droga tão aceita por todas as sociedades, o álcool.
Mais tarde, Judd, Paul e Phillip puxam um fuminho que o primeiro havia encontrado por acaso num terno do pai falecido.
É o momento em que os Altman ficam mais felizes, durante todo o filme, aquele em que os três irmãos homens fumam um maconhinha.
É um detalhe que tem ficado cada vez mais presente nos filmes americanos dos últimos anos: o elogio à maconha, à marijuana, à cannabis.
Eu, euzinho mesmo, não sou filiado a esse grupo. Não estou falando em defesa própria quando lembro que é uma maravilha que tantos filmes americanos recentes mostrem queimar um fuminho como sinônimo de imensa alegria.
Eis alguns exemplos recentes:
Ricki and The Flash: De Volta para Casa/Ricki and The Flash (2015)
Detalhes/The Details (2011)
Paul, o Alien Fugitivo/Paul (2011),
Paz, Amor e Muito Mais/Peace, Love & Misunderstanding (2011),
Simplesmente Complicado (2009),
Bernard e Doris (2006),
Tempo de Recomeçar/Life as a House (2001),
Garotos Incríveis/Wonder Boys (2000),
Poltergeist (1982).
Esses filmes não fazem a elegia do vício, da dependência. Muito ao contrário, mostram que uma droguinha pode ser muito gostosa, desde que eventual.
Não sou a favor de vício. Muito antes ao contrário. E tenho profunda admiração pelos filmes que condenam os vícios – como, por exemplo, Farrapo Humano/The Lost Weekend (1945) e Vício Maldito/Days of Wine and Roses (1962).
Só acho que entre o 8 e o 80, o tanto ao mar e tanto à terra, há uma boa área para a gente se divertir.
Fala-se muito de sexo, de maneira muita aberta, o que é bom demais
Algumas informações sobre o filme, a produção, os autores, o elenco, a maioria tirada da página de Trivia do IMDb:
* Jonathan Tropper, o autor do livro e do roteiro, é jovem, nasceu em 1970, em Riverdale, Estado de Nova York. Entre 2000 e 2012, lançou seis romances; This is Where I Leave You foi o quinto, lançado em 2009, e chegou à lista dos mais vendidos do New York Times.
* No livro, Judd se lembra de que, quando era criança, via sua mãe se exercitando, seguindo um dos vídeos de Jane Fonda na época dela de instrutora de exercícios físicos. O garoto disse para a mãe, numa ocasião, que ela era mais bela que Jane Fonda. Não poderia, de fato, haver atriz mais perfeita para o papel de mãe de Judd do que Jane Fonda, do alto dos magníficos 77 anos que tinha no ano de lançamento do filme, 2014.
* Embora Corey Stoll faça o papel do filho mais velho da família, na vida real ele é mais novo que Jason Bateman e Tina Fey. Os três atores são, respectivamente, de 1976, 1969 e 1970.
* Tina Fey já havia trabalhado antes com o diretor Shawn Levy em Uma Noite Fora de Série/Date Night (2010). Vi poucos filmes com essa moça, mas gosto bastante dela. É boa atriz, boa comediante, e parece ter talento saindo pelo ladrão. É também produtora e escritora; assinou os roteiros de vários Saturday Night Live, o mais famoso programa humorístico da TV americana, e é a criadora e uma das produtoras executivas da série 30 Rock. Como atriz dessa série, teve nada menos de seis indicações ao Globo de Ouro, e levou dois prêmios. Ao todo, já ganhou 47 prêmios, fora outras 120 indicações.
* Este foi o primeiro filme dirigido por Shawn Levy a receber a classificação R, de Restricted, da MPAA, Associação Americana de Produtores de Filmes. A classificação R significa que menores de 17 anos só podem ver o filme se estiverem acompanhados por um dos pais. Acima dessa classificação, mais restritiva ainda que ela, há apenas a NC-17, para filmes totalmente proibido para menores de 18 anos.
Não que o filme mostre muita coisa, em termos visuais. Mas fala-se de sexo demais, e com grande franqueza. O que é uma maravilha.
Anotação em dezembro de 2016
Sete Dias Sem Fim/This is Where I Leave You
De Shawn Levy, EUA, 2014.
Com Jason Bateman (Judd Altman), Tina Fey (Wendy Altman), Jane Fonda (Hillary Altman), Adam Driver (Phillip Altman), Corey Stoll (Paul Altman),
e Rose Byrne (Penny Moore, a colega de Judd), Kathryn Hahn (Annie Altman, a mulher de Paul), Connie Britton (Tracy Sullivan, a namorada de Philip), Timothy Olyphant (Horry Callen, o ex de Wendy), Debra Monk (Linda Callen, a mãe de Horry), Abigail Spencer (Quinn Altman, a mulher de Judd), Dax Shepard (Wade Beaufort, o patrão de Judd), Ben Schwartz (o rabino Charles Grodner, apelidado de Boner, Durão), Aaron Lazar ( Barry Weissman, o marido de Wendy), Cade Lappin (Cole, o filhinho bebê de Wendy)
Roteiro Jonathan Tropper, baseado em sua novela
Fotografia Terry Stacey
Música Michael Giacchino
Montagem Dean Zimmerman
Casting Cindy Tolan
Produção 21 Laps Entertainment, Spring Creek Productions, Warner Bros.
Cor, 103 min
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